Censo e negacionismo: quantos somos afinal?

Centenas de municípios registraram diferenças entre projeções populacionais e o recenseamento. Curiosamente, as cinco cidades que mais “encolheram” votaram em Bolsonaro. Poderia haver relação entre este fenômeno e discurso anticiência?

Foto: Ascom IBGE
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Os resultados do Censo – embora ainda restritos à contagem da população e do número de domicílios – têm causado espanto e despertado dúvidas, questionamentos e algumas reivindicações.

Ainda não é possível desenvolver explicações precisas sobre o movimento das curvas populacionais, tanto para cima como para baixo. Entretanto, o cenário político do país, nos últimos quatro anos de gestão absolutamente catastrófica, com destruição de órgãos de Estado e, principalmente, de pesquisa e ciência, pode auxiliar as análises de sociopolíticas, mesmo que as explicações demográficas fiquem para mais tarde.

O atraso na realização do Censo – prevista para 2020, mas só iniciada em 2022 – e o corte de recursos anunciaram-se, de imediato, como um abismo a ameaçar, sobretudo, os municípios e a implementação de políticas públicas realistas.

Falava-se (os sensatos) em apagão estatístico, uma vez que os resultados da sondagem do IBGE constituem o melhor retrato estatístico da diversidade da população brasileira e da heterogeneidade do país. Sem eles não há retrato nítido das localidades, não se conhecem os agrupamentos de idosos, adultos, crianças, homens, mulheres, povos originários, quilombolas, perfil de cor ou raça por autodeclaração, composição religiosa – entre tantas outras características –, essenciais para balizar as ações de agentes públicos e privados. Quando não baseados em dados da realidade, os recursos destinados à saúde pública – ou a quantidade de vacinas a ser distribuída ou de equipamentos necessários à educação – podem, por exemplo, não suprir as necessidades dos municípios.

População e recursos

Os efeitos danosos da política de negacionismo e de desmonte das instituições de pesquisa sobre os municípios, especialmente no que tange ao Censo, eram previsíveis, visto que o coeficiente de transferência de recursos da União por meio do Fundo de Participação dos Municípios (FPM) é estabelecido de acordo com o número de habitantes. Os impactos mais relevantes recairiam nas menores unidades urbanas que dependem, em maior proporção, desse repasse para a cobertura das despesas. Sete a cada dez cidades do país têm o FPM como sua principal receita.

A despeito disso, muitos prefeitos e entidades representativas de municípios declararam apoio ao ex-presidente Bolsonaro no segundo turno da última eleição presidencial. Alegar desconhecimento da visão do ex-presidente sobre a ciência, pesquisas e instituições públicas não é possível, dado que suas ações nunca foram escondidas, particularmente nos anos de pandemia.

Ainda assim, bastou a divulgação dos primeiros resultados do Censo para alguns olhos se abrirem para a realidade e indagações e indignações colocarem em dúvida as estatísticas e a confiabilidade do IBGE, cuja reputação sempre foi inquestionável em governos anteriores ao do ex-presidente.

O discurso negacionista sobre a ciência e as instituições públicas voou Brasil afora e foi semeado em muitas localidades por gestores municipais e estaduais que, mesmo conhecendo os efeitos nefastos de seus apoios e de suas propagações, parecem ter acreditado que a fatura demoraria a chegar. Mas eis que os resultados do Censo frustraram as expectativas de muitos, especialmente em ano que antecede eleições para prefeito.

Vários municípios haviam contabilizado, em 2022 e até o início deste ano, dados populacionais diferentes dos resultados oficiais publicados pelo IBGE agora em junho. Dentre eles, grandes cidades e, até mesmo, algumas capitais (num total de 2.397 localidades) tiveram redução populacional.

Estudo recente realizado pela Confederação Nacional de Municípios (CNM) aponta que, desse universo, 770 localidades terão menor coeficiente de transferência do FPM, com impacto óbvio no montante do repasse. Entretanto, uma lei assinada pelo presidente Lula em junho deste ano (LC 198/2023) estabeleceu um intervalo de transição de 10 anos, com reduções escalonadas, para que essas cidades passarem a receber recursos transferidos com base em coeficientes inferiores ao até então auferidos. Por outro lado, as localidades que pontuaram crescimento populacional receberão mais recursos já nos próximos repasses.

Disputa política e pesquisa

Com o intuito de traçar algum ponto convergente entre o contexto político dos últimos quatro anos e os resultados das localidades que mais perderam habitantes e das que apresentaram maior índice de retração – apesar das informações do levantamento ainda não estarem consolidadas –, montamos um quadro composto pelos resultados do Censo 2022 e do segundo turno das eleições. A hipótese é que o discurso negacionista reverberou em seus seguidores, levando-os a não responder ao levantamento populacional e, assim, contribuindo, mesmo que parcialmente, para a redução do número de moradores registrados.

O estudo da CNM aponta as cinco cidades que registraram maior redução populacional (em números absolutos de habitantes) e as cinco que pontuaram maiores índices de retração (expressos em percentual). Isso porque os municípios que perderam mais habitantes não são necessariamente aqueles que apresentam maior retração percentual, pois essa relação se dá em razão do tamanho da população total da localidade. Portanto, um município pode, por exemplo, perder 50 mil habitantes e isso representar 5% da população total de um milhão de residentes. Por outro lado, uma localidade pode igualmente perder 50 mil habitantes e isso representar 50% do universo de 100 mil moradores.

Entre os municípios que mais perderam habitantes, destacam-se São Gonçalo/RJ, Duque de Caxias/RJ, Guarulhos/SP, Campinas/SP e Aparecida de Goiânia/GO; e os que registraram maiores índices de retração são Santana do Araguaia/PA, Ipixuna do Pará/PA, São Félix do Xingu/PA, Catarina/CE e Manaquiri/AM.

Quadro – Redução populacional registrada no Censo 2022 e resultado das eleições presidenciais

Maior perda de habitantes (nº)Redução Populacional (mil habitantes)Quem venceu no 2º turno as eleições presidenciais?
São Gonçalo/RJ201,6Bolsonaro
Duque de Caxias/RJ121,3Bolsonaro
Guarulhos/SP112,9Bolsonaro
Campinas/SP84,9Bolsonaro
Aparecida de Goiânia/GO74,3Bolsonaro
Maior índice de retração (%)Redução Populacional (%)Quem venceu no 2º turno as eleições presidenciais?
Santana do Araguaia/PA57,3Bolsonaro
Ipixuna do Pará/PA54,8Lula
São Felix do Xingu/PA51,8Bolsonaro
Catarina/CE51,3Lula
Manaquiri/AM48,9Lula

Surpreendentemente (ou não), as cinco cidades que mais perderam residentes elegeram Bolsonaro. Em todas elas, os governadores eleitos também apoiaram o ex-presidente, assim como os prefeitos em exercício. Por outro lado, entre as que registraram maiores índices de retração, duas o elegeram também.

Embora ainda não seja possível afirmar categoricamente esse fenômeno, há sinais de que as calúnias e as falas perniciosas levaram à negativa em participar do Censo. Entretanto, isso só será confirmado com a totalidade dos dados do IBGE, ainda não disponibilizados.

Outros fatores deverão ser levados em conta para a compreensão desse novo retrato do Brasil, entre eles: elevadíssimo número de mortes por Covid-19; migração interna impulsionada pela pandemia do coronavírus; queda da taxa de natalidade; mudança na estrutura etária com a elevação da expectativa de vida.

Superar a destruição do Estado

A despeito disso, o que se tira desse caldo – ainda em cozimento – é que falar, educar e divulgar sobre políticas públicas, governança, participação social, assim como sobre o papel dos entes federativos, são tarefas de extrema urgência para reparar os rastros da destruição implantados nos últimos quatro anos.

As dúvidas, desconfianças e reivindicações feitas desde as divulgações dos resultados refletem diretamente a implementação da cultura de descrédito nas instituições. As alegações de que o fato de não ter sido feita a contagem da população em 2015 (no meio da década) prejudicou as estimativas não são suficientes para colocar em xeque a reputação do IBGE.

Algumas instituições e alguns prefeitos andaram de braços dados com o ex-presidente e hoje protestam sobre o contingente populacional, sem mostrarem ao menos os esforços empregados (se é que houve) para estimular os moradores a responder o levantamento ou para facilitar o acesso dos recenseadores às residências.

As próximas variáveis a ser divulgadas e os respectivos cruzamentos permitirão análises aprofundadas do retrato do país e da atual composição brasileira. No entanto, o “cheiro” que temos agora é de que o Censo concluído estampa a mazorca bolsonarista. Essa é uma entre tantas marcas devastadoras do último governo.

O Censo é o maior evento de participação social do país, é o único momento no qual estamos todos juntos para montar um quebra-cabeça de dimensões continentais. É um acontecimento no qual o Estado vai até cada um de nós para nos conhecer. Negar essa oportunidade é negar nossa selfie e nosso reconhecimento e pertencimento.

O país que não se conhece, não é soberano!

Parabéns aos recenseadores, supervisores, técnicos e a toda equipe do IBGE por resistir e trazer os resultados que refletem o país e a história dos últimos anos.

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