A “bukelização” do Equador e a sombra dos EUA
A pretexto de combater o crime, Daniel Noboa ataca o Judiciário, reprime mobilizações e prepara terreno para entregar bases militares aos EUA. Um roteiro conhecido da nova direita na América Latina. Mas os movimentos indígenas não permitirão que escalada autoritária seja fácil
Publicado 06/10/2025 às 18:28

O Equador tem vivido um clima de tensão nos últimos dias após a crise detonada pelo anúncio do corte de subsídios do diesel por parte do governo de Daniel Noboa. A medida deve provocar um aumento no preço do combustível na ordem de 40% e serviu como faísca para uma série de manifestações que já duram duas semanas.
Desde o início dos protestos, Noboa declarou estado de emergência em doze províncias bi sábado, 4 de outubro, dando poderes à força pública para restringir o direito à reunião e à locomoção das pessoas. As medidas excepcionais são acompanhadas por discursos afrontosos por parte do presidente que, assim como seu homólogo estadunidense Donald Trump, achou no cartel venezuelano Tren de Aragua um bode expiatório, a quem acusa de estar por trás da mobilização, alertando ainda que quem for preso poderá responder pelo crime de “terrorismo”.
Além das manifestações, marchas e bloqueios são promovidos em todo o país, além de uma greve por tempo indeterminado convocada pela Confederação de Nacionalidades Indígenas do Equador (Conaie), que refuta as causações de Noboa. “Não somos terroristas, somos indígenas daqui; somos ancestrais. Eles nos perseguem por toda parte; enquanto a segurança nos persegue, a insegurança cresce exponencialmente no país”, diz o presidente da Confederação dos Povos Kichwa do Equador, Alberto Ainaguano, de acordo com o Pagina12.
A situação do país provocou um comentário da relatora especial da ONU sobre defensores dos direitos humanos, Mary Lawlord. “As pessoas têm o direito de defender os direitos humanos; o Estado deve abster-se de qualquer represália contra elas por exercerem esse direito”, defendeu, nas redes sociais. Sua postagem foi feita no mesmo dia em que a relatora das Nações Unidas para a liberdade de associação e reunião, Gina Romero, também alertou: “O uso excessivo da força, incluindo armas letais, prisões arbitrárias, militarização e um impacto desproporcional sobre os jovens estão criando uma situação cada vez mais perigosa”.
“A violência estatal, a impunidade das violações dos direitos humanos no contexto dos protestos e a falta de resposta às reivindicações dos cidadãos expressas nos protestos são sempre elementos a considerar na análise das mobilizações e dos seus impactos”, disse ela. “Os governos devem respeitar o direito à liberdade de reunião e protesto, abrir vias de diálogo e mediação e responder às demandas dos cidadãos. Exorto todas as partes interessadas a sempre colocarem em primeiro lugar a vida e a segurança das pessoas envolvidas, incluindo civis e agentes da lei.”
A cartilha de Noboa
Protestos relacionados à eliminação de subsídios não são propriamente uma novidade no Equador, já que governos anteriores de orientação neoliberal buscaram fazer o mesmo para satisfazer compromissos assumidos com o Fundo Monetário Internacional (FMI) de manter sob rédea curta a questão fiscal. As lideranças indígenas do Conaie já lideraram manifestações em 2019 e 2022 quando os presidentes Lenin Moreno (2017 – 2021) e Guillermo Lasso (2021-2023) tiveram que recuar em seu intento. Contudo, agora o contexto é diferente.
“Em comparação com protestos anteriores, Noboa empregou uma abordagem muito mais linha-dura, ‘mano dura’ para a repressão”, conta ao site Truthout o pesquisador do Centro de Pesquisa Econômica e Política dos EUA, Pedro Labayen Herrera. “Os militares já estavam nas ruas como parte de uma série interminável de estados de emergência e sua declaração de um ‘conflito armado interno’ em janeiro de 2024, mas ele também procurou ligar os manifestantes com ‘narcoterroristas’, criminosos e mineração ilegal”.
Se as diretrizes econômicas de Noboa lembram a de seus antecessores, sua estratégia e orientação política são distintas, adaptadas a uma realidade em que medidas populistas de extrema direita atraem votos e atenção. Principalmente quando relacionadas à segurança pública em cenários de crise como a que vive o país sul-americano.
Em janeiro de 2024, o Outras Palavras já chamava a atenção para o fato, àquela altura saudado por extremistas de direita brasileiros nas redes sociais de Noboa ter decretado estado de exceção e de conflito armado interno, autorizando militares do país a agirem como se estivessem em guerra. Na prática, uma licença explícita para que fossem desrespeitados os padrões da polícia diante de um contexto resultante de múltiplos fatores, como a ausência do Estado em setores essenciais e a adoção de modelos punitivistas/proibicionistas ultrapassados, com facções criminosas aumentando seu poder e estabelecendo fortes conexões políticas dentro do aparelho institucional equatoriano.
Como já dito aqui, também não pode ser desconsiderada a geopolítica do narcotráfico, alterada em função do acordo de paz estabelecido entre o governo colombiano de Juan Manuel Santos com as FARC, com um processo similar iniciado com o ELN, em 2016. Com isso, houve um vácuo de poder na área e facções dedicadas ao negócio se multiplicaram. A pandemia tornou mais difícil transportar drogas internacionalmente por vias aérea e terrestre, com as rotas marítimas passando a ser mais visadas. Cidades portuárias como Guayaquil, no Equador, ganharam importância e os entorpecentes passam a ser coletados em inúmeros pontos do país para serem enviados ao exterior, geralmente a Europa.
A banalização de medidas de exceção justificadas pelo combate à criminalidade foi vista inclusive na véspera do segundo turno da eleição presidencial, em abril. O decreto executivo 599 suspendeu o direito à inviolabilidade do lar em sete províncias, no Distrito Metropolitano de Quitoe e na cidade de Camilo Ponce Enríquez. Nos mesmos locais, também foi suspenso o direito à inviolabilidade da correspondência. Houve ainda instituição do toque de recolher em 22 cidades, entre as 22h até as 5h.
Confronto com o Judiciário e proximidade com os EUA
Não é apenas no quesito segurança pública que o presidente do Equador se aproxima de outros chefes de Estado e políticos de extrema direita. Buscando contornar (ou derrubar) obstáculos que se colocam no seu caminho, o Tribunal Constitucional do país de se tornou outro alvo.
Segundo levantamento feito pelo site Primicias, aproximadamente 56% das consultas e referendos propostas pelo governo concentram-se no fortalecimento das forças públicas e no endurecimento das penas para delitos relacionados ao crime organizado. Contudo, outras 28% das iniciativas têm um caráter diretamente político, visando, por exemplo, a redução do número de legisladores e a devolução da nomeação de autoridades à Assembleia Nacional, acentuando o hiperpresidencialismo no Equador e beneficiando seu partido, a Ação Democrática Nacional (ADN).
O Tribunal Constitucional tem se mostrado um obstáculo para os planos do presidente. Cerca de 41% das medidas propostas foram reprovadas na análise do Tribunal por não cumprirem requisitos legais e outras oito questões permanecem pendentes de análise. A resposta de Noboa remete à reação de outros líderes extremistas do continente americano. Ele iniciou uma intensa campanha de pressão contra os nove juízes, acusando-os de serem inimigos do povo e os responsabilizando pela crise de violência no país. Milhares de seguidores marcharam para o prédio-sede da Corte com faixas de protesto enquanto outdoors com os os rostos dos magistrados apareceram em algumas cidades, lembrando em parte o que aconteceu no Brasil com o acirramento de Bolsonaro e sua base contra o Supremo Tribunal Federal (STF).
Foi nesse contexto que o presidente propôs medidas para enfraquecer a instituição, com propostas que visavam destituir e afastar os magistrados e exigir mais votos na Corte para barrar iniciativas presidenciais. Mas seu principal trunfo pode ser a aprovação de uma nova Constituição.
Em 16 de novembro, o país vai participar de uma consulta popular na qual vai decidir se concorda com a convocação de uma Assembleia Constituinte que prepare uma nova Carta Constitucional, submetida a novo referendo para entrar em funcionamento. Noboa conta com sua popularidade para eleger a maioria dos representantes, assim como também aposta na aprovação de outros três pontos que serão alvo de um referendo, programado para o mesmo dia. Os eleitores vão dizer, por exemplo, se concordam ou não que continue proibida a instalação de bases militares e a cessão de bases militares nacionais a forças armadas ou de segurança estrangeiras, reformando parcialmente a Constituição, que estabeleceu a vedação quando foi promulgada, em 2008.
À época, também foi rescindido um acordo que permitiu aos Estados Unidos usar durante dez anos uma base da Força Aérea do Equador para operações militares antidrogas até 2009. Já Noboa entende que “a situação de segurança no Equador requer a adoção de várias estratégias contra as diferentes modalidades do crime organizado”. Quando foi reeleito, em abril, o presidente foi saudado pelo secretário de Estado estadunidense, Marco Rubio. “Juntos, trabalharemos para proteger nossos países de organizações criminosas perigosas e conter a imigração ilegal”, celebrou.
Mesmo sem a alteração constitucional, o ex-secretário de comunicação do ex-presidente Guillermo Lasso, Carlos Jijón, disse que haveria um acordo militar assinado durante a gestão permitindo que as forças armadas dos Estados Unidos pudessem entrar no Equador “se a democracia for ameaçada”, seja lá o que isso signifique na prática.
Interesses econômicos e mídia
Como também ensina a história recente da ascensão e do fortalecimento de ideais da extrema direita na América Latina e em outros países, o princípio do Estado que exerce seu poder repressivo sobre parte da população vem acompanhado de um dito Estado mínimo metamorfoseado em “parceiro” de interesses privados nacionais e/ou internacionais.
“Você não precisa de uniformes para executar o manual da nova direita autoritária global: basta que você tenha um ‘plano de eficiência’ para destruir décadas de avanço social”, aponta Silvia Albuja Hernandez, em El Salto. Ela destaca que, em Poucos meses de seu segundo mandato, Noboa demitiu 5.000 funcionários públicos, extinguindo ainda o Ministério da Mulher e dos Direitos Humanos, o Ministério da Cultura e Patrimônio, e fundindo o Ministério do Meio Ambiente com o de Minas e Energia.
Neste último caso, à época a organização WWF lembrava que a Constituição do Equador aponta que os processos de licenciamento ambiental, para qualquer projeto, devem ser independentes, algo que fica comprometido com a fusão das duas pastas. “Isso mostra um claro conflito de interesses, pois é a instituição responsável por cuidar do meio ambiente que é absorvido pelo setor extrativo, afetando a capacidade de regulação, controle e responsabilidade”, pontuava.
“Este não é apenas um ataque à democracia: é a demolição programada do Estado social para dar lugar à pilhagem neoliberal. Enquanto a Noboa elimina ministérios que protegem direitos, as corporações transnacionais já celebram a ‘abertura’ de novos mercados. A coincidência não é coincidência: é o capitalismo do século XXI redesenhando a dominação”, sentencia Hernandez.
Ela alerta para outro elemento que também é comum quando se fala do ambiente criado para sedimentar o caminho de propostas extremistas, as plataformas de redes sociais e a mídia, de uma forma geral, muitas vezes omissa ou cúmplice das distorções do debate político. “Um fato devastador: 74% das notícias da campanha eleitoral eram falsas, ou seja, mais da metade da informação consumida pelos cidadãos equatorianos foi manipulada. Essas táticas do fascismo moderno não usam a força aberta: geram câmaras de eco que espalham fios tóxicos e memes virais, enfrentando as classes populares umas contra as outras para impedi-las de questionar estruturas de poder.”
Todos os elementos presentes no Equador apontam para um cenário que se assemelha muito a uma “bukelização” da segurança pública, mas com consequências ainda piores do que as de El Salvador, não só por ser um país maior, mas também pelo interesse estadunidense em sedimentar sua presença militar no país, o que poderia afetar também países vizinhos. Um cenário que merece atenção pelos direitos de boa parte da população, hoje ameaçados, e pelo desequilíbrio regional que pode provocar.
Mas os movimentos indígenas estão dispostos a resistir e reconhecem que o desafio agora é maior do que o das mobilizações anteriores. Tanto que a Conaie criou uma comissão interna de ex-presidentes da organização, a fim de ajudar a orientar sua estratégia daqui em diante. “Não me renderei a nenhum governo ou poder econômico. Sou um homem de diálogo com dignidade. Quando o diálogo for necessário, será feito de forma pública e transparente. Quando for preciso nos levantar, o faremos com a força que a unidade e a legitimidade de nossas lutas nos dão”, disse o presidente da Conaie, Marlon Vargas. A história, definitivamente, não vai parar por aqui.
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