Guerra comercial: por que Trump vai perder
No plano geopolítico, ele é desafiado pela China e vê seus adversários crescerem no México e Canadá. Na economia, suas tarifas rompem cadeias produtivas, desequilibram relação entre moedas e colocam países à beira de crises financeiras. Por isso, os recuos já começaram
Publicado 06/03/2025 às 19:53 - Atualizado 06/03/2025 às 19:54

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O mundo é dos fortes. Para vencer, é preciso estar disposto a impor. Quem não submete, será subjugado. Por orientar-se a partir de preceitos éticos como estes, Donald Trump desencadeou no início desta semana uma nova etapa de sua guerra comercial contra o mundo. Na terça-feira, entrariam em vigor tarifas aduaneiras de 25% sobre todos os produtos vendidos a seu país pelo México e pelo Canadá – além de uma nova sobretaxa de 10% contra a China. No mesmo dia, ao discursar pela primeira vez no Congresso, o presidente dos EUA anunciou que sua cruzada está apenas começando e que países como o Brasil serão as próximas vítimas. Os atos e as falas impressionam, num mundo acostumado à letargia cínica dos regimes liberais e a uma esquerda que tarda tanto, no Ocidente, a renovar seu projeto histórico. Mas Trump corre enorme risco de perder a guerra comercial que ele próprio iniciou. Embora seja muito cedo para um prognóstico definitivo, já começaram a germinar, no rastro de seus últimos atos, as sementes de seu fracasso.
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Os primeiros sinais estão no terreno da Geopolítica e a voz mais dura partiu da China. Nesta quarta-feira (5/3), menos de 24 horas depois de Trump anunciar as novas sanções, a embaixada de Pequim em Washington rebateu em termos ásperos o pretexto usado pelo presidente para decretar a medida. Seu país, afirmou a representação em rede social, não mantém complacência alguma com a produção de fentanil, droga anestésica cujo abuso mata quase cem mil pessoas ao ano nos EUA. No entanto, “se é guerra o que Washington deseja — seja guerra de tarifas, guerra comercial ou qualquer outro tipo de guerra –, estamos prontos para lutar até o fim”… Não foi um escorregão verbal. Pouco depois, em Pequim, o próprio Ministério das Relações Exteriores chinês respaldava seus diplomatas: “Os Estados Unidos, e ninguém mais, são responsáveis pela crise de fentanil em seu país. (…) Intimidação não nos amedronta. Bullying não funciona conosco”.
A China mostrou que não teme o valentão. A reação mais espetacular, porém, foi a do México. Embora declarando-se aberta a negociações com a Casa Branca – o que viria de fato a ocorrer –, a presidenta Claudia Sheinbaum revelou que seu governo prepara represálias. E para mostrar que fala sério, convocou o povo às ruas. Na manhã do próximo domingo, no gigantesco Zócalo da capital, Cláudia vai encontrar-se com uma “assembleia de defesa da soberania”, à qual comunicará seus próximos atos. O encontro foi mantido mesmo após os primeiros recuos de Trump. A popularidade da presidenta beira os 80%. Para evitar isolamento, ela tem mantido comunicação permanente com as federações empresariais mexicanas, que até agora não cederam ao servilismo e endossam sua atitude.
Mas algo notável está em curso também no abastado Canadá. Ainda na terça, o primeiro ministro Justin Trudeau apressou-se a sancionar produtos norte-americanos – de pasta de amendoim a caminhões –, confirmando a postura altiva das últimas semanas. No período, o Partido Liberal, que ele hoje lidera, reduziu dramaticamente a desvantagem diante do partido Conservador, nas pesquisas de intenção de voto (eleições parlamentares ocorrerão até outubro, no máximo). Mais notável: o repúdio às políticas da Casa Branca estendeu-se aos conservadores, que não querem se descolar do eleitorado. “O presidente Trump esfaqueou o maior amigo dos EUA pelas costas”, disse o líder do partido, Pierre Polièvre, em discurso no Parlamento.
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No campo da Economia, os revezes foram igualmente duros. Na terça-feira, um texto da revista Economist demonstrava que as tarifas disparadas contra México e Canadá ricocheteariam sobre os consumidores e corporações norte-americanas e de seus aliados. Os dois países exportam, juntos, 3,6 milhões de veículos ao ano para os EUA. A vasta maioria é produzida por empresas como Ford, Stellantis (Chrysler, Fiat, Jeep e outras marcas), GM, Nissan, Toyota e Volkswagen. A sobretaxa de 25% teria efeitos dramáticos e imediatos. Mas não é só, prossegue a matéria. A indústria automobilística da América do Norte é tão integrada que algumas partes automotivas atravessam fronteiras seis vezes, antes de serem incorporados nos automóveis ou caminhões. As sanções eram receita certa para um caos nas cadeias produtivas. Na quarta-feira, as ações das corporações atingidas despencaram nas bolsas de valores de Nova York, Frankfurt e Paris. Bastaram poucas horas de pressão para Trump recuar, parcialmente. No mesmo dia, ele emitiu ordem suspendendo por 30 dias as sobretaxas.
Na quinta-feira, novo passo atrás, desta vez por viés geopolítico. Após diálogo telefônico com Claudia Sheinbaum, Trump recuou também, temporariamente, da maior parte das tarifas contra produtos mexicanos. A presidenta terá muito o que comemorar no próximo domingo, no Zócalo – e ganha tempo precioso para preparar o país contra os efeitos de uma possível retomada das medidas.
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Tarifas aduaneiras e outras medidas protecionistas não devem, em condições normais, ser vistas como um tabu. São um instrumento eficaz para países que, tendo se atrasado na industrialização ou no desenvolvimento de serviços avançados, desejam recuperar o tempo perdido. Defendidas originalmente por economistas como Friedrich List, foram empregados com sucesso, entre muitos outros, pela Alemanha e Japão, nos séculos XIX e XX – ou pelo Brasil, entre as décadas de 1930 e 80. Hoje, seria extremamente saudável articular, internacionalmente, um sistema de proteções que reduzisse o abismo entre o poder e a sofisticação econômica dos países, e o bem-estar de suas populações.
Mas estas políticas, graduais e acompanhadas de planejamento, diferem radicalmente do voluntarismo extremo de Trump, e da condição dos EUA – não um país em desenvolvimento, mas o centro do sistema financeiro mundial.
Outro artigo de Economist chama atenção para o nonsense do desejo expresso pelo presidente em sua fala ao Congresso em 4/3: o de adotar “tarifas recíprocas” às dos parceiros comerciais dos Estados Unidos. Cada país estabelece suas tarifas aduaneiras segundo realidades e politicas específicas, argumenta a revista. A Colômbia, por exemplo, impõe 80% de imposto sobre o café que eventualmente importa. De que forma Washington estabelecerá “reciprocidade”? Além de impraticável, tal atitude gerará retaliações inevitáveis e produzirá o caos nas relações internacionais de comércio.
Há críticas mais sofisticadas. O economista Michael Hudson fala, em “Imperialismo americano a todo vapor”, nos distúrbios e risco de crises financeiras que os planos de Trump podem produzir. Devido ao enorme peso dos EUA na economia mundial, cada investida da Casa Branca produz sobressalto na cotação das moedas – em geral desvalorizando, diante do dólar, o dinheiro dos países atingidos. Como a maior parte das nações do Sul Global está superendividada, fazer frente aos juros desta dívida (pagos em dólares) exigirá esforço brutal das populações, resultando em perda de poder aquisitivo, serviços públicos e direitos sociais. A única alternativa civilizada, propõe Hudson, será repudiar o pagamento das dívidas. Mas quanto sofrimento será necessário este passo?
Já Michael Roberts, outro economista formado na tradição marxista, parece ter decifrado a espantosa cegueira ideológica que preside os atos de Donald Trump – tanto a guerra comercial quanto o ataque ao serviço público. O presidente “vê os Estados Unidos como apenas uma grande corporação capitalista, da qual é o executivo-chefe. Assim como fazia quando era o mandachuva em ‘O Aprendiz’, ele pensa estar tocando um negócio, e poder empregar e demitir à sua vontade. Tem um grupo de diretores que aconselham e ou lançam apostas (hoje, os oligarcas norte-americanos; antes, os assessores na TV). As instituições do Estado são obstáculos. O Congresso, os tribunais, os governos estaduais etc devem ser ignorados ou levados a seguir as instruções do executivo-chefe…”
Esta visão, e os enormes riscos de selvageria nela implícitos, estão sendo felizmente enfrentados por atitudes como as do México, da China e do Canadá. Mas será ótimo se outras forças se juntarem ao combate.
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Apontado nominalmente como um dos próximos candidatos ao abalroamento, o Brasil tem conservado estranho silêncio. Não se trata de propor uma disputa antecipada com os EUA, como frisou há dias, no programa Outra Manhã, o economista Paulo Kliass. Mas, conforme também lembrou ele, de abrir debate com a sociedade, alertar para os riscos, evitar mais uma atitude passiva.
Há três semanas, quando as primeiras medidas de Trump (restrições à importação de aço e alumínio) atingiram lateralmente o país, aventou-se, como contramedida, impor um tributo especial às corporações que dominam o espaço da internet. São todas norte-americanas. Todas recorrem a medidas de evasão fiscal, como transferir lucros para o exterior. Todas estão envolvidas nos atos abusivos e antidemocráticos do presidente dos EUA. E, acima de tudo, todas empenham-se em transformar o espaço público em seu território privado, a serviço não da democracia e da informação cidadã mas da multiplicação de lucros.
A tributação estava em estudos, há meses, no Ministério da Fazenda. Não tinha caráter regulador, mas apenas arrecadatório e muito modesto (pretendia-se obter cerca de R$ 8 bilhões ao ano). Ainda assim, o ministro apressou-se a descartá-la.
Se for capaz de enxergar o que se passa no México, o presidente Lula ficará tentado a alterar esta posição: a tributar as Big Techs e iniciar medidas que estabeleçam controle social sobre elas. Obterá três resultados muito desejáveis. Estabelecerá diálogo direto com a população (de quem tem se afastado), apelando para o justo sentimento de soberania nacional. Poderá desmascarar a ultradireita, que sustenta um falso “nacionalismo” mas dele se afasta diante de qualquer aceno de Trump. E retomará algum protagonismo na cena internacional, da qual anda distante.
Recuperar a internet, salvá-la da captura promovida pelas corporações e reconvertê-la em praça cidadã será essencial para a vida política brasileira, nos próximos anos. Tornou-se, também, aspiração difusa (mas real) de uma parcela importante das populações do Ocidente, extenuadas pela disputa incessante pela atenção, pela necessidade de permanecer conectado permanentemente, pelo consumo psíquico imposto pelas plataformas.
Há combates de que não se deve fugir. Derrotar Trump e seu projeto de barbárie é – como se viu – possível. Mas a disputa será longa e árdua, envolverá múltiplas batalhas, e a vitória não está assegurada. Diante da arrogância do presidente dos EUA e dos bilionários que o seguem, o Brasil tem uma primeira contribuição relevante a oferecer.