Pandemia: alvo do genocídio são as periferias

Mapa revela: índice de mortes por covid-19 nas regiões mais empobrecidas pode ser até vinte vezes maior que nos bairros nobres. Ao retirar auxílio emergencial e pedir que “idiotas” voltem às ruas, governo expõe caráter colonial do descaso

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Mapa: Sandro Valeriano | Texto: Antonio Martins

Faltando um mês para o início do inverno na maior parte de seu território, o Brasil parece prestes a entrar numa armadilha catastrófica – a terceira onda da covid-19. A morte, filha da negligência, fecha sua pinça. De um lado, a população está sendo exposta como nunca ao vírus. As políticas de quarentena que, embora parciais, produziram redução notável das internações a partir do final de março, foram relaxadas prematuramente, ao primeiro rumor de insatisfação do poder econômico. Uma pesquisa Datafolha acaba de apontar que o índice de isolamento nunca foi tão baixo. E a vacinação, que poderia ser a última saída, arrasta-se ou engasga, fruto da sabotagem continuada do governo federal e da incapacidade tecnológica dos laboratórios do país, após décadas de desinvestimento.

Reunindo apenas 2,6% da população do planeta, o Brasil já acumula 12,9% das mortes por covid. E tudo pode piorar: nosso índice diário atual de mortes é 5,7 vezes maior que o do planeta. Que explica tal tragédia?

Os mapas acima, relativos a São Paulo, o município brasileiro mais populoso e o mais atingido pela covid, sugerem uma hipótese pouco explorada até agora. O descaso continuado das elites pode dever-se, também, ao fato de que as mortes se concentram, de maneira muito mais aguda, entre pobres e negros. Se nos centros das metrópoles se morresse tanto quanto nas periferias, certamente as políticas seriam distintas.

O primeiro mapa refere-se aos quatro meses da primeira onda da pandemia – março a junho de 2020. A diferença cromática moderada indica que o risco de morrer de covid já era desigual, mas ainda não tão escancarado. Como se sabe, a covid chegou ao Brasil de avião, vinda da Europa. As primeiras vítimas foram atendidas no Hospital Albert Einstein, ao qual recorrem os endinheirados. Em junho, porém, já havia se espalhado pelo município, castigando em especial as populações forçadas a sair às ruas e habitando regiões de difícil afastamento pessoal.

O mapa revela que os bairros centrais já eram os mais poupados, com mortalidade entre 42,8 e 83,6 habitantes, para cada grupo de 100 mil. Morria-se muito mais nas zonas leste e norte: em Cangaíba, São Mateus, Vila Brasilândia ou Cachoeirinha, os índices oscilavam entre 94 e 140 por 100 mil. De qualquer forma, a covid e a negligência diante dela já matavam muito, em toda a cidade. Para efeito de comparação, vale lembrar que o índice médio de homicídios no Brasil é de 30 por 100 mil ao ano. Como o estudo que deu origem ao mapa abrange apenas quatro meses, o risco de perecer ao coronavírus já era em qualquer região de São Paulo, há um ano, entre quatro e catorze vezes maior que o de ser assassinado no Brasil.

Tudo se tornou muito pior e mais desigual em 2021, como mostra o segundo mapa. Possivelmente em função da entrada de variantes mais contagiosas do vírus, o número de mortes no município (48 mil) superou, em apenas quatro meses, o de todo o ano passado. Mas o abismo social aparece agora com todas as cores. A rica zona Oeste (onde estão, por exemplo, Pinheiros, Perdizes e o Morumbi) permanece em tons pastéis, quase não se altera. Em contrapartida, surgem vastas áreas vermelhas e roxas nas zonas Leste e Norte. Em distritos empobrecidos e aglomerados como São Miguel, Ermelino Matarazzo, Artur Alvin ou Vila Formosa, os índices de óbitos saltam a algo entre 155 e 204 por cem mil habitantes, em apenas quatro meses. A dor desta gente, porém, mal sai no jornal. Em 17 de maio, quando o país parecia a um passo da temida terceira onda, Jair Bolsonaro exortou mais uma vez a população a expor-se ao vírus, chamando de “idiotas” os que, para não fazê-lo, permanecessem em suas casas. E dois dias depois o governador João Dória cogitava flexibilizar ainda mais as restrições às atividades econômicas no Estado, apesar de já ressurgirem os primeiros sinais de colapso das UTI, no interior. A rendição ao interesse mesquinho de um empresariado primitivo chegava às raias da estultice.

Duas questões intrigantes saltam dos mapas e exigem análises mais aprofundadas. Nos extremos das zonas Norte e Leste, os índices de mortes são menores, embora se trate de bairros igualmente pobres, ou ainda mais, que as áreas menos periféricas destas regiões. Por quê? Talvez a explicação esteja na densidade demográfica menor, já que estas porções, nas franjas do município, ainda não sofreram verticalização e têm grandes espaços vazios. Além disso, a periferia da zona sul (ainda que se desconsidere Marsilac e Paralheiros, os distritos rurais mais abaixo, no mapa) parece não ser tão atingida. Que explica terem sido poupados bairros como Capão Redondo, Jardim São Luiz e Jardim Ângela, onde as condições de distanciamento são tão difíceis como nos distritos mais atingidos a Norte e a Leste?

Última nota: entre os distritos enriquecidos da cidade, um em especial exibe, nos dois anos do estudo, índices de mortalidade comparáveis aos das periferias mais castigadas. É Campo Belo. Lá situa-se o aeroporto de Congonhas. Lá vive, em função desta proximidade, um grande número de pilotos e comissários de aeronaves. A hipótese a considerar é que estas categorias profissionais estejam sendo muito duramente atingidas, em função de mais uma, entre tantas negligências ou sabotagens do governo. No Brasil, ao contrário da grande maioria dos países, estão quase ausentes as medidas de controle aeroportuário durante a pandemia.

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