Marçal: como chegamos ao “momento Waldo”

Por trás do avanço de candidaturas bizarras está a lógica ultra-imediatista e infantilizante das redes sociais. Mas há outro fator: um contingente cada vez maior de órfãos do Estado, para quem a esquerda ainda não propõe horizonte real

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Por Glauco Faria

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Em seu livro, Engenheiros do Caos, o ensaísta ítalo-suíço Giuliano da Empoli lembra a certa altura de um episódio da série de ficção Black Mirror que foi ao ar em 2013 chamado “The Waldo Moment”.

Trata-se da história de um ator e comediante frustrado, Jamie Salter, que executa os movimentos e a voz de um urso azul de desenho animado, Waldo. O personagem comanda um programa noturno em que entrevista políticos, geralmente para promover bullying com os convidados.

Submeter políticos e pessoas poderosas a situações humilhantes é uma fórmula de sucesso comercial, e a popularidade do personagem cresce. Um dos entrevistados que foi alvo das provocações de Waldo, o conservador Liam Monroe, entra em uma eleição suplementar para se tornar membro do Parlamento britânico e o produtor de Jamie, Jack Napier, sugere que Waldo também se candidate.

Graças ao apoio de parte do eleitorado, o personagem de desenho animado é admitido na corrida eleitoral. Como destaca o livro, Jamie não se sente confortável com a situação: “Não tenho ideia de como responder a uma pergunta séria”, confidencia. “Mas ninguém pede para você fazer isso”, rebatem os produtores, “você é o interlúdio cômico”.

No debate entre os candidatos, Monroe tenta trazer a realidade da candidatura virtual, lembrando que aquele espectro é um ator fracassado de 33 anos, sem nenhum trabalho relevante na carreira, que dá voz e vida ao urso azul. “Sua presença no debate desvaloriza a nossa democracia”, diz ele, algo que, provavelmente, eleitores brasileiros e de outros países já ouviram em encontros do tipo.

Após vacilar por um instante, o personagem responde com seu estilo agressivo: “Vá ser examinado, Monroe. Você é menos humano que eu, e eu sou um urso falso com pau turquesa. Vocês, políticos, são todos iguais, a culpa é sua que a democracia se tornou uma zombaria e ninguém sabe para que serve!”. Rapidamente, o “corte” viraliza nas redes sociais, alcançando milhões de visualizações.

Waldos da vida real

Não é difícil identificar candidatos como o urso azul do episódio da série de ficção. Pesquisadores e articulistas já o compararam desde então a Donald Trump e Jair Bolsonaro, por exemplo. Mais recentemente, também foi visto como similar ao ex-coach Pablo Marçal, e talvez aí esteja a sua identificação mais forte, já que é um personagem, assim como Waldo, nascido no meio virtual.

Pegue-se o exemplo de Bolsonaro. Suas campanhas de 2018 e 2022 tiveram uma inegável força propulsora no uso das redes sociais e dos algoritmos das plataformas que favorecem o discurso de ódio e reforçam sua lógica de inimigos internos, identificados com a “esquerda/comunismo”, ainda que não sejam de fato. A disseminação de mentiras em ambientes virtuais quase sem filtros e com pouca regulação, no entanto, não nasce com o hoje ex-presidente.

Antes dele, o presidenciável do PSDB, Aécio Neves, se valeu nas eleições de 2014 da adesão de grupos articulados e poderosos que já constituíam um núcleo de extrema direita cada vez mais ativo no Brasil. Isso acontecia em especial no Facebook, principal rede durante a maior parte da segunda metade do século 20. Por mais que fosse uma aliança oportunista, já que o tucano era o chamado político tradicional, o objetivo ali era evitar uma eventual vitória das candidatas tidas como “comunistas” pelos extremistas, Dilma Rousseff e Marina Silva.

Após as eleições, com o crescimento das mobilizações contra a presidenta eleita logo no início de seu segundo mandato, esta rede, que já se articulava de forma mais efetiva, encontrou alguém mais “autêntico” para servir a suas pretensões. Afinal, o deputado federal Jair Bolsonaro era um ícone de um segmento que exaltava a ditadura militar e, ao contrário de algumas figuras egressas do regime, não só admitia a tortura como a justificava e a exaltava, como ficou patente na votação da abertura do processo de impedimento de Dilma.

Sua renovada postura anti-esquerdista, que não era tão convicta assim quando o parlamentar fazia parte de forma mais orgânica do Centrão, se tornou um ativo valioso, assim como seu discurso antipolítica. Ainda que fosse alguém que, após sair do Exército, só tenha vivido da sua carreira parlamentar, o fato de ter uma atuação à margem das grandes articulações e decisões do centro do poder davam a ele a desculpa ideal para que usasse o figurino antissistema que tanto agradou e até hoje agrada sua base. Se até um bilionário como Donald Trump pode ser visto como alvo deste “sistema”, por que não um obscuro deputado?

Inelegível, o ex-presidente não tem hoje um sucessor, até porque nenhum de seus filhos se mostrou à altura de defender seu legado. Mas é uma base que se entrelaça e se solidifica em torno de valores e de um ideário que permite múltiplas figuras, além do líder extremista.

A pesquisa Bolsonarismo sem Bolsonaro, publicada em abril, já antecipava aquele que se tornou um ponto central para a extrema direita brasileira: a existência de protagonistas que não contem, para ascender, necessariamente com a bênção do ex-presidente. O estudo conduzido pelas pesquisadoras Camila Rocha, Esther Solano e Thais Pavez adotou uma abordagem qualitativa com eleitores bolsonaristas de três capitais, São Paulo, Rio de Janeiro e Belo Horizonte, e conseguiu detectar apreensões desta base, como a desconfiança em relação a possíveis candidatos ungidos pelo ex-presidente.

“O apoio de Bolsonaro a determinadas candidaturas nas respectivas cidades se mostrou uma informação relevante para orientar a intenção de voto, ainda que não seja suficiente. Um exemplo nesse sentido foi o comportamento de João Doria, que recebeu o apoio de Bolsonaro, mas depois rompeu com o político. O critério central para a escolha de candidaturas é a defesa dos valores da família, a posição antiaborto, a defesa das armas, a crítica à ideologia de gênero etc., inclusive para avaliar aquelas que se localizam à direita no espectro político, mas não necessariamente recebem o apoio do ex-presidente.”

É assim, pela adesão a valores caros a este segmento, que emerge outra figura na pesquisa que ajuda a explicar o atual momento da extrema direita. “O deputado federal Nikolas Ferreira (PL) também desperta entusiasmo entre apoiadores de Bolsonaro, principalmente em virtude de sua atitude combativa; ‘vai pra cima’, ‘fala’, ‘briga’. Os entrevistados identificam em Nikolas um desejo de garantir o bem-estar da nação. Nikolas é visto como um líder, que poderia inclusive capitanear manifestações de massa no futuro, porém, hoje, é considerado jovem demais para concorrer como candidato à presidência em 2026.”

Nikolas é um “nativo digital” e surgiu no cenário político como influenciador, assim como Pablo Marçal. Ambos apostam na antipolitica, no anticomunismo, aderem publicamente a valores tidos como “cristãos”, valorizam o chamado “empreendedorismo”, que vende sonhos de progresso material e entregam trabalho precarizado e mal remunerado. E são “bons de briga”, afinal, se o sistema é tão terrível assim, como tergiversar ou ser dócil com ele? Desta forma, atitudes ofensivas e agressivas passam a ser vistas como uma espécie de legítima defesa contra as “elites”, a “casta”, os “políticos” ou a categoria que represente o inimigo.

Se os extremistas trocaram rapidamente o Aecio de 2014 por alguém mais “autêntico” e adequado às suas aspirações, agora é Bolsonaro que corre o risco de ser abandonado por parte dos seus, ao menos em São Paulo, por uma figura mais identificada não só com valores desta extrema direita, mas também a um novo modo de pensar que modifica as escolhas políticas.

Imediatismo e irreflexão

Tratar a dita “nova política” dissociada de todas as transformações que modificam a sociedade e a própria forma de pensar das pessoas pode resultar na incompreensão de parte do fenômeno que conquista eleitores no Brasil e em outros países. E analisar o cenário sob lentes que não enxergam mais o essencial.

Parte do sucesso da extrema direita é a oferta de soluções fáceis para problemas que não são simples. Alguns, como Pablo Marçal, chegam ao paroxismo de assumir que, de fato, não têm sequer plano de governo definido — uma aposta redobrada no ceticismo quase cínico de muitos que acreditam não poder contar com o Estado, mas apenas consigo mesmo. Daí, vale mais uma espécie de “guru” que renove suas esperanças imediatas e sua autoestima ferida do que um político que efetivamente promova… políticas.

“Acostumamo-nos a receber uma resposta instantânea aos nossos pedidos e desejos. Não importa qual fosse o pedido, ‘há um aplicativo para isso’, exigia um anúncio da Apple. Uma forma de impaciência legítima tomou conta de todos nós: não estamos mais dispostos a esperar. Google, Amazon e Deliveroo nos acostumaram a ter nossos desejos satisfeitos antes de formulá-los completamente. Por que a política deveria ser diferente? Como é possível tolerar os rituais demorados e ineficazes de uma máquina governada por dinossauros, imune a qualquer pedido?”, questiona, em Engenheiros do Caos, Guliano da Empoli.

A transposição desse imediatismo irrefletido presente no cotidiano (e na cabeça) da maioria para a política se fez de forma rápida, e isso explica em parte o sucesso eleitoral da extrema direita. Mas o que a candidatura de Pablo Marçal à prefeitura de São Paulo é uma etapa posterior. Isso porque uma eleição municipal não é uma eleição qualquer.

Mesmo a eleição de um presidente, que as pessoas veem a uma distância razoável de si, pode representar um voto à semelhança daqueles dados em programas de reality show, talvez o exercício mais efetivo e frequente de escolha de um percentual importante da população. Assim, não foram poucos os que diziam votar em Bolsonaro em 2018 dizendo que “ele não faria as coisas que ele diz que vai fazer”, quase uma anti-escolha onde se privilegia a identidade com o autor em detrimento da sua (não) obra.

Situação similar acontece em votos para o parlamento, onde candidatos se sentem livres para buscar seus nichos, sem necessariamente se preocupar em desagradar o senso comum ou o pensamento da maioria. Tanto que estes parlamentares, quando concorrem a cargos no Executivo, buscam suavizar seus discursos e suas posturas para conquistar a maioria do eleitorado.

Assim, a grande novidade que representa Marçal, na prática, é invadir um terreno que até então era pouco permeável a polarizações ideológicas. Os pleitos municipais sempre se relacionaram mais com necessidades locais, o trabalho de zeladoria, o transporte, as condições de ruas e calçadas, a coleta de lixo e questões mais palpáveis para o eleitor. Tanto que, em 2020, apesar de ter tido uma vitória expressiva para a presidência da República e elegendo uma bancada ruidosa de deputados e senadores, o bolsonarismo não repetiu o sucesso na disputa pelas prefeituras. Dos 13 candidatos nas capitais apoiados pelo então presidente, apenas dois foram eleitos, com nove caindo já no primeiro turno.

Uma eventual ida de Marçal ao segundo turno ou mesmo uma possível vitória seriam o rompimento de uma última barreira sanitária na política eleitoral. Seria a tradução de uma insatisfação e descrédito das instituições em seu nível mais elevado, já que a ação da prefeitura afeta o cotidiano do cidadão de forma direta. E, para os extremistas, seria um sinal de que a aposta na “moderação”, ao menos no discurso aparente, não é mais necessária nem mesmo em cargos e funções que antes dependeriam dessa sintonia fina para triunfar.

E, a cada campanha bem sucedida ou quase de extremistas, o corolário de ideias reacionário se solidifica e, não apenas na próxima eleição, mas no dia a dia, estará ali, resiliente e acuando qualquer ideal de esquerda ou progressista. Uma batalha de ideias que é travada em uma dinâmica regulada por grandes plataformas, que favorecem o discurso do ódio e pouco se importam com aquilo que nelas circula, contanto que lucrem.

Como assinala Empoli, “apesar das conquistas dos engenheiros do caos, a verdadeira vantagem competitiva de Waldo não é de natureza técnica. Está nas características do conteúdo em que se baseia a propaganda populista. Indignação, medo, preconceito, insulto, polêmica racista ou sexista se espalham na web e geram muito mais atenção e engajamento do que os debates soporíferos da velha política. Os engenheiros do caos estão bem cientes disso”.

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