O bolsonarismo dentro das boleias

Marcados por pautas difusas e líderes midiáticos, sindicatos dos caminhoneiros tornaram-se peças importantes na política nacional. Uma radiografia dessas entidades, os interesses que as cercam e como foram capturadas pelo bolsonarismo

Imagem: ANSA/EPA
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É preciso retroceder no tempo para uma compreensão no mínimo razoável do novelo que levou a numerosa categoria dos caminhoneiros autônomos, ou pelo menos grande parte dela, ao caminho perverso do bolsonarismo. Mas, primeiramente, é preciso esclarecer que a lei nº 11.442/07 discrimina o Transportador Autônomo de Carga (TAC) como “pessoa física que tenha no transporte rodoviário de cargas a sua atividade profissional”, fato que implica na posse de pelo menos um veículo de carga que caracteriza o trabalhador por conta própria1. Este, segundo o artigo 4º da referida lei, pode ainda ser denominado como agregado, “aquele que coloca veículo de sua propriedade ou de sua posse, a ser dirigido por ele próprio ou por preposto seu, a serviço do contratante, com exclusividade, mediante remuneração certa”, ou como independente, “aquele que presta os serviços de transporte de carga de que trata esta Lei em caráter eventual e sem exclusividade, mediante frete ajustado a cada viagem”.

Por outro lado, também existe a figura do motorista frotista, empregado com vínculo empregatício subordinado aos sindicatos e federações componentes da Confederação Nacional dos Trabalhadores em Transporte Terrestre (CNTTT), que também agrega metroviários, ferroviários e motoristas. Os frotistas podem ser assalariados (ganho monetário fixo mensal com possíveis adicionais monetários) ou comissionados (registro de um salário mínimo e ganho real por viagem, percentual de frete ou carga transportada). Ou seja, de imediato estamos falando em duas classes de caminhoneiros: os assalariados (sejam de uma empresa transportadora ou de estabelecimentos industriais, agropecuários e/ou comerciais que possuem frota própria e, portanto, não contratam o serviço de transporte) e os autônomos (ou TACs).

Historicamente, tem sido uma luta árdua a tentativa de organização do caminhoneiro autônomo. O primeiro passo ocorreu na segunda metade dos anos 1980, quando a categoria conseguiu se desvencilhar de estruturas compartilhadas com taxistas, conhecidos como sindicatos de Condutores Autônomos de Veículos Rodoviários (Sincaver) e encabeçados por uma federação nacional (Fencavir). Os primeiros movimentos sindicais começaram a aparecer, mas em 1987 o Serviço Nacional de Informações (SNI) vetou a criação de um sindicato nacional, liberando apenas entidades de cunho estadual, respeitando parcialmente a premissa da Consolidação das Leis do Trabalho (CLT) de que nenhuma categoria pode ficar sem representação sindical.

O quadro sindical dos autônomos ainda está longe de uma representação que se possa dizer eficiente, em todos os aspectos. Do ponto de vista territorial, são apenas nove federações – Fecam/RS, Fecam/SC, Fetrabens/SP, Fecam/RJ, Fetac/ES, Fetramig/MG, Fenacam (nacional, aglutina a rede Sindicam), Fecone/Região Nordeste e Fetranorte/Região Norte –, situação distante da ampla capilarização empreendida pelos caminhoneiros em boa parte do território nacional. O quadro mais representativo tem sido conduzido pela Federação Nacional dos Caminhoneiros (Fenacam), cujo pedido de legalização, a partir da organização inicial empreendida pelo Sindicato dos Caminhoneiros do Paraná (Sindicam/PR), ficou represado no governo federal por 13 anos, inclusive durante todo o governo FHC, com 60 impugnações no Ministério do Trabalho orquestradas pela Confederação Nacional do Transporte (CNT) e Associação Nacional do Transporte de Cargas e Logística (NTC&Logística), como explicou o atual presidente do órgão, Diumar Bueno.

“O Sindicam limpou todas as impugnações, cumpriu exigências legais e um compromisso com o então ministro do Trabalho, Jaques Wagner, de receber o registro em cima da boleia de um caminhão”, contou o dirigente2, afirmando que a Fenacam nasceu com o intuito de organizar sindicatos regionais em todo o país – é a rede Sindicam, tida como o perfil mais adequado para atender o caminhoneiro –, exceto em São Paulo, Rio Grande do Sul e Santa Catarina, já representados. “A CNT não digeriu a Fenacam até agora, mas reivindicou legalmente a vinculação.” O dirigente destacou que esta situação só foi possível a partir do governo Lula, que “abriu espaço para a organização dos caminhoneiros, cujas categorias passaram a ser mais atendidas e contempladas”. “Começamos a ter eco, com força de discussão”, explicou. Em sua análise, o histórico de luta da categoria já obteve quatro grandes conquistas: (i) possibilidade de organização sindical; (ii) responsabilização do embarcador e/ou transportador por eventual excesso de peso imposto ao TAC na origem do carregamento, prevista no artigo 257 do Código de Trânsito Brasileiro (CTB) e na resolução Contran 258/2007; (iii) regulamentação satisfatória com a lei nº 11.442/07 e (iv) extinção da carta-frete3.

Naquela ocasião, Bueno enxergava como demandas atuais a questão da segurança, por conta do alto risco da atividade; e o seguro, cujo pagamento simultâneo ao financiamento do veículo é comprometido por conta da baixa remuneração. Apesar dos avanços, afirmara que entre os problemas crônicos para a organização da categoria está a desinformação do autônomo. “Ele não lê, não participa de reunião e passa em casa apenas para dar um beijinho nas crianças; como convencê-lo a um sindicato por fazer?”

O histórico de reivindicação da categoria também não é dos melhores. Em sua pesquisa realizada na Universidade Federal de Pelotas (UFPel)4, Rafael Kapron comprova que houve poucos e incipientes movimentos grevistas até meados dos anos 1990, diferentemente de outras classes. Vários elementos explicam o porquê: baixa taxa de sindicalização, trabalho individual de caráter rotineiro, intensa competição pela captação de carga e altos índices de trabalho informal. Sobre a realização da greve nacional de 1999, que em apenas três dias quase paralisou o país, o presidente da Fenacam acredita que “serviu muito mais aos empresários do setor, pois o autônomo não sentou nas mesas de negociação”.

Também enfraquece a luta a existência de uma nítida correlação de forças que compromete uma aliança mais coesa e abrangente da categoria, como demonstrou o manifesto intitulado “Caminhoneiros do Brasil: compromisso com o futuro e com a verdade!”, subscrito por Fenacam, Fecam e Fetrabens em 20045:

[…] movido por um grupo ilegítimo, surge uma enxurrada de pedidos de criação de sindicatos de caminhoneiros, estimulados única e exclusivamente por interesses políticos e financeiros.

A avalanche destes sindicatos se deu pela aliança formada pelo Movimento União Brasil Caminhoneiro – MUBC e pela CGTB – Central Geral dos Trabalhadores do Brasil, que buscam apenas os fins eleitoreiro e arrecadatório. Sendo a primeira com interesse na contribuição sindical direta dos caminhoneiros, e a segunda, que tenta obter a personalidade sindical para poder ter índice de representatividade que a autorize a tirar um naco de 50% da contribuição sindical recolhida pelos caminhoneiros, destinada ao FAT…

Vemos que essa invasão súbita de sindicatos se deu nos últimos oito meses, sem critério algum de representatividade, de legalidade e de transparência. Ditos sindicatos estão à margem do sistema confederativo de representação sindical, são criados mediante pagamento em dinheiro para que as pessoas assumam cargos de diretoria, sem ao menos pertencerem à categoria que se dizem representantes, e ainda cometendo inúmeras fraudes no processo de criação das entidades. Tais ações já foram devidamente denunciadas aos órgãos competentes.

Apesar da falta de coesão em um nível desejável, Fenacam, Fecone e Fetrabens deram um grande passo para a organização e representação máxima e de abrangência nacional da categoria ao criar, em 5 de junho de 2012, a Confederação Nacional dos Transportadores Autônomos (CNTA) – “um novo horizonte para os caminhoneiros” –, com sede em Curitiba e presidida desde então pelo mesmo Diumar Bueno. Por razões que desconhecemos, a Fecam/RS não fez parte da nova entidade dos autônomos, mantendo-se filiada à CNT, mesma situação de Fecam/SC, Fecam/RJ, Fecanorte e Fetramig – esta última, ao lado da Fetac/ES, filiou-se posteriormente à CNTA. Desconfiamos que este fato, naquele contexto, pode ter sido uma tentativa de enfraquecimento da pioneira representação confederativa dos autônomos.

Uma das primeiras vitórias da nova entidade foi a redução da carga tributária do autônomo com a publicação da medida provisória 582/12, que reduziu a base do imposto de renda de 40% para 10% sobre o rendimento bruto do caminhoneiro, implicando em significativa melhora do valor líquido do frete. Além disso, a entidade celebrou com a Agência Nacional de Transportes Terrestres (ANTT), pela deliberação nº 94/2013, um acordo de cooperação técnica para viabilizar a execução de atividades de apoio relacionadas à inscrição e manutenção do cadastro dos TACs no Registro Nacional de Transportadores Rodoviários de Cargas (RNTRC).

Segundo o sítio da confederação, o acordo “reflete o reconhecimento do governo federal da legitimidade e representatividade da CNTA em face dos transportadores autônomos em âmbito confederativo, bem como da qualificação e capacidade operacional da entidade para os fins propostos pela Agência”6.

A pauta de reivindicações da CNTA, que afirmava em seu site ser “totalmente desvinculada da representação de qualquer um dos demais segmentos do setor, tais como os das empresas de transporte e do transporte de passageiros”7, contemplava importantes demandas da categoria dos caminhoneiros autônomos:

  • Aposentadoria especial aos 25 anos de trabalho;
  • Suspensão da multa pelo peso entre eixo, com a sua aplicação apenas em caso de excesso de peso bruto total do veículo;
  • Mecanismo de atualização do valor das estadias;
  • Cumprimento imediato da Lei do Vale-Pedágio com fiscalização ostensiva direta nos embarcadores e inclusão das informações do vale-pedágio no Código Identificador da Operação de Transporte (CIOT);
  • Luta contra medidas que possibilitariam o retorno da carta-frete;
  • Defesa da institucionalização de uma tabela referenciada de fretes com garantia de cota de 50% das cargas oferecidas ao mercado aos motoristas autônomos.

Mas a pauta acima foi extraída em 14 de maio de 2013. Em 2018, a CNTA retirou os pontos referentes ao retorno da carta-frete e defesa de uma tabela referenciada de fretes e outros três (abaixo) foram acrescentados:

  • Alteração da lei 12.619/12, mantendo o tempo de descanso em 11 horas (8 horas ininterruptas e 3 fracionadas conforme necessidade e conveniência do caminhoneiro);
  • Fim da obrigatoriedade do descanso semanal para os autônomos;
  • Criação oficial de uma Câmara Nacional do Transporte Rodoviário de Carga, no âmbito da ANTT, composta por entidades confederativas e setores do governo, respectivamente interessados.

Ao meu juízo, os pontos retirados não eram de interesse do empresariado do setor. O mesmo ocorreu com os pontos inseridos na pauta, mas no sentido inverso. É preciso acrescentar que a CNTA se tornou entidade associada à CNT, o feudo dos grandes empresários do setor (mas que em sua estrutura possui a sessão dos transportadores autônomos de passageiros e de cargas), a partir de dezembro de 2017. Consequentemente, a sua sede foi transferida de Curitiba para o suntuoso prédio da CNT em Brasília e obteve assento no Conselho Nacional do Sistema Sest/Senat, vinculando a parte que lhe cabe da receita (financiada pela contribuição compulsória dos autônomos filiados) ao gerenciamento em cogestão.

E para complicar ainda mais o quadro, existe uma miríade de associações que também advogam o direito de representar os autônomos, mas não ostentam respaldo legal de nível sindical, diferentemente da CNTA. As principais são Federação Nacional das Associações de Caminhoneiros e Transportadores (Fenacat), União Nacional dos Caminhoneiros (Unicam), Movimento União Brasil Caminhoneiro (MUBC) e Associação Brasileira dos Caminhoneiros (Abcam), sendo que esta última é uma entidade vinculada à CNT desde 2003.

Entre 2012 e 2018, um novo cenário de greves com variáveis e interesses obscuros

A querela entre as entidades voltou à tona em julho de 2012, com uma greve geral de caminhoneiros oficialmente deflagrada pelo MUBC, sediado no Rio de Janeiro, que se mostrou desfavorável a algumas modificações colocadas por resoluções da ANTT – como a exigência do CIOT para autônomos e o pagamento eletrônico de frete – e ao tempo de parada, instituído pela lei 12.619/12. O MUBC foi acusado por Unicam e CNTA de ter sido cooptado pelo empresariado para reivindicar pautas de interesse das empresas, e não dos caminhoneiros.

Após quatro reuniões e a promessa de fim da greve, representantes do governo federal e dos motoristas autônomos firmaram um acordo no qual a ANTT se comprometeu a estudar procedimentos necessários à implementação de modificações nas resoluções 3.056/09 e 3.658/11. Também ficou instituído o Fórum Permanente do TRC, coordenado pela ANTT e com a participação dos signatários do documento – CNTA, Abcam, MUBC, Unicam e Fetrabens –, com reuniões bimestrais convocadas pelo órgão regulador para deliberação dos temas previstos no documento. Na pauta de reivindicações constavam:

  • Revisão do RNTRC, a fim de excluir do registro as pessoas jurídicas que não tenham como atividade principal o TRC, que seriam regularizadas mediante novas regras; e consideração, para fins de registro, somente de veículos automotores de carga;
  • Incorporação da Cooperativa de Transporte de Carga (CTC) na categoria ETC;
  • Simplificação dos procedimentos e informações necessários ao cadastramento das operações de transporte e geração do respectivo código identificador, ou CIOT;
  • Admissão do pagamento do frete por depósito em conta;
  • Obrigatoriedade de cadastramento de todas as operações de transporte rodoviário de carga por conta de terceiros e mediante remuneração.

Ocorre que duas novas greves foram deflagradas nos anos seguintes, com ampla divulgação na mídia. A primeira se deu na atmosfera das chamadas “jornadas de junho”, quando parte da população foi às ruas em centenas de cidades do Brasil para protestar, em uma pauta difusa cercada por ataques violentos à pessoa e ao patrimônio público e privado. No primeiro dia da greve, em 1º de julho de 2013, caminhoneiros travaram estradas em nove Estados das regiões Sul, Sudeste, Nordeste e Centro-Oeste contra o preço do pedágio e do diesel, pela suspensão da cobrança do eixo levantado, por maior segurança nas vias e por emendas na lei 12.619/12. Exatamente neste ponto reside um dos complicadores da pauta, pois apenas o MUBC veio a público manifestar apoio ao movimento grevista, sobretudo em relação à flexibilização da jornada de trabalho.

No segundo dia 30 núcleos de protesto interditaram 17 rodovias, além do acesso ao Porto de Santos, mas a Justiça proibiu o MUBC de bloquear estradas sob pena de multa de R$ 20 mil por hora em caso de descumprimento da medida – a entidade chegou a ter R$ 6,3 milhões bloqueados por decisão judicial. O governo federal também interveio com o pedido de abertura de inquérito à Polícia Federal. Havia a suspeita de prática de locaute por parte dos caminhoneiros (ou greve patronal, proibida no país). O então ministro dos Transportes, César Borges, declarou que o grupo ligado ao MUBC não representa as entidades do setor ouvidas pelo governo antes dos bloqueios.

O presidente do MUBC, Nélio Botelho, tido como organizador dos protestos que pararam várias rodovias do país, foi apontado por sindicalistas paulistas contrários à greve como empresário frotista proprietário de mais de 1.000 caminhões, e por este motivo seria favorável à flexibilização da jornada de trabalho. “Não sou empresário. Faço (manifestações) por puro idealismo. Nunca ganhei nada com isso”, disse Botelho8, que participa de greves da categoria desde 1985. Ele afirmou ser proprietário de apenas um caminhão ainda não pago e comentou que o ministro da Justiça estaria mal-informado quanto à sua posição no mercado.

Após um saldo de início de desabastecimento do comércio em geral e de combustíveis, atrasos no embarque em Santos e praças de pedágio incendiadas, a greve acabou com a criação, pelo Ministério dos Transportes, da Câmara de Estudos sobre o Transporte Rodoviário de Cargas, cujo objetivo era debater medidas e propor sugestões para o aprimoramento do setor.

Nova greve ocorreu a partir de 23 de fevereiro de 2015 com o bloqueio de rodovias em oito Estados das regiões Sul, Sudeste, Norte e Centro-Oeste. A pauta de reivindicações incluiu a diminuição do valor do diesel; o alto custo dos pedágios e a isenção para caminhões com eixo suspenso; os baixos preços dos fretes e a institucionalização de uma tabela de fretes; e mudanças na lei 12.619/12. Duas notáveis diferenças foram notadas em relação ao movimento anterior, de 2013: a ausência de uma entidade legal declaradamente organizadora do protesto e a rápida ação do governo federal para tentar inibir o movimento.

O MUBC prontamente informou que apenas apoiava a greve, mas sem qualquer tipo de ação promotora. Por outro lado, a Advocacia-Geral da União (AGU) ingressou com ações na Justiça Federal para pedir a suspensão imediata dos bloqueios, fixando multa de R$ 100 mil por hora em caso de recusa à liberação do tráfego. Paralelamente o governo abriu mesas de negociação para tentar convencer os caminhoneiros a não fechar pistas.

Mas no dia seguinte o movimento ganhou força, alcançando mais dois Estados (Bahia e Ceará) e ampliando os núcleos de interdição, que chegaram a 124. Como consequência, fábricas deixaram de funcionar e se iniciou uma crise de abastecimento de produtos alimentícios. A colheita da soja no Mato Grosso também ficou prejudicada.

No terceiro dia, houve redução de 43 pontos de bloqueio, mas o movimento conseguiu parar a Régis Bittencourt (BR-116), principal ligação entre as regiões Sul e Sudeste. As interdições em Minas Gerais foram desfeitas por conta de uma liminar da AGU acatada por uma juíza federal daquele Estado. Em regime de urgência, o governo federal passou a negociar com alguns sindicatos de autônomos (embora nenhum tenha declarado responsabilidade pelo estopim dos protestos) em conjunto com o chamado Comando Nacional do Transporte, articulado pelo caminhoneiro Ivan Luiz Schmidt, que se apresentou como um dos líderes da ação. A recusa em rebaixar o preço do diesel (o governo ofereceu a garantia de não reajustá-lo por seis meses), porém, emperrou as conversas.

A pressão do governo federal e da Justiça pelo fim das paralisações não inibiu o movimento – apesar das liminares obtidas pela AGU para aplicação de multas, além das 1.100 infrações infligidas pela Polícia Rodoviária Federal –, cuja articulação se manteve pela facilidade de comunicação do WhatsApp. Schmidt afirmou que a mobilização nasceu com um perfil no Facebook e foi mantida pelo aplicativo de mensagens, com adesão de líderes nos pontos de interdição.

A morte de um manifestante na BR-392 na região central do Rio Grande do Sul, atropelado por um colega que tentou furar o bloqueio, entretanto, acirrou o ânimo do movimento no sétimo dia. Em 2 de março, a então presidente Dilma Rousseff sancionou sem vetos a lei nº 13.103/15, que flexibilizou a jornada de trabalho dos caminhoneiros. O efeito imediato foi o arrefecimento da greve já no dia seguinte à sanção, e um buzinaço de encerramento da paralisação na Esplanada dos Ministérios, em Brasília, três dias depois. Onze lideranças entregaram uma pauta com sete reivindicações ao ministro da Secretaria-Geral da Presidência, listadas abaixo:

  • Redução do porcentual do último aumento de PIS/Cofins sobre o óleo diesel;
  • Definição de uma tabela mínima de frete;
  • Linha de crédito no limite de R$ 50 mil com carência de três meses;
  • Reserva de mercado de 40% em produtos transportados no país;
  • Carência de 12 meses em financiamentos de veículos e equipamentos;
  • Criação de um fórum permanente de debates;
  • Perdão das multas e notificações aplicadas durante os 11 dias de paralisação.

No final de abril houve um novo ensaio de paralisações, mas a fraca adesão e a ameaça do governo em utilizar as liminares ainda em vigor obtidas na greve anterior frearam o movimento. De concreto, o governo federal oficializou, por meio da portaria nº 275/15, o Fórum Permanente de Transportes (a CNTA é a única entidade sindical representativa dos autônomos com assento); a ANTT publicou a resolução nº 4.681, que estabelece a realização de audiência pública (ocorrida em 29 de maio de 2015) para colher subsídios à metodologia e parametrização de uma tabela referencial de fretes; e o Conselho Monetário Nacional (CMN) publicou resolução que regulamenta o refinanciamento do Programa Procaminhoneiro, do BNDES, que subsidia a compra de veículos novos.

Em São Paulo, a agência reguladora estadual não autorizou a suspensão do pagamento da tarifa de pedágio a eixos suspensos nas rodovias estaduais concedidas, como determina a lei federal 13.103/15, por considerá-la “juridicamente inaplicável”9. A ANTT também prometeu trabalhar no aprimoramento regulatório da resolução 3.056/09, que dispunha sobre o exercício da atividade por conta de terceiros e mediante remuneração e estabelecia procedimentos para inscrição e manutenção no RNTRC.

Cinco dias com filas de caminhões parados ao longo de pontos estratégicos das principais rodovias do país, em meados de maio de 2018, foram suficientes para desencadear o início do caos, demarcado, no primeiro momento, pelo desabastecimento de combustíveis. E a partir daí, como num “efeito dominó”, vieram outros problemas. Mas como compreender, de fato, a realidade daquele movimento? E como relacioná-lo com a conturbada situação política que atravessava o país desde as manifestações de junho de 2013, que culminaram com o golpe que derrubou a presidente Dilma Rousseff?

CNTA e Abcam se autointitularam publicamente como responsáveis pelo movimento grevista, mas a todo instante surgiram vários indícios da prática de locaute (greve patronal)10. Nesse aspecto concordei, na época, com a opinião do professor Ricardo Antunes, da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), em entrevista à BBC Brasil11, para quem aquele movimento fora um misto de greve e locaute. O próprio governo federal já havia se dado conta do fato e prometeu investigá-lo. Mas se houve de fato locaute, quem estaria por trás desta prática proibida pela Constituição e por qual motivo? E os grevistas, quem são? Motoristas assalariados/comissionados de empresas transportadoras e/ou de frota do setor produtivo ou caminhoneiros autônomos? Se autônomos, agregados ou independentes?

Para tornar o quadro mais nebuloso, foi necessário agregar ao entendimento daquela conjuntura os baixos fretes praticados no país (apesar do discurso hegemônico contrário), comprimindo o ganho dos autônomos; a política de preços da Petrobras (que já se atrelava ao desejo explícito da direita entreguista); e o cabo de guerra político que imperava no Brasil frente às eleições de outubro, deixando o então governo ilegítimo de Michel Temer contra a parede. Desestabilizar o país com o desabastecimento geral (a pior situação excluindo-se o estado de guerra, civil ou por ingerência externa) poderia servir de legitimidade para uma intervenção militar? Esse entendimento já era considerado por alguns analistas, diante do discurso adotado por vários setores do movimento grevista nesse sentido, consciente ou inconscientemente.

Locaute ou mera manipulação política na perversa estratégia bolsonarista?

No calor da intensa greve de 2018, a historiadora Larissa Jacheta Riberti advertiu a esquerda ao não embarcar na utopia da “mobilização ideal”, referindo-se ao movimento dos caminhoneiros12. Segundo ela, o alto grau de fragmentação social e ideológico impedia, entre outros fatores, que houvesse uma pauta unificada. Mas, e agora, quando é visível, desde a eleição do atual governo, em 2018, uma adesão maciça dos caminhoneiros autônomos à escalada bolsonarista? É possível correlacionar os fatos do passado aos eventos do presente?

Observando a luta histórica da categoria, fica explícita a falta de lideranças que, de fato, gozem de legitimidade e condições de agregar em pautas comuns os interesses de um grupo expressivo para o conjunto da economia brasileira, mas cuja própria natureza itinerante da profissão não facilita a sua organização. É fato que as últimas greves evidenciaram os aplicativos de telefone celular como ferramentas e canais poderosos de articulação, mas aí aparece outra questão: a facilidade com a qual a categoria é cooptada, seja pelo empresariado, seja, agora, pelo fanatismo bolsonarista.

Não podemos afirmar que o movimento de bloqueios e paralisações (parciais e totais) desencadeado a partir das manifestações golpistas e antidemocráticas do 7 de setembro tenham vinculações diretas com a prática de locaute, como ocorreu em 2018, embora uma das lideranças dos autônomos tenha declarado que “esse movimento é de cunho político com participação de empresários de transporte e seus funcionários celetistas, e não de transportadores autônomos”13. Antecipadamente, a CNTA veiculou uma nota oficial na qual não apoia nem repudia os atos que estavam marcados, deixando a participação dos autônomos como de sua responsabilidade individual14. As duas principais entidades representativas do setor privado da área de transportes soltaram notas parecidas, condenando as paralisações. No dia 8, a NTC & Logística classificou o movimento como de “natureza política e dissociado até mesmo das bandeiras e reivindicações da própria categoria”, incentivado por “influência de supostos líderes da categoria”15. No dia seguinte, a CNT esclareceu que “desconhece o teor da pauta desses profissionais”, e que enviou ofício à Diretoria-Geral da Polícia Rodoviária Federal (PRF) solicitando a adoção das medidas cabíveis para garantir o direito de ir-e-vir nas estradas do país16.

Mas tudo isso pode ser um grande jogo de cena, pois é sabido que tais entidades apoiaram o golpe contra Dilma Rousseff e, mais, apoiaram as eleições de Jair Bolsonaro com unhas e dentes. Para tornar a análise mais complexa, alguns itens da pauta defendida pelo empresariado do setor, como os altos preços do diesel e o abandono definitivo da tabela referenciada de fretes pela ANTT, estão ainda em aberto. Colocar os autônomos como testas-de-ferro pode até mesmo ser uma estratégia para dissimular a prática de locaute e não aderir a um enfrentamento direto com aquele que eles tanto manifestaram apoio nas eleições de 2018.

Curioso que por trás de entidades-fantoches – teimo a acreditar, apesar de tudo, na seriedade da CNTA – sempre aparece uma figura que fala alto, se proclama o legítimo condutor dos interesses dos autônomos, ganha as manchetes, inunda as redes sociais e depois desaparece (alguns até reaparecem). Foi assim com Ivan Luiz Schmidt (Comando Nacional do Transporte); Wallace Landim (Associação Brasileira dos Condutores de Veículos Automotores/Abrava); Sérgio Reis (tentativa frustrada por próprias lideranças do setor); José Roberto Stringasci (Associação Nacional de Transporte do Brasil/ANTB); Francisco Burgardt, ou “Chicão” (União Brasileira dos Caminhoneiros e Caminhoneiros Patriotas), e um tal de “Zé Trovão”, cuja prisão foi decretada pelo Supremo Tribunal Federal (STF) – mas ontem surgiu a notícia de que ele havia fugido para o México. Nesse típico festival de fanfarrices, o deputado federal Nereu Crispim (PSL-RS), que preside a Frente Parlamentar Mista do Caminhoneiro Autônomo e Celetista, afirmou que Zé Trovão é um oportunista que não representa a categoria, apesar de falar em nome dela, além de ter solicitado às autoridades cabíveis a garantia do tráfego nas rodovias.

O fato é que um dia antes dos atos já havia muitas carretas estacionadas ao longo da Esplanada dos Ministérios (em tempo: as leis locais de Brasília não permitem a circulação de veículos pesados no Eixo Monumental, salvo em condições excepcionais e devidamente autorizadas) e, no dia seguinte, o Brasil amanheceu com vários pontos de bloqueio em Santa Catarina e foi dormir apreensivo, com paralisações ao longo de vários trechos estratégicos de rodovias federais em 15 Estados e alguns sinais de desabastecimento de combustível.

Também surgiram rumores de que muitos autônomos estavam sendo coagidos a parar e engrossar os bloqueios17. Mas coagidos por quem? Fica a pergunta, ainda sem resposta, mas diante de indícios de que empresários do agronegócio (que utilizam o transporte rodoviário em escala maciça para o escoamento da safra de grãos) estejam financiando e até organizando os atos. Apenas uma certeza resta desse verdadeiro cipoal de lideranças e entidades espúrias, interesses obscuros e antidemocráticos: o sepultamento do “Caminhoneiro do Amor”, eternizado numa canção de Sula Miranda. Bolsonaro sabe que tem nas mãos uma parcela significativa da categoria – ontem mesmo desautorizada por ele próprio a manter os bloqueios –, que será cada vez mais identificada como “caminhoneiros do ódio”.

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1 A referida lei ainda distingue a Empresa de Transporte Rodoviário de Cargas (ETC) como “pessoa jurídica constituída por qualquer forma prevista em lei que tenha no transporte rodoviário de cargas a sua atividade principal”. Ocorre que a maior parte das transportadoras opera em colaboração com autônomos agregados e/ou independentes, subcontratando-os. Aí reside uma “cadeia de subcontratações” bastante complexa do ponto de vista operacional e territorial que, muitas vezes, também esconde uma perversidade social, pois funciona numa tênue linha de interação entre ETCs e TACs que acaba demarcando o papel de comando das grandes transportadoras.

2 Entrevista concedida ao autor em 9 de agosto de 2011 na sede da entidade, em Curitiba.

3 Refere-se a uma prática antiga e comum na atividade, uma espécie de vale desprovido de permissão legal, utilizado como “ordem de pagamento” pelo contratante do transporte em favor do autônomo. O problema é que, ao descontar esse vale – via de regra em postos de combustível indicados pelo contratante, o que caracteriza “venda casada” –, era cobrado ágio sobre o seu valor de face, e o pagamento em dinheiro do saldo restante era condicionado à aquisição de outros produtos e serviços no estabelecimento, gerando um achatamento no ganho dos autônomos.

4 Vide KAPRON, Rafael Antônio. História do trabalho dos caminhoneiros no Brasil: profissão, jornada e ações públicas. Dissertação de Mestrado em História, Universidade Federal de Pelotas (Unipel), 2012.

5 Fenacam, Fecam e Fetrabens. “Caminhoneiros do Brasil: compromisso com o futuro e com a verdade”, 2004 (mimeo).

6 Extraído de <www.cntabr.org.br/quem-somos/>. Acesso em: 11 set. 2015.

7 Ibidem.

8 DANTAS, Tiago. Caminhoneiros se mobilizaram pela internet, jornal O Estado de S. Paulo, Metrópole/A21, 7 jul. 2013.

9 BORGES, André. Governo paulista diz que não dará isenção a caminhões em pedágio, jornal O Estado de S. Paulo, Economia/B4, 18 abr. 2015.

10 Cabe lembrar que na greve de 2012 a CNTTT já havia denunciado a ocorrência de locaute. Vide <https://memoria.ebc.com.br/noticias/brasil/2012/07/cntt-denuncia-empresas-do-setor-de-transporte-por-greve-patronal-e-coacao>. Acesso em: 6 set. 2021.

11 Vide <http://www.bbc.com/portuguese/brasil-44256413>. Acesso em: 25 maio 2018.

12 Vide <https://www.conversaafiada.com.br/brasil/esquerda-nao-pode-embarcar-na-utopia-da-mobilizacao-ideal>. Acesso em: 26 maio 2018.

13 SABINO, Marlla, PUPO, Amanda e DUARTE, Isadora. Caminhoneiros realizam protestos em estradas do País, jornal O Estado de S. Paulo, Política/A14, 9 set. 2021.

14 Vide <https://cnta.org.br/nota-oficial-sobre-as-manifestacoes-de-07-de-setembro-de-2021/> Acesso em: 7 set. 2021.

15 Vide <https://www.portalntc.org.br/nota-de-repudio/> Acesso em: 9 set. 2021.

16 Vide <https://cnt.org.br/agencia-cnt/cnt-nao-apoia-nenhum-tipo-de-paralisacao-caminhoneiros> Acesso em: 9 set. 2021.

17 Vide <https://revistaforum.com.br/politica/bolsonaristas-atacam-caminhoneiros-e-forcam-paralisacoes/> Acesso em: 8 set. 2021.

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