Reforma Agrária: Como o golpe sufocou os camponeses

Militares enterraram proposta de Jango. Mas, temerosos de uma revolução no campo, adotaram paliativos. Enquanto isso, empregaram vultosos recursos para modernizar latifúndios: foi o pontapé do que seria conhecido, nos ano 80, como “agronegócio”

Foto: Memorial das Ligas e Lutas Camponesas em Sapé (PB)/Uol
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Este é o segundo de uma série de quatro texto que Outras Palavras publicará nas próximas semanas. Leia os outros aqui

No Brasil, esta migração de agricultores familiares europeus se dirigiu para as regiões Sul e Sudeste, trazida pelos interesses dos barões do café que buscavam substituir a mão de obra escravizada. Os que vieram espontaneamente buscaram o Sul, pela sua maior similaridade com seus ecossistemas de origem. No Nordeste essa migração não vingou porque a grande seca dos anos 1850 arruinou a produção familiar de algodão e criou um imenso exército de miseráveis dispostos a trabalhar por qualquer salário, verdadeiros neoescravizados.

O fim da escravidão, no final do século XIX, não significou um aumento da agricultura familiar, como seria de se esperar. Perto de um milhão de pessoas deixaram as fazendas onde trabalhavam buscando outra forma de sobreviver. O Estado branco deu aos escravizados o estatuto de libertos, mas não se preocupou em dar-lhes condições de vida. Com a amplitude das terras disponíveis no país naquele momento não teria tido custos maiores distribuí-las aos libertos, mas isto não aconteceu. O resultado foi, em muitos casos, o retorno dos libertos ao trabalho nas fazendas, agora com assalariamento. No entanto, os patrões passaram a cobrar por tudo necessário para trabalhar e sobreviver (instrumentos, alimentação, moradia…), tudo descontado dos magros salários. Foram poucos os que conseguiram se estabelecer como agricultores de subsistência, em geral os que conseguiram migrar para oeste, para longe das fazendas.

A ocupação do território foi seguindo este traçado histórico. Os marginais do sistema de produção em larga escala para a exportação vão desbravando as terras a oeste, até o dia em que os grandes produtores, na sua sede de terras novas e ainda não desgastadas, chegam para expulsá-los, com ou sem ajuda da lei. Por outro lado, os grandes latifúndios passaram a segurar a sua mão de obra oferecendo pequenas áreas de cultivo familiar, desde que o produto fosse partilhado com o patrão. Surge a categoria, que já foi muito importante, dos meeiros e dos moradores, vivendo sob a asa do latifúndio e sob seu controle, econômico, social e político.

Toda esta história se conta em número de conflitos, de assassinatos, de violências cometidas com um duplo objetivo: controlar o acesso às terras e controlar a força de trabalho. A história dos oprimidos e espoliados não costuma ser registrada na sociedade dominada pelos opressores. São poucos os ecos dos gritos de dor e de terror que atravessam os séculos da nossa formação enquanto país. Milhões de indígenas e milhões de escravizados sofreram horrores e foram assassinados, com pólvora, aço, doenças e castigos. Na sociedade de hoje, dominada pelos descendentes dos opressores do passado, os heróis dos massacres estão homenageados em estátuas e dão nomes a ruas, cidades e municípios. Mas os dados sobre os oprimidos são poucos e pouco conhecidos, pelo menos até os últimos cinquenta anos.

A luta pela terra foi constante e feroz ao longo da história do Brasil, mas ganhou mais relevância política na segunda metade do século passado.

A criação das Ligas Camponesas nos anos 1950 e sua implantação como movimento de massas radicalizado no Nordeste, Sudeste e Sul e as ações de governos locais em favor da reforma agrária, como os de Leonel Brizola e de Miguel Arraes no início dos anos 60, colocou o tema na ordem do dia da política, sendo incorporado pelo presidente Goulart no seu programa de reformas de base. Goulart foi o primeiro presidente a tomar uma medida concreta de redistribuição de terras, com a desapropriação das que estavam localizadas ao longo das estradas federais ou açudes públicos. Eram propostas moderadas no seu objetivo e alcance, mas foram tratadas como uma provocação comunista ao direito de propriedade e um dos fatores que precipitaram o golpe contra Goulart em 1964, implantando a ditadura militar.

Apesar do reacionarismo dos golpistas e de suas relações com a oligarquia latifundiária, os governos militares adotaram várias políticas que pretendiam alterar as bases sociais do campo. Segundo o pensamento dos estrategistas inspirados pelo Pentágono, era necessário fazer algumas reformas para evitar uma revolução no campo. O resultado foi o Estatuto da Terra, que dava garantias aos meeiros e moradores, em particular o direito de cultivar dois hectares de terra na propriedade do patrão. A reação do latifúndio foi eliminar esta categoria de camponês, que quase desaparece entre dois censos seguidos. Uma segunda medida, visando favorecer a redistribuição de terras foi o Proterra, do início dos anos 70 e que taxava terras não produtivas do latifúndio. Depois de alguns arreganhos ameaçadores no Congresso, pouco habituado a críticas aos governos militares, a oligarquia aderiu ao programa, vendendo terras degradadas a preços valorizados para o governo fazer assentamentos. Finalmente, já nos anos 1980, o governo Figueiredo reformou o imposto territorial rural, aumentando muito as taxas para latifúndios improdutivos e quase eliminando-os para as empresas rurais. Foi a última medida de pressão para induzir a modernização dos latifúndios, estimulada por créditos negativos para o uso de insumos químicos e compra de tratores, apoiada na recém-criada empresa de pesquisa agropecuária, Embrapa e na empresa nacional de assistência técnica e extensão rural, a Embrater. Tudo isto foi o pontapé inicial na criação daquilo que, nos anos 1980, era chamado de agrobusiness e que mais recentemente foi traduzido para agronegócio.

A classe dominante no Brasil, que sempre misturou os interesses dos setores agrários com os industriais e, mais recentemente, os financeiros, conseguiu fazer uma reforma agrária no topo da escada social, capitalizando e modernizando o andar de cima, enquanto o campesinato seguia arrochado pela repressão da ditadura, sem vislumbre de chegar ao direito a um pedaço de chão.

Apesar da repressão, o campesinato se moveu no período ditatorial, mas com muitos limites. O efeito dos anos JK (“cinquenta anos em cinco”) e do chamado “milagre econômico” do regime militar foi uma maciça migração rural urbana, que levou quase 30 milhões do campo às cidades entre os anos 50 e 80.

Esta migração aliviou muito a pressão pelo acesso à terra no campo. Mesmo assim, assistiu-se (apesar da censura) a um gigantesco movimento de massas de camponeses afetados pela seca de 1970/72 e que provocou a tomada de cidades de médio porte como Mossoró, interrupções de estradas de rodagem e de ferro, assaltos a armazéns. Pela primeira vez os militares e as polícias estaduais não ousaram tentar controlar os grandes bandos de camponeses que se formaram, lutando pela vida, por comida e água. Criou-se um programa de assistência aos “flagelados”, dando emprego em frentes de trabalho enquadradas pelos militares e que se dedicaram a consertar estradas e açudes. Milhões foram atendidos, tendo garantias de alimentação e alojamento.

Com o fim do regime militar, a Confederação dos Trabalhadores e Trabalhadoras na Agricultura, Contag, assumiu a liderança de um movimento reivindicativo através dos sindicatos de trabalhadores rurais, apesar da herança de peleguismo deixada pelos anos de controle militar. A Contag organizou, em fins de 1985 um grande congresso de camponeses, em Brasília e afirmou com ênfase a proposta da reforma agrária. O governo Sarney convivia ainda com o ministério escolhido pelo quase presidente Tancredo Neves e o ministro da Agricultura, Pedro Simon, apoiou política e materialmente o congresso.

Mas o primeiro programa de reforma agrária pós-regime militar, dirigido pelo progressista José Gomes da Silva, foi sendo limado pouco a pouco e, com a reforma ministerial que alinhou o governo ao seu presidente, a proposta foi engavetada. Apesar disso, Sarney chegou a distribuir terras para 90 mil famílias nos seus cinco anos de governo, mais que os 25 anos anteriores.

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