Memórias da vida no São Francisco

Viagem a Serra do Ramalho (BA), município dos desalojados pela barragem de Sobradinho. A história de um casal de idosos perpassa as transformações da região: a resiliência que constroi afetos, a tristeza dos sem-rio, promessas vazias de políticos e o êxodo das novas gerações

Fotografia de Camila Reis, neta de Alípio e Elizabete.

Este texto foi originalmente publicado no Blog da Biblioteca Virtual do Pensamento Social (BVPS), com o título “Memórias de uma família sertaneja”. É a primeira parte de uma reportagem. A segunda e última será publicada na próxima sexta. Para ler outros textos da BVPS por nós publicados, clique aqui.

Que é a vida? É o brilho de uma luciergana na noite. É o hálito de um búfalo em inverno. É a breve sombra que atravessa a erva e se perde no ocaso.
– Truman Capote

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Há uma pequena casa de tijolos numa rua de terra batida, onde outras, como ela, se alinham em estreita retidão, sombreada por juazeiros e mangueiras. Sobre suas telhas se estende o mesmo céu sertanejo; em seu arrodeio, o verde que afaga e a secura que mantém pequenas casas de tijolos à espera, num estranho descompasso de quem nasceu para abrigar, mas ainda não abriga. Nesse lugar de ausência provisória, sob o sol veemente que agora dorme, cardeais-nordestinos repousam enquanto corujas em caça abrem silenciosamente a noite estrelada.

Dois anos antes, não havia nem esta casa, nem esta rua.

Era 1973, no oeste baiano. A 800 quilômetros dali, o governo militar dava início à construção da Usina Hidroelétrica de Sobradinho, planejada para transformar as margens do rio São Francisco nas proximidades de Casa Nova, Remanso, Sento-Sé, Juazeiro, Pilão Arcado e Xique-Xique. Para muitos, era o tão esperado anúncio de uma nova realidade econômica, d’onde jorrariam em abundância água, leite e mel. Para os beraderos (aqueles que viviam à beira do rio e dele retiravam o sustento e o sentido de suas vidas), era também o prenúncio da antiga profecia de Antônio Conselheiro: “o sertão vai virar mar, o mar vai virar sertão”.

Como numa cena bíblica, cerca de 4.800 famílias testemunharam à inundação de suas cidades. A água varria para fora das vistas cada vestígio de memória. Técnicos e políticos prometiam a brevidade da desordem. Garantiam tratar-se de uma travessia necessária para cumprir outra profecia conhecida pelos sertanejos sanfranciscanos: a entrega da terra prometida. Assim, em 13 de maio de 1975, foi assinado o Projeto Especial de Colonização Serra do Ramalho – último de seu tipo no estado da Bahia –, concebido para reassentar as populações ribeirinhas desalojadas e promover novas formas de sustento. Uma “retirada”, no dizer dos beraderos. Uma “colonização”, no dizer do governo.

Desse ambicioso projeto de desenvolvimento regional nasceu aquela rua estreita cheia de casas. Uma entre milhares espalhadas nas 23 agrovilas do empreendimento. Gente e esperança se enfileiravam para ocupar seus novos lares e tecer vida nova sob a sombra de antigas mangueiras. Como a família de beraderos que, amontoada numa barcaça a vapor, chegou pela primeira vez à pequena casa de tijolos — e cujos nomes infelizmente desconhecemos.

Chegaram, mas não permaneceram.

Para os beraderos sanfranciscanos, o rio era mais do que um recurso natural; era o eixo de sua percepção cultural e referência espacial. Daí que, apesar do recebimento de terras e salário-auxílio oferecidos pelo governo, retirá-los de suas margens gerou efeitos não premeditados pelas forças superiores: a destituição “de todo o conjunto de suas atividades sociais, seu calendário agrícola, de festas, que estavam organizadas em função do ritmo do rio” (Martins-Costa, 1989: 10). Faltou aos planejadores a sensibilidade para compreender que a vida humana não se limita à sobrevivência; esta é tecida também por elementos simbólicos e materiais que lhe dão sentido, sem os quais somos colocados na triste sina da desordem.

Contudo, o que para alguns não lhes atendeu o espírito – com a justiça de causa –, para outros foi visto como a chance de abandonar as dificuldades da seca irremediável. Foi assim que uma família vinda do interior árido do Alagoas encontrou naquela casa de tijolos sua morada. O que se segue é uma história real de amor, adoecimento e união que, embora profundamente particular, espelha um traço marcante das culturas sertanejas Brasil adentro: onde o eu se enlaça inevitavelmente ao outro. Todas as informações foram retiradas de relatos dos moradores, observação participante e bibliografia sobre a região, aos quais deixo meu mais terno agradecimento [1].

Antes e depois da barragem de Sobradinho.

Serra do Ramalho, Bahia. 18 de outubro de 2024.

Asfaltaram várias ruas no ano passado. Estão felizes, os moradores. Todos os prefeitos anteriores se elegeram com essa promessa, mas só agora fizeram. E nem foi o prefeito. Foi o governo do estado que pariu essa bendita obra. A construção do mercado ao lado… bem, essa está abandonada mesmo. É capaz de desabar e ainda matar alguém.

Melhor não entrar para olhar, disseram.

Dentro da 03 foram só duas as ruas asfaltadas. Parece pouco, mas o importante pros locais é que a estrada de ligação das agrovilas ímpares ficou um tapete. Excelente mesmo. Até pouco tempo era um sufoco andar naquele amontoado de terra esburacada. Difícil até de imaginar. Carros e carroças tremiam como antigos paus-de-arara atravessando o Brasil. Quem ficasse doente tarde da noite, doente de coisa séria, sofria sem saber se “chega ou se vai”. Mas quase sempre chegavam.

Por outro lado – como tudo na vida tem seu outro lado –, o asfalto aumentou a quantidade de acidentes. Ovelhas, bois e afins, com ou sem asfalto, ainda precisam atravessar a estrada. E a meninada corre demais.

Permita-me explicar. A 03 é só uma das 23 agrovilas de Serra do Ramalho – município criado após a construção da barragem de Sobradinho e emancipado em 1989. Cada uma delas com seu número correspondente. Estas são conectadas por duas estradas paralelas: uma que liga as ímpares e outra, as pares. E ambas levam até o município de Bom Jesus da Lapa, onde alguns serra-malhanses vendem mercadorias como forma de sustento. Ou seja, não é possível sair da 05 e ir direto para 06, ou vice-versa. Entendeu? Cada eixo é um eixo. O que implica certas divisões culturais e, às vezes, algumas rixas.

As estradas são cercadas de ambos os lados por vegetação rasteira de caatinga – verde em parte do ano, seca noutro, com algumas árvores maiores se exaltando em meio à planície. Há um cheiro forte de cansanção que preenche as narinas. Já o transporte predominante é composto por motos, que desempenham papel significativo na cultura local. Um tanto de jovens trabalha desde cedo em pequenas atividades para comprá-las, geralmente usadas, e as empinam orgulhosamente pelas ruas da cidade. Também se vê carroças e cavalos, como nas imagens cristalizadas do sertão passado. Disso a aquilo, independentemente do veículo, espera-se de quem passa um cumprimento como sinal de boa educação. Andar ao lado de locais dá a singela impressão de que são vereadores, de tanto que param em prosas corriqueiras.

De clima quente quase o ano inteiro, as agrovilas são relativamente pequenas. Coisa de 1.400 habitantes, em média. Daí que todos na cidade se conhecem e a fofoca é parte cotidiana do convívio. Conversas frequentemente desembocam para assuntos como quem engravidou; quem traiu ou foi traído; as roupas de fulano ou sicrano e assim por diante. “É que falar da vida alheia dá um prazer danado”. Tem também os povoados quilombolas, como o Quilombo Pambu Araçá, Quilombo Água Fria e o Quilombo Barreiro Grande. E os povoados indígenas, como a Aldeia Fluniô e o Povo Pankaru. Mesmo antes da colonização, já havia por aqui uma série de povos originários, que não se deve esquecer. Assim, somando tudo, Serra do Ramalho tem atualmente uns 31.000 habitantes, com famílias vindas dos mais diversos estados.

Fotografia do meio de Heloa Reis, bisneta de Alípio e Elizabete.

Mas, como ia dizendo, nessa história toda de asfalto, quem teve sorte foi o casal Alípio e Elizabete, que mora ao lado do mercado abandonado. Uma das ruas asfaltadas foi a deles, bem defronte. Se bem que, verdade seja dita, eles quase não saem mais.

***

O velho Alípio tem setenta e oito anos. É um senhor de cabelos brancos ralos, braços e panturrilhas fortes de uma vida de trabalho na roça e uma típica barriga avantajada. Gosta de usar camisas de botão brancas ou beges, calça de alfaiataria e sandálias. Todos os dias, depois do almoço, ele se deita no sofá da sala, de cor verde-musgo.

— Tipo agora. Tá vendo? Já está lá.

Há pouco, Alípio almoçou uma bacia de frango, arroz e feijão junto com a esposa, Elizabete, de setenta e cinco, que levava a colher abarrotada até sua boca. Aí ele se ajeita assim, meio de lado, deixando as costas da mão direita repousada sobre a testa enquanto dorme. É um negócio de família isso, essa posição. De filho a bisneto, não tem quem não faça.

Tataraneto ainda não tem. Não tem porque não teve quem colocasse no mundo. A bisneta mais velha está com dezesseis, quase dezessete. Mas Elizabete diz que os jovens de hoje evitam emprenhar; nem ficar aqui querem mais, vão tudo embora pra longe. Ela é uma senhora de cabelos grisalhos muito lisos e uma presença… Deixa-me pensar… Marcante. Usa sempre vestidos coloridos que mal comportam seu busto proeminente e, assim como seu marido, sandálias. Elizabete carrega um olhar atencioso, que se mistura à sua vontade inigualável de conversar. Ela é capaz de lembrar cada detalhe de seu passado, assim como tudo o que seus vizinhos fizeram ou deixaram de fazer.

Na maior parte do tempo, contudo, eles ficam meio sozinhos em casa – ou ao menos assim se sentem –, apesar dos 11 filhos e das dezenas de netos e bisnetos espalhados pelo Brasil e no exterior. Tem gente morando em São Paulo, Rio de Janeiro, Brasília, Goiânia, Portugal e por aí vai. Isso tem a ver com o sangue migrante, dizem. Por perto tem a Val – a menina que cuida da casa – e também três filhos e alguns netos nas proximidades, que sempre aparecem. Maria Salete, a primeira filha, é quem dá banho nos dois todos os dias. Tarefa nada fácil devido à baixa mobilidade do casal. Ainda assim, é comum ver Elizabete lavando as louças, preparando refeições e se recusando ajuda para caminhar. Recusa que se deve prontamente ignorar.

Ela diz que com a idade costuma vir certa dose de solidão. Mas o celular tem ajudado com a questão das distâncias. Antes, falar com quem estava longe era difícil, podiam ficar longos períodos sem notícias dos familiares; agora, a família sempre liga para matar a saudade, garantir que eles não se sintam tão sós. É que, quando a casa cheia vira hábito – com gente correndo de um lado pro outro, algazarra, uns gritos de vez em quando – o silêncio pesa. E, como eu disse há pouco, eles quase não saem mais. Então, é o mundo que precisa vir até eles.

Olha, a idade chega pra todo ser vivente. É inevitável. Menos pra quem se mete em coisa errada ou praqueles que Deus gosta tanto que decide levar mais cedo, ensina Elizabete. Nesse instante, ela está sentada aqui na varanda enquanto olha o movimento da rua. Há um cheiro fraco de aroeira e manga vindo de algum lugar. Alípio segue dormindo com a mão repousada sobre a testa, os olhos cerrados. Ela estava contando que, tempo atrás, teve essa menina da família, morreu assim, de doença, do nada. Tinha seus quinze anos. O mundo inteirinho ficou triste. Elizabete a viu correndo no dia anterior, brincando pelos terreiros, fazendo as estripulias normais de adolescente. Aí, no dia seguinte: silêncio. De ponta a ponta só se ouvia dizer — “pobre alma”. Essa é daquelas coisas que ninguém gosta de lembrar.

Mas com a idade vem outra coisa também.

Eu ainda não disse, mas o velho Alípio está com um problema sério de saúde. Sério mesmo. Alzheimer. Não que ele tenha se esquecido de tudo, como dizem que vai acontecer, mas dá pra notar a piora diária. É triste. Tem vez que ele olha pra você, olha bem concentrado assim, desse jeito, e dá de perceber que não tem aquele brilho no olho, sabe? É como se atravessasse por dentro da gente, indiferente, sem reconhecer. Mas depois de um tempo o brilho volta e ele abre aquele sorriso bonito que tem. Aí a gente sorri de volta, claro. Mas o nosso é um sorriso desalegre.

Essa é outra coisa que ninguém gosta de lembrar.

***

Por falar em celular, agora à noite o casal recebeu uma ligação da filha que mora em São Paulo. Estão no quarto, os dois. O resto da casa de tijolos está em silêncio. Lá fora, ouvem-se algumas motos passando, e da janela, logo acima da cama, vê-se a noite escura, d’onde a luz de um poste à esquerda pisca meio sem querer. Só que essa noite tem algo de diferente, um quê difícil de explicar. Alípio parece um pouco mais triste do que de costume. Elizabete, claro, percebe essas coisas. Ela vê no cansaço de sua voz, no corpo levemente caído pra frente, na falta de ânimo como se lhe faltasse algo. Não sei. Mas falar com a filha é sempre bom, revigora.

A conversa segue sobre um pouco de tudo – coisas normais de pais e filhos. E o ânimo vai pouco a pouco preenchendo a casa quase vazia. E as cigarras cantam no terreiro como se quisessem se despedir mais cedo da primavera. E Alípio… Bem… Alípio deixa escorrer de sua boca uma ideia: “reúne os Leite tudo”. Como assim? “Reúne os Leite tudo”, repete. Não apenas aquela parte da família que costuma aparecer todo fim de ano. Não. O que Alípio está propondo, de um jeito um tanto surpreendente para a situação, é outra coisa. Ele quer todos. Cada filho, neto e bisneto possível. Os mais de 70 membros de uma só vez. Nem Elizabete acredita no que está escutando.

Acontece que em dezembro é seu aniversário.

Desde que adoeceu, Alípio mudou um pouco. Quem o conhece lembra das grandes festas que organizava. Com gente de tudo que é agrovila prestigiando seus eventos. Ele e Elizabete sentavam-se como o rei e a rainha de um grande palácio sertanejo. E todos dançavam alegres, comiam e bebiam em abundância até a madrugada dizer chega. Mas já faz um tempo que isso não acontece. Dá pra dizer que ele está irreconhecível, nesse sentido. E é compreensível. Daí a surpresa. Daí a alegria de tão enorme ideia.

Era por volta de 2016 quando Alípio teve seu primeiro sintoma. Ninguém sabia ainda do que se tratava. O velho saiu de manhã cedo pra tirar leite. Levava um típico chapéu de vaqueiro sobre a cabeça, sem o qual parecia lhe faltar algo dentro do peito. Então rumou pelas ruas de terra da agrovila, com o sol ainda frio, realizando as tarefas necessárias de mais um dia de trabalho. Contudo – e isso nada tinha de comum – Alípio não retornou na hora marcada. Ninguém tinha notícias. Um amigo que passava a cavalo, lá adiante, com a algibeira a tira colo, o encontrou em pé, próximo a um poço. “Ei, Alipe. Bom?”. Mas o senhor parecia confuso, perdido. “Indo aonde?”, insistiu. E a resposta veio meio titubeante: “não sei chegar em casa”. De primeiro açoite, essas palavras causaram riso no amigo. “Para de graça”. Mas não havia nada de cômico na ocasião. Não dessa vez. Todo mundo sabe que Alípio adora uma joça. Mas, não dessa vez. Só foram entender o acontecido uns quatro anos depois, quando a piora gradual o levou até o diagnóstico dessa doença maldita.

Sim. Maldita. O Alzheimer não apenas arranca de ti suas memórias – primeiro as mais recentes, depois aquelas tão profundamente enraizadas. Ele debilita todo o conjunto de sua vivência com o mundo. Retira suas forças, esperanças; aplaca gradativamente seu desejo pelo amanhã, até que resta apenas o brilho opaco de um sol poente, que pouco a pouco repousa… que pouco a pouco…

Olha, é difícil saber exatamente o que ele pensou durante a proposta da festa; que cenário, quais sentimentos lhe atravessavam o peito naquele momento. Mas com certeza algo lhe rebulia o estômago. Agora, já deitado de barriga pra cima ao lado de sua velha, com quem é casado há mais de sessenta anos, sente a mão dela tocar levemente seu braço nu. Alípio tem um certo peso no olhar. Talvez esteja pensando nos caminhos e nos acontecimentos que o levaram até aqui, nas lembranças fragmentadas de uma vida inteira. Talvez, só talvez, sejam memórias de lugares bonitos, cheios de gente, com os tantos animais que já criou, de seus anos no Alagoas, de seu amor por Elizabete. Gosto de acreditar que essas imagens encham seu espírito de esperança antes de mais uma noite de sonhos. Em breve, se sua ideia der certo, o resultado humano de sua história estará ali com ele, na mais absoluta comunhão.

E mais uma moto passa ligeira sobre a rua de asfalto.

Fotografias de 2014 tiradas por Camila Reis, neta de Alípio e Elizabete

Maravilha, Alagoas. Entre 1960 e 1985.

Dizem que a gente nunca esquece a primeira paixão. E quando a primeira paixão – de infância – é também o grande amor consumado de uma vida inteira?

***

[Continua]


Notas

[*] Para mais informações, o autor recomenda o livro Serra do Ramalho: terras de grandes riquezas, feito por moradores da região com o apoio da Prefeitura de Serra do Ramalho e da Secretaria Municipal de Educação.

[1] Agradeço ao professor e amigo André Botelho pelo incentivo à realização deste texto. E a Alípio e Elizabete pelo atencioso carinho em nossas longas conversas na varanda.

Referência

MARTINS-COSTA, Ana Luisa B. (1989). Uma retirada insólita: a representação camponesa sobre a formação do lago de Sobradinho. Dissertação de Mestrado no Museu Nacional, Rio de Janeiro.

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