O grito de resistência trans na Cracolândia

Vítima da violência policial, Laurah considera-se uma sobrevivente. Cruzou várias fronteiras – da dependência química, da precariedade do Estado, do preconceito – e tornou-se uma liderança da luta por direitos humanos e solidariedade

Arte: Carol Ito
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Ao ver Laurah, não se tem dúvidas de que estamos na presença de uma diva. Mesmo com o braço esquerdo quebrado, resultado de uma briga que teve dias antes na pensão em que mora, sua maquiagem está impecável. Ela, canhota, se maquiou com a mão direita e o resultado são olhos pintados num degradê do azul claro para o azul escuro. 

Começamos nossa conversa falando sobre sua relação com a redução de danos (RD). A RD é uma lógica de cuidado para e de pessoas que são afetadas pela política de drogas, seja enquanto usuárias, egressas da prisão, trabalhadoras da saúde etc. De certa forma, Laurah é tudo isso, mas não apenas: “sou uma sobrevivente”. 

Ela começou nos contando que já usou o CAPS AD (Centro de Atenção Psicossocial para álcool e outras drogas), mas desistiu, porque na unidade que frequentava não encontrou as práticas de redução de danos que esperava, e disse que depois da pandemia isso piorou. 

Para ela é difícil, quando se está na rua, buscar serviços muito longe. Ela mora e trabalha na região da Luz, conhecida também como Cracolândia, mas por muito tempo viveu em situação de rua neste mesmo lugar. Dos seus relatos de viver na rua, se enredam violências. Os serviços de saúde e assistência social foram fechando na região durante a pandemia de COVID-19, e se ela ia procurar alguma outra referência longe, corria o risco de deixar suas coisas para trás e perder tudo para o serviço de apoio à remoção do governo, também conhecido como “rapa”. Conseguir uma vaga em albergue também era mais difícil, porque sempre sofreu preconceito por ser uma mulher trans. 

Quando a pandemia começou, ou mangueava ou passava fome. Demorou um tempo até fazerem mais bocas de rango e ter acesso a comida. A saúde também demorou a chegar até ela. “Quem tinha casa conseguia fazer isolamento”, diz. Apesar de tudo estar fechando, Laurah nos apontou para um serviço que nunca fecha: a biqueira. 

Usuária de drogas desde os 15 anos, Laurah começou com a cocaína, porque “era mais fácil de esconder”, até que teve uma overdose. Foi parar num CAPS AD e foi mal atendida, sentiu que o serviço foi “demorado e despreparado”, diferente de quando havia o programa De Braços Abertos, sob o governo de Fernando Haddad (PT). Ao não se sentir acolhida, deixou de procurar acesso ao direito básico que é a saúde, até mesmo quando já não estava mais morando na rua. Ela também já foi internada, mas ressalta que, mesmo tendo ido voluntariamente, só reduziu seu consumo de substâncias quando quis, sozinha. A partir dessa decisão, a RD fez sentido em sua vida quando encontrava agentes de redução de danos distribuindo insumos. 

Foi na pandemia que sofreu a violência da guarda civil metropolitana pela primeira vez. Ao nos contar sobre essa agressão, vemos novamente como seus marcadores sociais se sobrepõem perante à agressão: foi abordada por um policial homem, teve sua genitália exposta e foi agredida. Para ela, um nítido caso de “abuso de autoridade, racismo e transfobia” com uma motivação simples: porque estava em vulnerabilidade social. Ela percebe nas falas dos policiais que as violências são sofridas por ser uma mulher trans e negra, quando a tratam assim, quando a chamam pelo pronome errado.

As violências continuaram nesse período, cada vez mais truculentas. Por vezes, viu policiais jogarem bombas de dentro da viatura. Se sentiu impedida de ir e vir dentro do lugar onde vive e trabalha, porque, de seu ponto de vista, ela e as pessoas que vivem na Cracolândia “são seres humanos mortos aos olhos da polícia”. 

“Não me calar é a minha maior arma”

Em 2021, Laurah estava levando doações até o Coletivo Tem Sentimento, onde trabalha, no Teatro de Contêiner Mungunzá. No meio do percurso, foi agredida mais uma vez pela polícia, quando um policial quebrou o cacetete em seu corpo. A diferença foi que dessa vez a violência foi registrada por uma professora que passava por perto, mesmo com a tentativa da polícia de impedi-la de gravar.

Laurah nos diz que antes nunca havia pensado em denunciar as violências que sofreu, mas naquele momento se sentia diferente. Na pandemia, Laurah se aproximou da redução de danos e da rede de pessoas que atuam na região, passou a trabalhar costurando máscaras para distribuir às pessoas em situação de vulnerabilidade, estava participando de um curso de formação em direitos para sobreviventes da prisão no Centro de Convivência É de Lei, começou a estudar teatro. Nunca havia denunciado antes, porque não se considerava artista, mobilizadora social. No entanto, naquele momento, entendeu que a redução de danos lhe deu voz para expressar o que ela chamou de “o grito de Laurah”. 

“A minha luta deixou de ser por mim e passou a ser por várias”, contou. Essa mudança de paradigma foi o que deu coragem para que Laurah exigisse seus direitos, ainda que eles sigam sob o constante risco de serem suprimidos, assim como o da esmagadora maioria das pessoas que frequentam a Cracolândia, que segundo ela, não acabou.

A partir da denúncia, Laurah falou em audiência pública e deu ainda mais força para a Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) da Câmara Municipal sobre violência contra Pessoas Trans e Travestis em São Paulo, presidida pela vereadora Érika Hilton (PSOL), além de ter dado diversas entrevistas na mídia e ter tido sua voz escutada.

A repercussão fez com que ficasse conhecida na região, o que tem intimidado novas abordagens a ela. Ainda assim, isso não mudou sua percepção de medo e não a impede de testemunhar todos os dias outros tipos de violência com ela e com as pessoas com as quais convive. Segundo ela, o que lhe dá mais segurança é saber que tem uma rede de pessoas  amigas e parceiras. “Eu não abaixo a cabeça, mesmo sabendo que a polícia está no mercado, na esquina de casa, no meu local de trabalho”.

A polícia, de fato, está cada vez mais presente e truculenta no centro de São Paulo. Temos nossa conversa na sede do Centro de Convivência É de Lei, ao lado da Praça da Sé. Ela chega mais cedo, porque está fazendo um curso de redução de danos lá. Enquanto falamos, vemos pela janela luzes de viaturas e ouvimos uma desapropriação que acontece numa ocupação ao lado. Ela lembra que outro dia foi tentar pegar uma marmita da prefeitura, no Bom Prato, e quando chegou também estava tendo uma ação da polícia. Também lembra que o fluxo é caminho de casa, e que vai passar por lá correndo o risco de levar bomba. 

Laurah é uma artista e mobilizadora social que encontrou na redução de danos uma maneira de se fazer ouvir. Ela conta que não sabe se amanhã vai voltar para a rua, por isso não sai do modo de sobrevivência. Mas como ela mesma disse, é uma sobrevivente, e termina nossa conversa cantando baixinho: “é tão bom ouvir falar da sua história…” 

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