O que muda no setor elétrico brasileiro?
Medida Provisória amplia a tarifa social na conta de luz. Também cria um mercado supostamente “ livre” de energia, que financeirizará um bem essencial. Uma política híbrida – sócio-desenvolvimentista e neoliberal – dará certo?
Publicado 08/09/2025 às 19:46

A Medida Provisória nº 1.300/2025, assinada/implementada em 21 de maio de 2025, trouxe medidas de grande impacto para o setor de energia no Brasil, sendo as principais:
A) Abertura do Mercado Livre de Energia (ampliação de elegibilidade)
- Consumidores conectados em baixa tensão (comerciais e industriais) passam a ter cronograma para migrar ao mercado livre a partir de 2026.
- Consumidor residencial ganha, pela primeira vez, um cronograma para optar pelo mercado livre a partir de 2027.
- Criação do Supridor de Última Instância (SUI) para garantir fornecimento provisório quando um consumidor livre ficar sem contrato, evitando descontinuidade de energia.
B) Ampliação da Tarifa Social de Energia Elétrica (TSEE)
- Gratuidade até 80 kWh/mês para:
- Famílias do CadÚnico com renda per capita até 1/2 salário-mínimo.
- Beneficiários do BPC (idosos e pessoas com deficiência).
- Famílias indígenas e quilombolas do CadÚnico.
- Famílias em sistemas isolados.
- “Desconto social” para quem tem renda per capita entre 1/2 e 1 salário-mínimo e consumo até 120 kWh/mês:
- Isenção do encargo da CDE (Conta de Desenvolvimento Energético)1. Essa medida irá aliviar a fatura mesmo para quem não se enquadra na gratuidade total.
O resultado prático dessa medida será a expansão substancial da base de beneficiários, tanto em número de famílias que terão a conta zerada, quanto em número de famílias com desconto relevante sobre a fatura.
C) Revisão de subsídios e encargos (Tarifa de Uso do Sistema de Transmissão-TUS, Tarifa de Uso do Sistema de Distribuição-TUSD, Conta de Desenvolvimento Energético-CDE)
- Descontos de TUST/TUSD para novas conexões/contratos passam a ter corte temporal: benefícios preservados para contratos registrados até 31/12/2025; após essa data, não há novos descontos em geral (nem prorrogações).
- Redistribuição/ uniformização progressiva da CDE entre classes e níveis de tensão, com transição de longo prazo (até 2038).
O objetivo com a revisão é reduzir “bolsões” de subsídios cruzados e nivelar encargos ao longo do tempo, afetando a estrutura de preços e a atratividade de projetos incentivados.
D) Separação das atividades de distribuição e comercialização regulada
- Determina separação tarifária e contábil entre a rede (distribuição) e a venda regulada de energia, em cronograma definido até meados de 2026.
- Busca dar mais transparência e evitar subsídios cruzados entre atividades.
E) Fim gradual de subsídios setoriais e revisão de alocação de custos
- Redução progressiva de subsídios a fontes incentivadas (solar, eólica, biomassa), com foco em equilíbrio de encargos.
- Rebalanceamento de custos de Angra I e II: todos os consumidores, inclusive livres, passam a contribuir de forma mais uniforme.
A meta aqui é reduzir distorções tarifárias e ampliar a base de rateio de custos setoriais historicamente concentrados.
A MP passou a valer na data da publicação (21/05/2025), com alguns dispositivos escalonados, para entrar em vigor em 2026 e 2027, para abertura do mercado e separações estruturais. A operacionalização depende de regulamentação pela ANEEL e de ajustes infralegais (prazos, procedimentos de migração, garantias, lastro/energia, etc.). Isso significa que a MP traz efeitos imediatos, mas muitas mudanças práticas ocorrerão à medida que forem regulamentadas e normatizadas.
O alcance da MP é muito amplo. A previsão é que mais de 60 milhões de brasileiros devem ter a conta totalmente zerada (dentro do limite de 80 kWh/mês). O custo fiscal estimado da medida é R$ 4,45 bilhões. A gratuidade até 80 kWh visa direcionar recursos para consumo essencial (iluminação, refrigerador, comunicação básica), com efeito direto no bem-estar das famílias mais pobres.
A intenção da MP é também melhorar a eficiência geral do setor de energia. Ao subsidiar o consumo básico, a intenção é reduzir o espaço para ligações clandestinas, melhorando assim o fluxo financeiro das distribuidoras. A limitação de descontos a fontes estimuladas e a isenção da CDE para faixas sociais reconfiguram a repartição de custos, visando proteger a modicidade tarifária dos mais pobres.
O governo pretende, com a MP, “abrir o mercado para todos os consumidores”, ou seja, possibilitar que qualquer pessoa ou empresa no Brasil, incluindo os consumidores residenciais, possam escolher de quem comprar a energia elétrica, e não apenas receber a energia da distribuidora local com tarifa regulada. Ou seja, pretende-se com a medida liberar o setor elétrico para todo o varejo. Hoje, essa possibilidade está basicamente restrita a grandes consumidores (indústrias e empresas com demanda maior).
A MP definiu um cronograma para ampliar esse direito de escolha de forma gradual: a partir de agosto de 2026 consumidores comerciais e industriais conectados em baixa tensão poderão migrar para o mercado livre de energia; a partir de dezembro de 2027 todos os consumidores, incluindo os residenciais, terão o direito de escolher seus fornecedores de energia. Como esse é um processo complexo, a MP criou um Supridor de Última Instância (SUI), cuja atuação deverá ser regulamentada pela ANEEL até 01/02/2026, para garantir o fornecimento em situações excepcionais, como falência ou inadimplência do fornecedor.
Os custos associados à MP precisam ser cobertos ou compensados de alguma forma e as distribuidoras de energia são as primeiras a sentir o impacto. Como mencionado, o custo estimado de implantação da MP é R$ 4,45 bilhões. Para compensar esse custo, o governo indicou ajustes nos subsídios, limitando descontos a fontes incentivadas (como solar e eólica) e buscando um reequilíbrio geral no setor. Ainda que a intenção da MP seja um ajuste de subsídios, a implementação prática pode gerar descasamento de fluxos financeiros. A distribuidora é quem arca inicialmente com a “gratuidade” ou o “desconto” na fatura do consumidor, e a compensação ou repasse desses valores pode não ser imediata ou integral, impactando o fluxo de caixa e a saúde financeira da empresa.
O governo calcula um “impacto inicial previsto de 1,4% na conta dos demais consumidores”. Isso sugere que parte do custo da medida será diluída nas contas dos outros usuários, mas esse repasse nem sempre é suficiente ou imediato para cobrir o impacto total sobre as distribuidoras. As distribuidoras, estando na ponta da cadeia de implementação da política, precisarão gerenciar um volume muito maior de contas com benefício social, absorver os custos decorrentes da gratuidade e dos descontos, e aguardar os mecanismos de compensação que podem não ser totalmente eficientes ou suficientes para cobrir as perdas.
O impacto financeiro da MP sobre as empresas em geral irá ocorrer a partir de algumas variáveis:
Composição da base de clientes: A Celesc pode ter uma proporção muito maior de clientes elegíveis à tarifa social em sua área de concessão em comparação com a média nacional ou com outras grandes distribuidoras. Isso significaria um volume maior de contas “zeradas” ou com desconto para a Celesc gerenciar.
Volume de consumo dos beneficiários: A base de clientes da Celesc pode ter um perfil de consumo que se enquadra predominantemente nas faixas de gratuidade (até 80 kWh/mês) ou desconto (até 120 kWh/mês), maximizando o impacto da MP em suas receitas.
Dificuldades na compensação: A empresa pode antecipar que os mecanismos de compensação ou repasse dos custos da tarifa social não serão adequados à sua realidade específica, deixando-a com um passivo financeiro maior.
Estrutura tarifária local: As características da tarifa de Santa Catarina e a composição dos encargos podem torná-la mais vulnerável aos ajustes propostos pela MP.
Vale observar que o custo estimado para uma operação medida com tanto impacto (R$ 4,5 bilhões) é bastante modesto em termos relativos, considerando o benefício que possibilita. Para comparação, somente o pacote de medidas para atender os setores exportadores, afetados pelo tarifaço do governo norte-americano, disponibiliza R$ 30 bilhões em crédito, para um segmento da população que já ganha muito dinheiro.
A MP 1300/2025 traz uma orientação política mista, que procura combinar aspectos sociais-desenvolvimentistas com uma visão liberal, de abertura do mercado para a escolha do fornecedor de energia. Por um lado, a ampliação da Tarifa Social de Energia Elétrica beneficia potencialmente, 30% ou mais, da população brasileira. Ao mesmo tempo, a MP prevê a liberalização do varejo de energia, possibilitando que todos os consumidores de energia no país possam escolher seu fornecedor a partir de 2027. Os próximos meses e anos nos mostrarão se essa combinação híbrida de política econômica — que reflete a atual correlação de forças no país — dará certo.
Nota:
1 Conta de Desenvolvimento Energético é um fundo setorial do setor elétrico brasileiro usado para financiar políticas públicas e manter a modicidade tarifária (isto é, conter a alta das tarifas para os consumidores).
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