EUA: Censura e guerra cultural nas bibliotecas

Documentário The Librarian denuncia um obscurantismo ignorado. Já há milhares de livros vetados. Alvo principal são vozes negras e feministas. Mas, em defesa do direito à leitura, trabalhadoras resistem – lutando contra ameaças e demissões

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Quem diria que seriam as bibliotecárias a defender o que resta de liberdade nos Estados Unidos? A questão, que parece retórica, é a dura realidade retratada no documentário The Librarians (2025), recentemente exibido sem alarde na 49ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo, e aqui traduzido como Os Bibliotecários. O filme expõe a fratura de valores civilizatórios que assola o país e se reverbera mundo afora, a partir da censura a livros em bibliotecas — escolares e públicas.

Apesar de não ser uma obra-prima em termos de linguagem, o mérito do documentário é encarar o epicentro de uma guerra cultural que se intensificou com a volta de Donald Trump à cena política. Por meio de depoimentos, The Librarians revela a rotina de profissionais que enfrentaram o início dessa onda de banimento a títulos com temáticas de gênero, raça e LGBTQIA+, incluindo clássicos da literatura americana, como toda a obra da escritora Toni Morrison, Nobel de Literatura e primeira mulher negra a receber a honraria.

A escalada da censura teve um marco em 2021, quando uma lista de centenas de títulos foi apresentada no Texas por Matt Krause, um aliado político de Ron DeSantis, governador na ocasião e que se declara inimigo da (dita) “cultura woke”. Bibliotecárias de pequenos condados, ao desafiarem a censura, foram demitidas, ameaçadas de morte e, em alguns casos, julgadas sob acusações falsas de apologia à pedofilia. Da mais ingênua à mais sagaz, todas perceberam o grave curso da fratura civilizatória em andamento.

A convicção dessas profissionais reside na base histórica de sua categoria: a conexão das bibliotecárias com um projeto de nação, enaltecidas até mesmo em discursos oficiais do ex-presidente Dwight Eisenhower, na vigência de seus mandatos entre 1953 e 1961, como força de trabalho essencial nas Public Library Schools. O filme traz cenas de arquivo valiosas, lembrando o papel da profissão na história da nação potência por meio da universalização do livro e da leitura nas redes de bibliotecas das escolas públicas. Tudo isso em franco conflito com excertos do filme Fahrenheit 451 (1966), de François Truffaut e baseado no romance homônimo de Ray Bradbury, e o registro audiovisual de uma sessão de censura a livro durante o macarthismo.

Uma das bibliotecárias vilipendiadas, mas que não se deixou abalar, aponta para o cerne da questão: as conexões entre o alastramento da censura e a presença crescente, e muito bem financiada, da organização ultraconservadora Moms for Liberty.

Formado majoritariamente por mulheres brancas de uma classe média empobrecida, o grupo organiza eventos coléricos em todo o país contra livros e autores que, segundo elas, fariam seus filhos se sentirem “culpados por serem brancos, héteros”, enfim. Os eventos acirram ânimos e criam justificativas “morais” para que seus adeptos ajam com desenfreada violência, questionando se a organização, que recebeu figurões como Donald Trump, antes de reeleger-se, conta apenas com a venda de camisetas de dez dólares para promover atos com milhares de pessoas.

O que o filme não aprofunda, mas a imprensa internacional e brasileira — como o jornalista Jamil Chade, correspondente nos EUA, citando a ONG PEN America — já reportou, é que a censura a livros por lá federalizou-se com a volta de Trump à presidência e, ainda no início de 2025, ultrapassou a marca de 16 mil títulos banidos. Grande parte dos livros retirados trata de questões de raça, do antirracismo, de gênero, sexualidade e das lutas LGBTQIA+, todas permeadas por uma chaga diante da qual poucos estadunidenses não capitulam: as questões de classe e as imensas desigualdades sociais que escancaram a mentira do American Way of Life.

É um erro tratar o que ocorre nos EUA como mero pitoresco. Ao se focar apenas em enfrentamentos individuais e não mencionar entidades e instâncias que defendem liberdades democráticas, o filme tangencia o problema. A atitude pode ser um indício de como muitos relativizam a violência por terem crescido sem questionar que a própria nação se tornou potência minando democracias mundo afora.

A lição é clara: nenhuma linguagem — nem a audiovisual, nem a de programação, tampouco a documental, que diz respeito a processos de organização e recuperação de fontes de informação, que pode facilitar ou condenar ao esquecimento uma série de trabalhos e pesquisas bem fundamentados por conta, por exemplo, das palavras-chave com que são indexados — é neutra. O avanço da tirania não é percebido apenas nos regimes autoritários, mas em democracias corroídas por ações orquestradas de agrupamentos políticos que colocam sua sede de poder acima de todos os direitos fundamentados por valores civilizatórios.

“The Librarians” (2025) merece ser visto e debatido por todos os profissionais de Comunicação, Biblioteconomia e Ciência da Informação, e por qualquer pessoa comprometida com os preceitos filiados à tradição iluminista que geraram a Bill of Rights, que traz as dez primeiras emendas constitucionais dos Estados Unidos, e inspiraram a própria Declaração dos Direitos do Homem com a Revolução Francesa (1789) e a Declaração Universal dos Direitos Humanos (1948). É importante destacar que a real liberdade de expressão, de pensamento e de associação já constam das cartas mais antigas e o acesso à informação estabelecido no artigo 19 desta última e igualmente reconhecido pela Constituição Federal do Brasil (1988). Afinal, as eleições presidenciais de 2026 no Brasil serão decisivas para o futuro da nossa própria democracia, e a história dos EUA serve de alerta imediato.

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