Por que desmercantilizar as sementes?
Cinco corporações dominam dois terços do comércio de sementes do mundo e controlam cadeia agroalimentar, mostra relatório. Superá-las é possível, sugerem movimentos de camponeses. Mas requer leis antitruste mais duras e refutação de patentes
Publicado 05/05/2025 às 17:02

Por Sergio Ferrari | Tradução: Rose Lima
Enquanto um quarto da humanidade sofre de insegurança alimentar, um pequeno grupo de multinacionais desempenha um papel quase hegemônico na indústria de alimentos. As transnacionais suíças Syngenta Group, as alemãs Bayer, BASF e KWS, a americana Corteva e a francesa Limagrain controlam dois terços das sementes comerciais do mundo e mantêm uma tendência de concentração acelerada.
Em menos de três décadas, esse monopólio da industrialização de sementes andou de mãos dadas com o dos grandes produtores de pesticidas, que compraram ou expulsaram milhares de pequenas e médias empresas de sementes. Ao mesmo tempo, até agora, neste século, 75% da diversidade genética das culturas desapareceu.
São dados e reflexões contundentes que uma série de organizações não governamentais (ONGs) e redes especializadas em alimentos acabam de publicar em Semillas en Peligro. Las luchas mundiales por el control de la alimentación (Sementes em Perigo. As lutas globais pelo controle dos alimentos). Co-publicado pela ONG suíça SWISSAID, pela Aliança Africana pela Soberania Alimentar, pela Associação para o Melhoramento de Plantas para o Benefício da Sociedade (APBREBES), pelas Iniciativas Regionais do Sudeste Asiático para o Empoderamento da Comunidade (SEARICE) e a Fundação Rosa Luxemburgo, esse documento foi publicado em francês como Semences en péril. Les luttes mondiales pour le contrôle de l’alimentation.
As plantas representam mais de 80% da dieta e da nutrição humana. Daí a importância do controle monopolista das sementes. A Organização das Nações Unidas para Agricultura e Alimentação (FAO) afirma que 250.000 espécies de plantas superiores foram identificadas e descritas até o momento, das quais 30.000 são comestíveis. E trinta delas são as principais culturas que nutrem a humanidade. Cinco cereais (arroz, trigo, milho, painço e sorgo) fornecem 60% da ingestão calórica da população mundial. Até 2050, quando se espera que ultrapasse 9.000 milhões, deverá ser alcançado um aumento de 60% na produção de alimentos para cobrir as necessidades essenciais. Portanto, o controle das sementes é uma das principais batalhas não só hoje, mas também para o futuro da humanidade.
Nada anda bem
O controle dessas seis multinacionais sobre dois terços das sementes comerciais mostra sinais claros do fracasso do sistema alimentar em escala internacional, diz a Semillas en Peligro. Ao mesmo tempo, a biodiversidade global está em rápido declínio e as comunidades mais vulneráveis e marginalizadas –especialmente os trabalhadores agrícolas e agricultores– sofrem o impacto crescente das crises ambientais e econômicas.
As sementes são o pilar central de todos os sistemas alimentares porque contêm a informação genética que determina as características e os rendimentos das culturas. Por outro lado, a diversidade de variedades disponíveis é o resultado do esforço coletivo dos agricultores, que, há milhares de anos, a transmitem de geração em geração. Em outras palavras: por mais de 10.000 anos, os camponeses selecionaram, trocaram e preservaram essa rica herança que agora está em perigo de extinção.
Desde a industrialização acelerada da agricultura após a Segunda Guerra Mundial, a seleção de sementes tornou-se um negócio lucrativo para empresas especializadas. Em vários países europeus e na América do Norte, essa atividade é regulamentada por leis de propriedade intelectual. No entanto, essa abordagem é mal adaptada ao contexto de muitas nações do Sul, onde até 90% das sementes são salvas pelos agricultores. Paradoxalmente, apesar dessa realidade, vários países do Sul adotaram regulamentações sobre sementes semelhantes ou até mais rígidas do que as vigentes nos países do Norte para agradar às transnacionais.
As grandes multinacionais procuram fortalecer seu poder sobre a produção e comercialização de sementes e alimentos, aproveitando a complexa legislação de direitos de propriedade intelectual. Como reiteram a SWISSAID e os outros co-editores de Semillas en Peligro, essas leis também são incorporadas aos acordos comerciais internacionais, permitindo que as multinacionais controlem o tipo de sementes que serão comercializadas e, em última análise, que tipo de culturas serão produzidas.
Essa dependência acentuada dos agricultores locais em relação às multinacionais de sementes reduz sua autonomia e escolha nas práticas agrícolas. Como resultado, seus direitos à alimentação são prejudicados e seus esforços para erradicar a fome em suas próprias comunidades e países são severamente limitados. Por outro lado, essa dependência reforça o desenvolvimento de monoculturas, essencialmente orientadas para a exportação e com consequências desastrosas para a biodiversidade. Está ameaçada pela aplicação maciça de fertilizantes químicos, pelo uso de sementes híbridas e pelo uso de organismos geneticamente modificados.
Ideias inovadoras
Uma nova maneira de olhar e interagir com as sementes é essencial para transformar os sistemas alimentares, dizem os co-editores de Semillas en peligro. E eles retomam as reflexões de Michael Fakhri, Relator Especial das Nações Unidas sobre o Direito à Alimentação, que afirmou que “os sistemas de sementes [próprios] dos agricultores permitem que eles cultivem alimentos que respondam e se adaptem às mudanças para que as comunidades sejam mais fortes e os sistemas alimentares mais resilientes”.
Embora as grandes multinacionais dominem a cadeia agroalimentar por meio da tecnologia, da legislação e do controle do mercado, existem ferramentas para se opor a elas, argumentam os principais movimentos sociais do campo. Entre os possíveis mecanismos de controle, eles apontam para o fortalecimento e aplicação das leis antitruste e para a refutação das leis de propriedade intelectual e acordos comerciais.
Esses movimentos sociais do mundo rural lembram que esse sistema de sementes tem a aprovação da OMC (Organização Mundial do Comércio), do Banco Mundial e do FMI (Fundo Monetário Internacional), e se reflete em acordos de livre comércio e em leis modelo para a proteção dos direitos daqueles que controlam as variedades vegetais, como, por exemplo, a UPOV (União Internacional para a Proteção das Obtenções Vegetais). Tal sistema só permite a circulação de sementes “patenteadas” (ou proprietárias) que concede direitos exclusivos, ao mesmo tempo em que criminaliza a conservação, troca, uso, doação e venda de sementes locais entre os agricultores. A situação chegou a tal ponto que os camponeses perderam o controle sobre as sementes indígenas, estão sendo penalizados pelo uso e troca de suas próprias sementes e muitas vezes são submetidos a buscas e até apreensões de suas próprias sementes.
Os movimentos sociais rurais e as ONGs que os apoiam consideram a Declaração das Nações Unidas sobre os Direitos dos Camponeses e Outras Pessoas que Trabalham em Áreas Rurais (UNDROP), ratificada em 2018 pela Assembleia Geral das Nações Unidas, como um importante passo à frente. Ela consagra o direito às sementes e à biodiversidade e exige que os Estados permitam que os camponeses participem dos processos de tomada de decisão que afetam suas vidas, terras e meios de subsistência.
A publicação Semillas en peligro também apresenta caminhos criativos. Atualmente, centenas de variedades tradicionais e novas são lançadas sob uma licença de código aberto (semelhante à usada para software) para protegê-las da privatização e restrição de seu uso. Uma coalizão global de organizações e movimentos está identificando tais iniciativas nos cinco continentes.
Bancos de sementes estão sendo estabelecidos em muitas regiões para salvaguardar a diversidade genética. Por exemplo, o Banco Mundial de Sementes ou a Câmara Global de Sementes de Svalbard, um enorme armazém subterrâneo na ilha norueguesa de Spitsbergen, cujo objetivo é preservar amostras de sementes de todas as culturas alimentares do planeta. Também é conhecida como Câmara do Juízo Final porque foi construída de forma a resistir a terremotos, ataques a bombas e outros cataclismos.
A luta pelas sementes faz parte da identidade dos movimentos sociais rurais mais importantes em âmbito internacional. A Via Campesina, que representa mais de 200 milhões de mulheres e homens trabalhadores agrícolas, pequenos e médios agricultores e povos indígenas, defende o conceito de “Sementes Camponesas, patrimônio dos povos a serviço da humanidade”. Propaga a necessidade de promover o intercâmbio de sementes e produtos agroecológicos que dinamizem os mercados locais e regionais. Tem compromisso com a agricultura orgânica urbana e rural. E defende a recuperação da memória histórica e da cultura ancestral do manejo de sementes: a preeminência do autóctone que se opõe aos produtos e culturas transgênicas.
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