O futuro da juventude periférica sob risco

Dicionário Marielle Franco mostra como a militarização das favelas impacta o Ensino. Escolas são fechadas; horários, adaptados; e a evasão dispara. Educação e Cidade são direitos que caminham juntos, sugere. Leia também entrevista sobre o Novo Ensino Médio

Foto: Ricardo Moraes/REUTERS
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“Muito tiro, pouca aula; pouca aula, mais bandido”. A linha do tiro atravessa muros e portões de escolas na cidade do Rio de Janeiro, e a violência passa a ser a gramática do cotidiano de crianças e jovens moradoras e moradores de favelas e periferias. De acordo com pesquisa realizada pelo O Globo e divulgada nas últimas semanas, as escolas da prefeitura com pior desempenho ficam dentro de favelas conflagradas ou em regiões próximas a esses territórios. Historicamente, moradores e moradoras de favelas e periferias têm sido apartados do acesso a serviços públicos, como, por exemplo, o acesso à educação. As escolas da educação básica demoraram a se inserir nos territórios favelados, e este atraso demonstra o interesse de determinados governos pela precarização do acesso a direitos e, com isso, a marginalização e vulnerabilização da classe trabalhadora residente nesses territórios. Esse apartamento se mantém, de diversas formas. Seja na qualidade de infraestrutura das escolas presentes nas favelas, ou na oferta de professores – que quase nunca se dá de maneira plena –, ou pelos inúmeros fechamentos em decorrência de uma política de segurança pública que prevê incursões ostensivas em favelas e periferias.

É justamente como consequência deste modelo de política pública que crianças e jovens do Complexo de Favelas da Maré, na cidade do Rio de Janeiro, estão há mais de uma semana sem aulas. Além disso, os postos de saúde e clínicas da família também se mantiveram fechados, limitando mais uma vez o acesso aos aparelhos de saúde por parte dos moradores e moradoras. Isso reforça, mais uma vez, o apartamento que moradores de favela sofrem no que seria o acesso à cidade e seus direitos básicos de cidadania. Nesta última semana de agosto acompanhamos toda a movimentação das autoridades públicas, municipais e estaduais, junto ao aparato repressivo da polícia, para realizar a derrubada de 40 prédios no Parque União, uma das 16 favelas do Complexo da Maré. Famílias estão sendo retiradas sem a menor assistência, em versão atualizada da tradicional remoção que as favelas conhecem, principalmente, desde a década de 1940. As autoridades alegam que os prédios se tratam de construções vinculadas à facção criminosa que atua na favela do Parque União, no entanto, a pergunta que fica é: por que os moradores que adquiriram casas na localidade têm que pagar pela irregularidade dos prédios e ineficiência do Estado em fiscalizar e atender às demandas por moradia adequadas nas favelas?

O que temos visto na Maré são cenas desoladoras. Mulheres com crianças de colo ainda tentam disputar seu direito de habitar casas que conseguiram acessar ainda este ano, ao mesmo tempo em que famílias estão sendo expulsas de apartamentos que mal foram ocupados. Crianças e jovens veem os projetos de suas famílias sendo destruídos à marretada, enquanto a polícia garante, à bala, que a demolição dos prédios seja feita. Os moradores têm questionado em bom tom o porquê de as autoridades não oferecerem a formalização destas moradias ao invés de expulsar os moradores sem a menor garantia de ressarcimento ou assistência social. A maioria das famílias que foi e está sendo expulsa dos prédios não tem outra residência para habitar. Investiram suas economias na compra ou no aluguel dos apartamentos que se tornaram alvo dessa ação da Secretaria de Ordem Pública – em parceria com o estado e a Polícia Militar.

Sem casa e vivendo sob intensa insegurança, as crianças e os jovens sob a mira das operações também não têm direito a construir seu futuro. Junto à negação de acesso à moradia, esbarramos também com a violação do acesso à educação. Com mais de 20 escolas fechadas na Maré, as crianças e jovens ficam mais uma vez sem aulas, somando mais cinco dias a um ano letivo que vem sendo prejudicado semanalmente em razão das recorrentes operações policiais. Só nos sete primeiros meses de 2024, segundo a Redes da Maré, teve 22 dias de unidades de ensino fechadas devido a confrontos armados. Os impactos no desempenho dos alunos se multiplicam. De forma geral, os estudantes da Maré já têm menos dias de aula do que estudantes de outras localidades. Isto porque os horários de aula das escolas da região não estão em conformidade com a grade escolar das demais instituições da cidade, em função dos episódios de violência na favela. Os estudantes da Maré perdem, em média, duas horas diárias de aula por conta dessa medida adotada, sem direito à reposição desse tempo perdido, o que em situação normal já impacta negativamente a trajetória estudantil do jovem morador. Crescer em meio a essas violações de direito reverbera negativamente na construção da identidade de crianças e jovens que moram na Maré – afetando também a sua saúde mental.

Em meio a esse cenário de restrições e limitações imposto pelas diferentes instâncias do Estado, os jovens em formação da Maré ainda precisam lidar com a crise do trabalho e com um projeto de desmonte da educação pública reforçado pela reforma do Ensino Médio, imposta pelo governo federal, em 2019, e criticada por grande parte dos educadores. A “deforma” implementada afasta ainda mais a juventude de uma formação plena em sua trajetória escolar – e tem afetado, em especial, as escolas públicas e, com isso, os jovens periféricos. Disciplinas fundamentais para o desenvolvimento crítico e cognitivo dos estudantes vêm sendo substituídas por matérias que têm como foco a discussão dos “projetos de vida” de estudantes que sequer são incentivados a exercitar a prospecção de um futuro melhor. Muitos desses estudantes, quando ingressam no Ensino Médio, não refletiram sobre carreiras profissionais que gostariam de seguir, muito menos tiveram indicada a possibilidade de acesso ao Ensino Superior. Alguns desses estudantes sequer têm o conhecimento de que universidades públicas deveriam ser essencialmente ocupadas por filhos da classe trabalhadora, favelada e negra de maneira plena. Sequer conhecem o processo de ingresso e os procedimentos necessários para participarem dos exames de vestibular. Tal situação colabora ainda mais para um afastamento da juventude favelada das Instituições de Ensino Superior públicas, encurralando-os na entrada no mercado de trabalho, muitas vezes por vias informais, e com pouca qualificação. Como consequência deste projeto, é crescente o número de jovens em todo o país que nem estudam e nem trabalham – e, com isso, as condições de vida se tornam ainda mais precarizadas.

Muitos desses jovens chamados de “geração nem nem” por economistas têm suas trajetórias de vida associadas aos estigmas que categorizaram as favelas e periferias. Sendo por isso qualificados como ociosos, pobres e com fortes tendências à criminalidade. Tais categorizações não permitem uma compreensão das necessidades e demandas de jovens de favelas e periferias. O que dificulta ainda mais a implementação de políticas públicas que estimulem a juventude periférica a projetar a possibilidade de ocupar outros postos de trabalho. Além disso, tais categorizações partem de um olhar segregador do Estado e de economistas, que não se permitem compreender o universo de multiplicidade que é a juventude periférica. Fora isso, outros problemas podem ser apontados na maneira com que se resolveu caracterizar essa juventude de “nem nem”, em que se desconsidera toda a contração que o sistema capitalista tem dado nas últimas décadas, expandindo o exército de reserva, composto, especialmente, por essa juventude.

A reforma do Ensino Médio, apesar de revista no começo deste mês pelo governo federal, continua a colaborar para o cenário de desqualificação da mão de obra da classe trabalhadora de baixa renda. Como sonhar e construir um futuro se o presente não inclui a juventude? Nesse sentido, podemos notar a atuação fundamental de cursos pré-vestibulares populares, que apresentam aos jovens de favelas e periferias outras possibilidades de futuro. Para além de incentivarem o ingresso em Instituições de Ensino Superior, esses cursos auxiliam na formação política e cidadã desses jovens. Aulas de campo, visitas a outras cidades, idas a museus e teatros, bem como debates políticos e formativos fazem parte do cotidiano desses espaços educacionais. Essas ações contribuem para um novo tipo de inscrição social do sujeito periférico na cidade em que habita, fazendo-o compreender, por tanto, as dinâmicas sociais que o cerceiam.

A educação popular serve como instrumento para que novas maneiras de inscrição social possam se dar para a juventude periférica, fortalecendo a constituição não apenas de profissionais, mas, sim, de sujeitos políticos com capacidade de transformação social. Muitas vezes, conteúdos curriculares jamais vistos antes pelos estudantes são apresentados nesses cursos, o que acaba diminuindo a lacuna de conteúdos ignorados e/ou excluídos ao longo da trajetória escolar. É o espaço, por exemplo, em que os jovens periféricos podem se reconhecer como atores e produtores de sua própria história. Além disso, os espaços de educação popular também possibilitam que pessoas que estiveram muito tempo distantes da sala de aula possam se reaproximar desse lugar, visando ao ingresso no ensino superior e a melhoria na qualidade de vida.

É justamente visando à garantia de direitos para esta juventude periférica, que os cursos de pré-vestibulares populares e comunitários atuam. Não somente, pois, esses cursos em conjunto construíram um espaço de construção e incidência política, que é o Fórum de Pré-Vestibulares Populares do Rio de Janeiro. Nesse espaço, tensionamentos e demandas são articuladas nas esferas de poder legislativo e executivo, para proporcionar o mínimo de acesso à cidadania para estudantes periféricos. Nesse processo de construção e formação política dialética que os pré-vestibulares populares tecem entre si, discussões fundamentais para a compreensão da construção da cidade, o lugar das favelas e periferias e o lugar dos favelados e faveladas é desenrolado. Isto possibilita que estudantes que, hoje, são afetados pelas medidas adotadas pela Secretaria de Ordem Pública do atual prefeito Eduardo Paes, consigam compreender as raízes históricas dessas medidas e suas intenções na contemporaneidade. A atuação desse tipo de espaço educacional no Complexo da Maré alavanca a formação crítica dos moradores, possibilita uma articulação para atuar contra tais medidas. Em manifestação realizada na última semana contra o processo de remoções, na Maré, profissionais de educação se juntaram aos moradores na luta por direitos e, portanto, por uma educação de qualidade.

A cobertura das desapropriações no Condomínio Cão Feroz, no Parque União, neste mês de agosto, demonstra o quanto a educação popular e a imprensa popular são necessárias para que a perspectiva do morador seja conhecida. A comunicação popular é estratégia de resistência e tem sido fundamental para a sobrevivência de moradores e moradoras de favelas e periferias. Desde os jornais comunitários ao combate às fake news, comunicadores populares têm produzido informação e compartilhado saberes da favela para a favela (e fora dela). É também por meio deste reconhecimento que jovens desta geração têm acesso à memória de seus territórios e se instrumentalizam, portanto, para a construção do futuro e de novas formas de fazer política para a favela – e para a cidade. Os educadores populares são, por isso, agentes sociais que atuam em um novo tipo de inserção social da juventude periférica, colaborando com a possibilidade de ruptura dos ciclos de pobreza e desigualdade presentes nesses territórios.

É pensando, portanto, em uma crítica mais ampla à precarização do ensino e à violação do direito à educação – e à cidade – que trazemos, em destaque, entrevista realizada com Hugo Silva, atual presidente da UBES, para a Revista POLI, da Escola Politécnica em Saúde Joaquim Venâncio, da Fiocruz, e publicada como verbete na plataforma do Dicionário de Favelas Marielle Franco, sobre o Novo Ensino Médio e o papel dos governos e dos próprios estudantes nesta luta por educação pública de qualidade. (Introdução: Emmanuelle Torres e Clara Polycarpo)

Novo Ensino Médio: “a gente não é mão de obra barata”

Hugo Silva em entrevista por Cátia Guimarães[1]

“Revoga a Reforma ou paramos o Brasil”. O grito ecoava por quase todo o auditório em que acontecia a edição extraordinária da Conferência Nacional de Educação, em janeiro deste ano, mas era fácil perceber que o foco da empolgação – e da indignação – eram grupos de jovens que se manifestavam em defesa da escola pública, vestindo camisas e hasteando bandeiras da Ubes, a União Brasileira de Estudantes Secundaristas. A briga, naquele momento, era contra o Novo Ensino Médio (NEM), que mostrava resultados preocupantes, denunciados até nas páginas dos jornais. Essa continua sendo a prioridade da Ubes, como afirma nesta entrevista Hugo Silva, estudante do Instituto Federal de São Paulo, que acaba de tomar posse como novo presidente da entidade. Mas o cenário mudou: agora a representação nacional dos estudantes entende que, com a nova versão do NEM, que acaba de ser sancionada pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva, chegou-se o mais perto possível da revogação da Reforma que começou em 2016, apesar de ainda serem necessárias mudanças. Mas, tanto para garantir a melhoria do Ensino Médio quanto para incrementar a Educação Profissional e facilitar o acesso dos jovens da classe trabalhadora ao ensino superior, ele lembra que a pauta da Ubes se completa com a luta pela ampliação do orçamento educacional e pela valorização da escola pública.

Você acabou de tomar posse como novo presidente da Ubes. Quais são as prioridades da entidade neste momento?

A nossa luta principal é enterrar o Novo Ensino Médio, o que já está acontecendo em certa medida. E logo após isso, lutar pela valorização da escola pública de fato: a luta pelo orçamento, pela merenda de qualidade, pelo chão da escola pública. A nossa luta vai ser árdua, porque no Brasil ainda temos um orçamento muito baixo para a Educação. A gente ainda precisa superar muitas questões, como a conectividade, a merenda de qualidade, a falta de professor, estrutura… Tudo isso vai ser pauta da Ubes.

A Conferência Nacional de Educação deste ano decidiu, como prioridade, que a reforma do ensino médio deveria ser revogada. A Ubes foi uma voz bastante importante para defender isso. No entanto, acabou de ser aprovada uma nova versão do novo ensino médio, que traz mudanças mas mantém aspectos da reforma original. Mesmo assim vocês consideram que a reforma do ensino médio está sendo enterrada?

É que a gente avalia aqui na Ubes que para conseguirmos revogar algo, precisa colocar alguma coisa no lugar. E a nossa avaliação é que [o Ensino Médio] não poderia voltar a ser o que era antes. Queríamos tirar o novo Ensino Médio, óbvio, isso é imprescindível, mas também não queríamos voltar ao modelo anterior, que fazia com que muitos de nós desistíssemos de estudar, que fazia com que muita gente não conseguisse entrar na universidade. Então, a luta era para substituir por algo melhor. Incansavelmente, a gente foi para a rua, se mobilizou, passou em escola, para entender qual era a opinião dos estudantes secundaristas. E, a partir disso, apresentamos junto do Ministério da Educação, aos secretários estaduais de educação e diversas instituições de Educação um Projeto de Lei sobre o Novo Ensino Médio [PL 5.230/2023]. Infelizmente, com a Câmara [dos Deputados] mais conservadora da história do Brasil, teve uma desvirtuação desse projeto. Muitos pontos importantes colocados no projeto foram desvirtuados. A nossa luta a partir dali se deu para ter um projeto que tivesse a nossa cara e que não fosse desvirtuado. A gente entende que muitos avanços aconteceram, o que, inclusive, possibilitou hoje que chegássemos ao patamar mais próximo de revogação.


Quais eram os problemas principais do ensino médio antes da reforma, que você afirma que a Ubes não quer reproduzir agora?

Primeiro, a gente não tinha uma formação integral dos estudantes. A Formação Geral Básica deixava muito a desejar. Os nossos horários, as nossas disciplinas eram sempre terceirizadas ou deixadas de lado, não tinha nenhum tipo de concentração por exemplo, para as provas de vestibular, de Enem [Exame Nacional do Ensino Médio]. Isso dificultava muito, por exemplo, o sonho de entrar na universidade pública. Hoje, com o novo projeto de Ensino Médio que a gente construiu, conseguimos manter as 2.400 horas para a Formação Geral Básica, respaldada pela Lei de Diretrizes e Bases e pela Constituição, o fim dos itinerários formativos e a implementação dos percursos formativos, que garantem um reforço para fazer o vestibular. Então, se o estudante quer fazer medicina, ele vai poder ter um percurso formativo de reforço de biologia, química, redação, que ajuda que ele consiga chegar à universidade com mais qualidade. É algo significativo que mudou a partir desse projeto.


Mas uma das críticas que se faz à reforma desde o início é que, na prática, as escolas não têm condições de oferecer vários percursos formativos. E a lei não exige que elas ofereçam todos. Como garantir, então, que haja esse aprofundamento de estudos para o ingresso no ensino superior?

Essa luta passa por garantir mais orçamento para a escola pública. Porque se temos uma escola pública que tem estrutura, com contratação de professores, não teremos impedimentos para aplicar esses percursos formativos. Hoje, com o orçamento que a gente tem, não é possível. Então, a nossa luta aqui vai ser para garantir que tenha mais orçamento. A gente tem que garantir uma escola pública robusta. E os percursos formativos vêm no sentido também de reforçar, por exemplo, o que já se tem de aula na escola. Se hoje já tem aula de geografia, seria um reforço. Óbvio que vai requerer contratação de professor, concurso e tudo mais. O esforço aqui da Ubes vai ser lutar justamente por mais orçamento, por mais contratação de professor, por valorização da escola pública e garantir que isso aconteça. É objetivo, inclusive, desse novo modelo de Ensino Médio, que as escolas, com o passar do tempo, vão se tornando integrais. Mas esse vai ser um debate que passa diretamente pelo orçamento. Não tem como oferecer uma escola integral com o que temos hoje porque ainda existem escolas que não têm água, por exemplo, que não têm quadra, não têm telhado, não têm quadro negro. A gente precisa mais do que nunca colocar como prioridade de luta a pauta pelo orçamento da escola pública. Inclusive [a nova lei do Ensino Médio] vai ser aplicada a partir de 2025, então hoje a gente tem que brigar com a Câmara dos Deputados para conseguir garantir uma lei orçamentária que esteja adequada para que o Ministério da Educação consiga executar esse orçamento com qualidade.


O PL 5.230/2023 foi para a Câmara, teve a relatoria do deputado Mendonça Filho, que o modificou bastante, depois foi para o Senado, que fez mudanças que atendiam a parte dos movimentos sociais e, quando voltou para a Câmara, foi novamente modificado, inclusive numa votação polêmica. Passado esse percurso, qual a avaliação de vocês sobre o resultado final, que foi agora sancionado pelo presidente Lula? Existem diferenças substanciais em relação ao projeto original deste governo, que a Ubes ajudou a construir?

Conseguimos a manutenção de muitas pautas importantes que a gente colocou no projeto, como as 2.400 horas [para a Formação Geral Básica], o fim dos itinerários formativos e a transformação em percursos [formativos], e o fim do notório saber para o ensino regular. Muitos pontos que a gente questionava nas ruas se mantiveram [modificados] no projeto, embora ainda tenha alguns pontos a serem superados. O texto do Senado deu uma melhorada, mas, infelizmente, a parte importante do texto foi vetada pela Câmara dos Deputados. A gente não conseguiu garantir, por exemplo, o espanhol como a 13ª disciplina obrigatória em um país que é o único da América Latina que não fala espanhol. Além disso, estamos falando dos filhos da classe trabalhadora, que estão inseridos na escola pública, que vão concorrer no mercado de trabalho e na universidade com os filhos dos empresários que já falam inglês, espanhol, francês. Então, o espanhol é muito importante. A gente fala aqui também do Ensino Médio noturno, que passou a não ser obrigatório por conta do texto da Câmara e prejudica o Ensino de Jovens e Adultos. Então, muitos pontos ainda precisam ser melhorados e isso só vai se dar a partir da nossa luta na rua, pressionando tanto a Câmara quanto o Ministério da Educação para que, de alguma forma, a gente consiga resolver isso.

Algumas das principais críticas que se mantêm à versão atual do Novo Ensino Médio dizem respeito à educação profissional: a carga horária de formação geral menor para quem cursar o itinerário de formação profissional, a possibilidade de se ter professor só com notório saber, a possibilidade de parceria com instituições privadas e a validação da aprendizagem profissional como carga horária para a formação geral básica. Qual a avaliação da Ubes sobre o impacto da reforma na educação profissional?

A nossa luta era para garantir as 2.400 horas da Formação Geral Básica também para o Ensino Profissional, mas a gente está inserido no Brasil, que é o Brasil das disputas, né? E o ensino profissional é muito disputado. Hoje, inúmeras fundações [empresariais da Educação] estão interessadas na Educação Profissional para conseguir inserir a tal Educação Bancária e a educação dessas fundações no ensino público brasileiro. Com muita briga, conseguimos deixar as 2.100 horas [de Formação Geral Básica para quem cursa a formação profissional]. A gente avalia isso muito negativamente, porque o ensino profissional de qualidade é o ensino profissional das escolas técnicas estaduais, que são muito precárias, mas são boas. Também tem os ensinos dos Institutos Federais, que são muito importantes. Então, o que não falta são modelos de ensino profissional no Brasil, mas infelizmente ficamos insistindo nessas fundações, instituições privadas que querem abocanhar um pouco do nosso orçamento público. isso prejudica muito a Educação de Jovens e Adultos. E a gente está falando aqui da classe trabalhadora do nosso país, que precisa trabalhar, mas que também precisa estudar e precisa de formação garantida. Outra questão que poderia ser vetada também, que é muito importante, é a questão do notório saber no ensino técnico, que é fazer com que os estudantes de ensino técnico tenham aulas com pessoas que não são formadas [portanto, adquiriram conhecimento pela experiência prática]. A gente precisa fazer com que, de alguma forma, isso seja modificado.

A Ubes tem afirmado a importância de se garantir a “aplicação efetiva” das 2.100 horas de formação geral básica no percurso de formação profissional do ensino médio. Se isso já foi aprovado na lei sancionada, por que a entidade tem manifestado essa preocupação?

Estamos no Brasil, onde tem governos estaduais muito alinhados com aquilo que a gente não acredita para educação pública brasileira. E quando falamos em aplicar efetivamente essas horas para o ensino brasileiro, é lutar para conseguir ter aula de verdade, de português, matemática, história, geografia, de acordo com a LDB, inclusive. Porque no último período passamos por um processo tão difícil no nosso país que tinha estudante tendo aula sobre vídeos do MBL [Movimento Brasil Livre] ou sobre como fazer brigadeiro caseiro. Isso não é aplicar o que a gente acredita que é a Formação Geral Básica. Precisa aplicar o que é básico, o que é geral, o que é formação. Então, quando a gente fala ‘efetivo’, é para aprender de verdade.

O presidente Lula sancionou a lei do Novo Ensino Médio com vetos apenas aos trechos que se referiam a mudanças no Enem. Qual a avaliação da Ubes sobre isso? A entidade defendia outros vetos?

Eu acho que esse veto [à cobrança de conteúdos] dos itinerários [formativos] nos vestibulares é muito importante porque isso diz sobre a nossa entrada na universidade. O principal objetivo da escola pública brasileira hoje é apresentar uma nova perspectiva para a juventude e isso se mostra a partir da universidade, da entrada do povo da classe trabalhadora na universidade pública. Então, esse veto foi muito importante, inclusive, para estabelecer aquilo que a gente chama de educação propedêutica. Mas existiam outros vetos que precisavam ser feitos. Como, por exemplo, o veto à retirada da obrigatoriedade do Ensino Médio noturno das escolas brasileiras. É muito ruim não ser obrigatório para as escolas públicas brasileiras oferecerem o Ensino Médio noturno. Porque isso prejudica muito a Educação de Jovens e Adultos. E a gente está falando aqui da classe trabalhadora do nosso país, que precisa trabalhar, mas que também precisa estudar e precisa de formação garantida. Outra questão que poderia ser vetada também, que é muito importante, é a questão do notório saber no ensino técnico, que é fazer com que os estudantes de ensino técnico tenham aulas com pessoas que não são formadas [portanto, adquiriram conhecimento pela experiência prática]. A gente precisa fazer com que, de alguma forma, isso seja modificado.

Pela experiência da Ubes, eu queria que você falasse sobre a percepção e avaliação dos estudantes brasileiros em relação à primeira versão da Reforma do Ensino Médio, que está em vigor até agora e será modificada com a nova lei que acaba de ser sancionada. Os jornais falaram sobre aulas de brigadeiro gourmet e outros desvios, houve pesquisas sobre a opinião dos jovens, mas eu queria que você falasse a partir da sua experiência pessoal como estudante e como militante junto a outros alunos.

Eu estudei numa escola de ensino técnico, que era a instituição da Faetec. Lá o Ensino Médio era diferente, mas eu convivia com muita gente da Seduc [Secretaria Estadual de Educação] que tinha esse Novo Ensino Médio e, na prática, isso só serviu para precarizar a nossa escola pública, para fazer com que a nossa escola pública não estivesse à altura do que é o Brasil, do que é a potencialidade do nosso país. Rebaixar o Ensino Médio brasileiro a aula de TikTok e brigadeiro caseiro é desvalorizar mesmo aquilo que é público no nosso país. Esse foi um processo que não começou só na escola pública, não aconteceu só na área de Educação, aconteceu nos diversos setores, que tinha o objetivo central de acabar com tudo que era público. Esse Ensino Médio brasileiro veio precarizar a nossa escola, esse bem que é tão precioso para o povo brasileiro, mas também veio para tirar toda a expectativa, toda a perspectiva, toda a esperança do estudante de ter algo melhor, de enxergar na Educação uma possibilidade. Então, a nossa luta aqui era, sobretudo, na defesa do que é público, do patrimônio que é nosso, mas também na defesa da esperança do jovem brasileiro, do estudante, de achar uma perspectiva e um futuro através da Educação. Na prática, esse projeto veio justamente para acabar com tudo isso.

A ubes tem segurança em afirmar que a maioria ou parte significativa dos estudantes do ensino médio não estavam satisfeitos com a reforma tal como ela tinha acontecido até agora?

Sim, é possível afirmar que os estudantes não estavam satisfeitos com esse Ensino Médio. Podemos apresentar tanto a consulta pública do Ministério da Educação, como a nossa nota técnica, que também passou por uma série de perguntas bem respondidas, tem as nossas passagens em sala [de aula]… Não falamos só com a nossa base ativa, a gente passa em muita sala, conversa com muitos estudantes. E todos eles têm a mesma percepção de que esse Novo Ensino Médio não cabe para eles e que precisava acabar.

O ministro da educação, Camilo Santana, se comprometeu a enviar para o Congresso um projeto de lei para um novo Plano Nacional de Educação que respeitasse as decisões da Conae. O PL 2614/2024, que propõe um novo PNE, foi entregue pelo governo e está tramitando na Câmara. Qual a avaliação da Ubes sobre o texto? Ele atende às demandas da Conferência Nacional de Educação?

Eu, inclusive, estava na entrega [do PL] ao Congresso Nacional, junto com o presidente Lula e com o ministro. Mas a gente apresentou algumas preocupações. Primeiro, que a gente não podia chegar daqui a dez anos com o mesmo resultado, porque é absurdo chegar dez anos depois do lançamento de um Plano Nacional de Educação e quase nenhuma meta ter sido atingida [como pesquisas mostraram que aconteceu com o PNE 2014-2024, que se encerra este ano]. É muito absurdo. E também lançamos o desafio de ampliar a meta da conectividade das escolas, que é uma pauta da Ubes muito importante. Muita gente não tem acesso à informação. [Esse] é o principal meio de comunicação do nosso país hoje, então, [tem que] ampliar isso. E colocamos algumas questões como, por exemplo, a [importância] de se fazer uma grande campanha em defesa [do investimento de] 10% do PIB [Produto Interno Bruto] para a Educação, que infelizmente passou por um processo de desmonte. A gente não ia abrir mão desses 10% do PIB para a Educação.

Uma das principais políticas do atual governo federal para estudantes do ensino médio é o programa ‘pé de meia’, que garante uma bolsa para estudantes, visando combater as desigualdades sociais na escola e garantir a permanência dos alunos. Eu queria que você dissesse como a Ubes avalia o ‘pé de meia’ e comentasse outras iniciativas governamentais que vocês achem relevantes para esse segmento.

Para nós, o ‘Pé de Meia’ é a principal política de combate à evasão escolar no nosso país. É essencial, importantíssimo para o nosso país. Inclusive, foi algo que a gente [a Ubes] pensou e apresentou para o governo. Óbvio que eles batizaram, deram o nome e tudo mais, mas foi uma coisa que a gente pensou e apresentou para o governo. Inclusive, a última presidente da Ubes, a Jade Beatriz, é a embaixadora do ‘Pé de Meia’. E nós conseguimos ampliar [o programa] para a galera que tem acesso ao CadÚnico. A nossa luta é para que aumente o valor e chegue para todo mundo. Outra política importante foi justamente a ampliação dos Institutos Federais, que para a gente é o melhor modelo de Educação já visto no nosso país e que precisa mesmo ser ampliado, replicado. Então, a gente está aqui para garantir a manutenção dos que já existem, mas também a valorização dessa ampliação.

A Ubes representa os estudantes secundaristas, segmento que inclui os estudantes de cursos técnicos integrados ou concomitantes ao ensino médio. Quais as principais pautas da Ubes para esses estudantes e para a educação profissional?

Em primeiro lugar, é o orçamento. Não tem como falar de escola técnica sem lutar por orçamento. A gente passou por longos anos de governo [Jair] Bolsonaro com os Institutos Federais com orçamento quase zero, vivendo de Emenda Parlamentar. Tivemos que fazer vaquinha para comprar luva para atuar em laboratório. Isso é muito absurdo. Então, a luta por orçamento é primordial. Mas tem também a luta por um ensino técnico que não seja tecnicista, que não esteja voltado apenas para a formação para o mercado de trabalho, porque a gente não é mão de obra barata. A gente não quer apertar parafuso, a gente quer criar uma máquina que aperte o parafuso para a gente. Então, precisamos ter um ensino técnico que esteja tanto a serviço do desenvolvimento nacional, quanto a serviço da ciência nacional. A luta é por um ensino técnico que esteja alinhado à pesquisa, à extensão, à comunidade. Tudo isso são pautas que são do ensino técnico e que precisam de muita atenção. Inclusive, é importante falar aqui do ensino técnico estadual, que em muitos lugares é precarizado e precisa de atenção. A nossa luta é por valorização desses estudantes e dessas escolas técnicas estaduais em relação ao orçamento, à estrutura, mas também em relação à ideologia, ao que a gente acredita, à pedagogia.


  1. Notas e referências
  2. Entrevista realizada e publicada na edição de número 96, de agosto de 2024, da Revista POLI, da Escola Politécnica em Saúde Joaquim Venâncio (EPSJV), da Fiocruz. Disponível em: https://www.epsjv.fiocruz.br/sites/default/files/poli_96_web.pdf.
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