Haverá futuro para os camponeses?
Os anos neoliberais os esmagaram em dívidas e angústias. O sistema os vê como vestígio do passado. Ainda assim persistem, são quase 2 bilhões e produzem 70% dos alimentos. Suas lutas não cessam. Eles podem ser parte de uma alternativa
Publicado 26/09/2025 às 20:04 - Atualizado 26/09/2025 às 20:14

Por Maryam Aslany, na Aeon | Tradução: Antonio Martins
Em 2007, as Nações Unidas divulgaram um relatório sobre a Situação da População Mundial. O documento assinalava que a vida humana na Terra estava ultrapassando silenciosamente a ultrapassar uma marca histórica. Em 2008, a proporção de pessoas residentes no campo caía – pela primeira vez na história – para menos de 50%. Hoje, apenas 42% da humanidade vivem no campo.
Para muitos moradores das cidades, a urbanização das sociedades é natural e inexorável. Extrapolando a partir de tendências passadas, eles imaginam um futuro no qual a grande maioria terá abandonado a terra, deixando-a bucólica, automatizada e vazia. No processo, preveem – com certo alívio! – a extinção iminente de uma figura antiga: o camponês.
Essa palavra é evitada em conversas polidas; em muitos idiomas, é usada como um termo de insulto ou desprezo. Os próprios camponeses são vistos como um vestígio constrangedor, a antítese do “progresso”. Seja à ireita ou esquerda, os pensadores ocidentais ensinaram que, para se tornarem modernas, as sociedades precisam livrar-se de seus camponeses. Enquanto Adam Smith ansiava pela substituição dos camponeses por proprietários de terras (pois então “a terra… seria muito melhor aproveitada”), Karl Marx previu sua substituição pela gestão socialista moderna. Tornou-se lugar-comum que a agricultura acabaria por ser monopolizada por grandes capitais e maquinário, e que as cidades absorveriam a maior parte da população humana.

Mesmo na Europa em industrialização, o processo não foi exatamente assim. Sim, o campo tradicional foi largamente destruído entre os séculos XVIII e XX – mas o êxodo resultante foi muito maior do que poderia ser absorvido pelas fábricas urbanas. Sessenta milhões de europeus tiveram de escapar, em vez disso, para o Novo Mundo. Mas, de qualquer forma, a Europa desempenha um papel único na história capitalista, e seria tolo extrapolar a partir dela. Outras regiões seguiram outros caminhos.
Em grandes partes da África, América Latina e Ásia, a urbanização está desacelerarando. A maioria daqueles que entrariam em fábricas já o fez. Aqueles que valorizam a segurança da vida na aldeia, por sua vez, têm pouca apetência por favelas urbanas, isolamento e hipercompetição. Por isso, enquanto a humanidade se urbanizava a uma taxa de 1,06% ao ano entre 1950 e 1970, essa taxa caiu agora para 0,74% e ficará em pouco mais de 0,6% até 2030. Como a população mundial triplicou desde 1950, os números absolutos da população rural são hoje maiores do que nunca. Pelos meus cálculos, até 2 bilhões de pessoas vivem no campo na África, América Latina e Ásia, onde as pequenas propriedades familiares dominam. Após 300 anos de “modernização”, os camponeses ainda constituem cerca de um quarto da nossa espécie, superando amplamente os trabalhadores de linha de montagem, mineiros, funcionários de escritório ou taxistas.

Os camponeses são definidos por pequenas propriedades familiares, geralmente com até 4 hectares, cuja produção é voltada tanto para subsistência quanto para rendimento em dinheiro. O trabalho é realizado principalmente pela mão-de-obra familiar (não remunerada). Muito mais do que os agricultores dos países ricos, os camponeses estão totalmente expostos às flutuações do clima e dos mercados. A sua sorte pode variar de modo dramático de um ano para o outro.
Os camponeses estão totalmente integrados na economia do século XXI, que não poderia funcionar sem sua produção de açúcar, algodão, cacau e outras commodities essenciais. Embora controle menos de um quarto das terras agrícolas mundiais, a agricultura camponesa é altamente eficiente, e estimativas sugerem que 70% da população mundial depende dela para parte ou toda a sua alimentação. Em muitos setores cruciais, a produção camponesa é também mais adequada às condições sociais. A agricultura camponesa é ainda melhor do que as alternativas industriais na gestão da saúde do solo, dos recursos hídricos e da biodiversidade, sendo por isso amplamente vista como um escudo contra as alterações climáticas. Sem camponeses, a economia global não poderia funcionar e os nossos sistemas naturais entrariam em colapso.
A vida ainda depende do campesinato. Todos nós somos afetados, portanto, pelo fato de esta classe social se encontrar hoje numa crise aguda. Uma crise que raramente recebe atenção adequada na discussão pública.
Em raras ocasiões, o campo consegue chegar à primeira página. Em setembro de 2020, protestos de grande escala de agricultores eclodiram na Índia após a aprovação de novas leis que davam às corporações um papel maior nos mercados agrícolas. Agricultores em vários estados indianos – especialmente Punjab e Haryana, onde muitos dependiam do Estado para comprar o seu trigo e arroz – realizaram manifestações e bloquearam as autoestradas para Délhi. A capital é um centro mediático global; naturalmente, houve uma cobertura generalizada.

Essa cobertura é rara; os protestos dos agricultores, no entanto, são endêmicos. Em novembro e dezembro de 2020 – enquanto as estradas para Délhi estavam bloqueadas por tratores – soldados no Peru disparavam contra agricultores que protestavam contra uma lei que isentava o agronegócio de obrigações para com os trabalhadores. No Uzbequistão, também em 2020, agricultores protestaram contra o sistema de clusters, pelo qual a terra era forçosamente entregue a clusters corporativos, geralmente geridos por indivíduos próximos da elite política. Nos últimos cinco anos, protestos sérios de agricultores ocorreram na Argentina, Brasil, Colômbia, Equador, Gana, Quénia, Indonésia, Nepal, Irã, Paquistão, Filipinas, Uganda – e a lista continua.
Por detrás dos protestos encontra-se uma vaga ainda maior de descontentamento invisível. Nas minhas viagens por redutos camponeses da América Latina, África e Ásia, encontrei por toda parte a fúria dos agricultores em resposta aos ataques às suas terras e a políticas concebidas para permitir que o agronegócio e os processadores industriais capturem cada vez mais do seu rendimento. “Não adianta o governo oferecer alívio da pobreza aos agricultores”, disse-me um organizador agrícola na Índia, “quando as suas políticas os mantêm na escravidão. Primeiro é preciso libertar os braços e as pernas dos agricultores.”
Às vezes, a crise camponesa chega aos meios de comunicação por outras razões. Os levantes da Primavera Árabe, no início da década de 2010, acumularam força a partir dos protestos agrários no Oriente Médio e Norte de África – mesmo que os agricultores tenham sido rapidamente marginalizados depois. Muito do que é geralmente noticiado como “terrorismo” também tem as suas raízes no colapso do campo. O Boko Haram e outros grupos militantes que operam ao longo da margem sul do Saara recrutam suas forças entre agricultores e pastores deslocados pela desertificação, alterações climáticas e pelo fechamento de rotas nômades tradicionais. “Grupos jihadistas”, escreve um perito, “perceberam que certas populações foram obrigadas a enfrentar sozinhas os impactos devastadores das alterações climáticas nos seus meios de subsistência tradicionais”, o que “criou terreno fértil para o recrutamento.”
A migração em massa é outro sintoma a crise. A maioria dos refugiados rurais dirige-se à metrópole mais próxima, mas dezenas de milhões são levados a cruzar as fronteiras internacionais. As caravanas de migrantes que saem da Guatemala, El Salvador e Honduras em direção ao México e aos Estados Unidos são largamente compostas por tais refugiados. Outras rotas levam do Burkina Faso, Mali, Níger e Chade através do Norte de África, para a Europa; e da África Oriental para a Ásia Ocidental.

O suicídio é uma chaga. De acordo com defensores dos agricultores que entrevistei, mais de 400 mil agricultores indianos tiraram a própria vida. A maior concentração tem sido nas regiões produtoras de algodão de Maharashtra. O algodão é um recurso global crítico, cujo preço tem impacto político agudo. Uma malha sofisticada de leis e mercados induz os produtores a vender continuamente abaixo do custo de produção – e assim a entrar numa espiral de dívida da qual muitas vezes só encontram saída mortal.
Estes são alguns dos sintomas da crise do campesinato global na era neoliberal. Não devemos ter dúvidas: é uma crise política. Por toda a parte, os Estados estão quebrando seu contrato com os camponeses e voltando-se, em vez disso, para alianças antiagrárias com corporações globais, figurões locais, crime organizado e gangsterismo. Se não for freada, esta crise trará consequências aterradoras; pode mesmo ameaçar a nossa sobrevivência como espécie. É, talvez, a história mais importante do século XXI.
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Durante a maior parte da história, os camponeses forneciam o recurso económico básico: sem eles, não havia Estado. Existia, portanto, um vínculo especial entre camponeses e reis. Governantes bem-sucedidos – por exemplo, na China, Pérsia, Índia, Egito, Arábia, Etiópia, África Ocidental, nos Andes – nutriam a economia agrária ao lançar obras de irrigação, proteger as posses de terra dos camponeses, garantir os preços dos cultivos, alimentar as populações quando as colheitas falhavam e controlar comerciantes, intermediários e especuladores de terras. Muitos desses sistemas foram destruídos pelo colonialismo europeu; restaurá-los foi um objetivo principal dos governos pós-coloniais asiáticos e africanos. Questões semelhantes assolaram a América Latina do século XX, onde os movimentos democráticos agrários foram continuamente confrontados com oligarquias latifundiárias e alianças anticomunistas.

Nas décadas anteriores a 1980, alguns países em desenvolvimento testemunharam uma reforma agrária radical e dramática. Os governos redistribuíram terras, garantiram que os agricultores tivessem títulos firmes e protegeram-nos da necessidade de vender estas posses em tempos de dificuldade. As sementes tornaram-se um recurso nacional crítico; os Estados criaram bancos de sementes e centros de investigação para preservar o património, desenvolver variedades de alto rendimento e garantir o fornecimento de comida. Os Estados também formalizaram os mercados agrícolas, estabeleceram preços mínimos e frequentemente tornaram-se eles próprios compradores de última instância. Nos melhores casos – por exemplo, na Coreia do Sul ou no México – tais estratégias melhoraram tanto os padrões de vida quanto a produção agrícola.
Muitas dessas reformas foram revertidas durante a reestruturação neoliberal das décadas de 1980 e 90. Projetado por agências como o Banco Mundial, o Fundo Monetário Internacional e a Organização Mundial do Comércio, este processo forçou os Estados a reorganizarem-se em torno da competição pelo capital global. Estabeleceram novas alianças, não apenas com essas agências, mas crucialmente com o agronegócio global. Como resultado, um controle significativo dos assuntos rurais foi entregue a bancos e corporações internacionais. A crise camponesa atual origina-se aí.
Isto não quer dizer que os mercados globais estejam substituindo a agricultura camponesa por técnicas mais “modernas”. É verdade que, em alguns grupos de cultivos, grandes plantações substituíram as pequenas propriedades. A produção de trigo, por exemplo, pode ser realizada em larga escala com pouca mão-de-obra humana, usando mecanização e tipicamente altos insumos de combustíveis fósseis e fertilizantes. Tais técnicas foram generalizadas do México e da Ucrânia ao Cazaquistão e à Índia. As palmeirs produtoras de óleo também: em partes do sudeste asiático, os pequenos agricultores foram despossuídos à força e depois trazidos de volta como trabalhadores assalariados em plantações corporativas de dendezeiros. E as galinhas: megazonas avícolas no sul da China – onde a avicultura era anteriormente um domínio camponês – concentram agora perto de um bilhão de galinhas em condições semelhantes às de fábrica.
Nem toda a agricultura, no entanto, pode ser industrializada. O arroz, que é o alimento básico para metade do planeta, é pouco adequado a grandes plantações; requer intervenção humana intensiva e é melhor cultivado em pequenas propriedades familiares. Apesar de décadas de influência corporativa, ainda é produzido por cerca de 500 milhões de camponeses. O mesmo se aplica a outras culturas essenciais. A produção de algodão foi mecanizada nos EUA e na Europa, mas a qualidade sai prejudicada, razão pela qual a produção camponesa continua a dominar; as pequenas propriedades familiares na Índia e na China contribuem, de longe, com a maior proporção do fornecimento global.

Os camponeses não só têm habilidades essenciais, como também são, da perspetiva corporativa, parceiros desejáveis – precisamente porque são pequenos, politicamente fracos e fáceis de coagir. Em alguns setores, as corporações chegaram até a fazer a descoberta lucrativa de que os camponeses – cujo primeiro compromisso é com a terra – continuarão a cultivar com prejuízo. A reorganização neoliberal do campo não erradicou, portanto, o campesinato. Em vez disso, os camponeses foram legalmente reconstituídos de forma a maximizar a eficiência e o lucro. No processo, os Estados que anteriormente estavam ao lado das suas populações contra as multinacionais – vistas muitas vezes como uma influência neocolonial – mudaram de lado, alinhando-se com o grande capital contra as suas massas agrárias.
O primeiro foco da reforma neoliberal no campo tem sido transformar o campesinato global em consumidor do agronegócio. As sementes estiveram no centro deste processo: sob a bandeira das proteções à propriedade intelectual, da Organização Mundial do Comércio (OMC), fundações internacionais e agências de financiamento persuadiram os países em desenvolvimento a ilegalizar a guarda e troca tradicional de sementes e a desmantelar os bancos estatais de sementes. Os agricultores tornaram-se dependentes de produtos corporativos – que muitas vezes duravam apenas uma estação e, portanto, não podiam ser guardados. Pequenos agricultores protestaram, em muitos países, contra a consequente perda de “soberania das sementes” e biodiversidade. Milhares de agricultores ganenses, por exemplo, protestaram contra a Lei das Melhorias Vegetais de 2013, que avançava com os interesses do agronegócio ao criminalizar os agricultores que guardavam sementes para plantar no ano seguinte; o projeto de lei foi retirado sob pressão, mas reintroduzido em 2020 sob um nome diferente.

Os defensores das sementes corporativas frequentemente apontam para a Revolução Verde, um triunfo dos laboratórios e fundações norte-americanas da década de 1970. Ela foi construída a partir de variedades de sementes geneticamente modificadas de alto rendimento, aliadas à irrigação intensiva e fertilizantes. Seu legado é duvidoso: no estado de Punjab, o berço da Revolução Verde da Índia, as terras agrícolas estão saturadas de químicos, os aquíferos estão desastrosamente esgotados, e os agricultores estão presos num ciclo de custos sempre crescentes. Na era da crise climática, no entanto, os próprios camponeses estão desesperados para encontrar sementes mais resilientes e de maior rendimento. Com as fontes alternativas de sementes removidas, as corporações desfrutaram de uma bonança. A Bayer (Alemanha) e a Corteva (EUA) controlam 80% das patentes de sementes geneticamente modificadas. Aliadas às sementes estão os fertilizantes e agrotóxicos corporativos; juntamente com a ChemChina e a Sinochem (China) e a BASF (Alemanha), por exemplo, essas mesmas empresas controlam cerca de 60% do mercado global de pesticidas.
Agora, o campesinato global gasta centenas de bilhões de dólares por ano em sementes e químicos industriais. Embora a produção agrícola seja inquestionavelmente maior como resultado, esta despesa está perigosamente desfasada do rendimento dos camponeses. Tradicionalmente, os camponeses tentavam, tanto quanto possível, sobreviver sem dinheiro, que geralmente chegava em quantidade apenas na época da colheita. Eles gastavam pouco em sementes e fertilizantes e alimentavam-se, tanto quanto possível, com os seus próprios recursos. Hoje, precisam dispor de quantias significativas de dinheiro na época da semeadura e ao longo da estação de crescimento das plantas, para conseguirem chegar à colheita.
As mudanças climáticas também forçam muitos camponeses a ressemearem várias vezes, elevando em muito o custo do cultivo. Eles também gastam quantias muito maiores em despesas regulares como a educação dos filhos. A maior parte deste dinheiro precisa ser emprestada. A maioria dos governos tem esquemas de crédito agrícola, mas alguns camponeses carecem da garantia e da documentação para cobrir as suas necessidades desta forma. Outros esgotam rapidamente o seu potencial e devem procurar empréstimos noutros lugares. Daí o enorme espaço ocupado, especialmente na Ásia e na África, pelos agiotas rurais. Cobrando frequentemente 10% de juros ou mais por mês, eles podem deixar uma imensa destruição humana no seu rastro.
Em segundo lugar, as políticas neoliberais transformaram os mercados agrícolas. Nas últimas décadas, os agricultores têm sido cada vez mais excluídos das receitas resultantes da sua produção. Os meios pelos quais esta exclusão foi alcançada são, no entanto, variados e complexos.
Obviamente, as grandes corporações têm o poder de ditar os preços de mercado, em detrimento de milhões de pequenos produtores. Nesse sentido, os mercados “livres” parecem atuar contra os agricultores. Mas a história completa é mais matizada. Os agricultores do cacau, da cana-de-açúcar ou do algodão do mundo em desenvolvimento raramente obtêm os preços de mercado pelo seu produto. Entre eles e esses preços estão, frequentemente, as mesmas instituições estatais que foram criadas no século XX para proteger seu rendimento. Estas instituições derivaram para uma função quase oposta.

Em 1947, por exemplo, Gana criou monopólios de mercado para garantir que preços justos fossem pagos aos produtores de cacau. Agora, essas instituições interpretam o “interesse nacional” de forma oposta. Elas atuam para manter os preços baixos e, assim, gerar um subsídio, não apenas para o Estado, mas também para exportadores, processadores e consumidores de chocolate. Em 2023-24, os preços internacionais do cacau dispararam para até 12 mil dólares por tonelada, mas o rendimento dos agricultores foi limitado ao preço do governo, que oscilou entre US$ 1,8 mil e 3 mil por tonelada. As interações entre os gigantes internacionais da produção de doces e as agências governamentais da África Ocidental são complexas, mas os resultados não o são. Na década de 1970, os produtores de cacau ganhavam até 50% do valor do chocolate acabado; isso caiu para 16% na década de 1980 e é provavelmente para cerca de 6% agora. Enquanto o valor da indústria do chocolate ultrapassou os 100 bilhões de dólares, alguns produtores de cacau nesses países ganham menos de 300 dólares por ano. Gana e Costa do Marfim, cujas indústrias de cacau costumavam assegurar empregos a migrantes de toda a África Ocidental, são agora fontes significativas de migração para a Europa.
Grande parte do campesinato mundial é agora vítima tanto dos mercados livres quanto dos resquícios socialistas regredidos e controlados pelo Estado. A política camponesa é, portanto, mais complexa do que geralmente se imagina. Muitos camponeses seguem o movimento de esquerda Via Campesina, que procura restaurar os sistemas camponeses tradicionais e, assim, opor-se às sementes geneticamente modificadas e à tomada corporativa da agricultura. Mas há também gente comprometida com uma posição quase oposta. Em lugares onde as antigas proteções socialistas se transformaram em instrumentos de compressão de preços, muitos agricultores sonham com mercados “livres”.
O terceiro alvo da reforma neoliberal do campo é a terra camponesa. Ao contrário da sabedoria convencional – urbana –, a maioria dos camponeses deseja manter a sua terra. Recentemente perguntei a um agricultor de algodão indiano por que continuava o seu trabalho árduo, quando mal cobria o custo de cultivo e tinha de trabalhar noutros empregos para financiar sua pequena propriedade deficitária. Por que ele simplesmente não vendia a sua terra e se concentrava nessas atividades mais lucrativas? “A terra é a nossa mãe”, respondeu ele. “Você vende a sua mãe?” O seu sentimento é partilhado por muitos camponeses, para quem a terra representa não apenas segurança econômica, mas também herança, os antepassados e as gerações futuras.
Em muitos países, além disso, vender terras agrícolas não é apenas indesejável, é também difícil. As políticas pró-camponesas adotadas pelo Egito, Índia, México e tantos outros países nas décadas de 1950 e 60 – que ilegalizaram os grandes latifúndios e impediram que terras agrícolas fossem adquiridas para outros usos – agora garantem que os mercados de terras rurais permanecem fracos e os preços baixos. Vender a terra pode nem sequer fornecer aos agricultores capital suficiente para começar uma nova vida noutro lugar. Muito frequentemente, portanto, eles continuam a cultivar. Mesmo que as suas terras tenham encolhido, após gerações de partilha herança, e ficado abaixo do limiar de viabilidade; mesmo que tenham se degradado devido a uma falta perene de investimento; mesmo que as receitas se tornem negativas – eles continuam a cultivá-lo, em vez de permitir que retorne ao estado selvagem. A pequena propriedade não é, portanto, uma fonte de rendimento: fornece apenas estabilidade, uma base familiar, uma sensação de lar. Para mantê-lo, os camponeses envolvem-se de modo subalterno em atividades hipermodernas. Fazem turnos em fábricas para subsidiar o cultivo, enviam familiares para trabalhar na construção no exterior, gerem transportes e serviços locais. Grande parte da produção camponesa é hoje financiada a partir de outras fontes e funciona como um serviço público deficitário. As novas fachadas brilhantemente pintadas nas aldeias cambojanas são pagas não com os lucros inexistentes do arroz, mas com as remessas de familiares que migraram e trabalham em fábricas sul-coreanas.
Quando a terra agrícola é desviada para outros usos, o processo é frequentemente violento. No Brasil, Camboja, Gana, Índia, Filipinas e muitos outros países, os agricultores foram expropriados à força para que as suas terras possam ser reutilizadas para plantações, minas e projetos turísticos. Frequentemente, estes despejos são executados por agências estatais. Na Etiópia, Honduras e noutros lugares, as forças policiais prenderam ou até dispararam contra agricultores por protestarem. Mas grandes áreas do campo global também estão sendo criminalizadas, e os agricultores encontram-se em competição com forças não estatais violentas. Os camponeses são as principais vítimas, por exemplo, dos mineiros de ouro ilegais no Peru e na Colômbia; dos traficantes de madeira e mineração em Myanmar; de grupos paramilitares ligados à Rússia que ocupam depósitos minerais no Mali e na República Centro-Africana. As minas que tantas vezes emergem de tal turbulência poluem as terras agrícolas restantes com cianeto e outros químicos, destruindo ainda mais a economia camponesa.
Dois bilhões de pessoas não podem ser realocadas para as cidades. Sim, a população rural da China caiu de 80% em 1980 para 35% – mas a China é única. Mesmo na vizinha Índia, a população rural permanece em 65%, ou 900 milhões de pessoas. Toda a indústria transformadora, construção e mineração do mundo emprega atualmente apenas 800 milhões de pessoas: claramente, o campesinato global não pode ser absorvido pela indústria. É preciso perceber que, na ausência de níveis excepcionais de industrialização, nada pode sustentar grandes populações tão bem quanto a terra. Precisamos parar de ver a urbanização como o principal índice de progresso desenvolvimentista e perceber que ela é, em muitos casos, o sinal de um grande desastre: a destruição da vida rural pela grande agricultura e indústria, e a perda de sistemas humanos e ecológicos irreparáveis.
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O inimigo quotidiano do campesinato é o mesmo que o de todos nós: as alterações climáticas. Elas trazem temperaturas crescentes, secas, tempestades mais violentas e muitas irregularidades sazonais. As chuvas não chegam no momento em que as sementes precisam de ser plantadas; chuvas fora de época arruínam as colheitas e incentivam a propagação de pragas. O que os camponeses realmente precisam é de um vasto programa de adaptação às alterações climáticas, que envolverá principalmente a mudança para outras variedades e culturas. Tal adaptação, no entanto, requer capital. As pequenas propriedades precisam ser refeitas; um novo repertório botânico é necessário; tem de haver provisão, como em qualquer experiência, para o fracasso. Dado o cenário descrito, não é surpreendente que a maioria dos agricultores não consiga reunir o capital necessário.
Tradicionalmente, os camponeses devolviam os nutrientes ao solo sob a forma de resíduos vegetais, excrementos humanos e animais, peles e fibras decompostas. Como a maioria dos produtos agrícolas é agora consumida nas cidades, grande parte desse material acumula-se como esgoto e lixo urbano – e a única forma de os nutrientes poderem ser restaurados à terra é sob a forma de fertilizantes químicos. Com o tempo, isto faz com que a fertilidade do solo decline. Na minha própria pesquisa de campo, vi agricultores chorarem pelos danos que causaram às terras agrícolas com insumos químicos. Ao contrário das corporações, os camponeses não podem simplesmente dar de ombros diante do esgotamento de uma determinada extensão e seguir em frente. A sua terra chegou-lhes dos seus antepassados, que legaram também uma responsabilidade sagrada.
O fato de o estoque de terras aráveis do mundo estar tão gravemente prejudicado deve ser motivo de enorme alarme. Se as economias camponesas da América Latina, África e Ásia forem destruídas, nosso sistema alimentar entrará em colapso. Dados os vastos números envolvidos, entretanto, mesmo pequenas deteriorações ecológicas podem forçar milhões de novos refugiados a sair da terra. Dependendo de como as coisas progredirem, a Organização Internacional para as Migrações da ONU prevê que haverá entre 25 milhões e 1 bilhão de refugiados climáticos até 2050. Essas pessoas provavelmente não encontrarão fábricas ou escritórios onde trabalhar. A história sugere que alguns serão forçados a extrair um sustento pela força, juntando-se a grupos criminosos ou terroristas financiados por contrabando, sequestro e extorsão. O equilíbrio político global já é frágil.

Previsivelmente, o agronegócio tenta apresentar-se como a solução. Os websites das grandes empresas alimentares retratam felizes trabalhadores de plantações com uniformes corporativos. Eles orgulham-se do seu compromisso com uma agricultura “sustentável” ou “regenerativa”. Empresas como McDonald’s, Bayer, Mars e PepsiCo fazem parte de uma força-tarefa do agronegócio dentro da Iniciativa de Mercados Sustentáveis, que declara como objetivo projetar um sistema alimentar global mais sustentável e resiliente. “Só podemos alcançar isto”, explicou o CEO da Bayer em 2022, “se nós, enquanto indústria, intensificarmos coletivamente os nossos esforços para adotar práticas agrícolas regenerativas.”
Mesmo que tais declarações sejam feitas com sinceridade, os últimos 40 anos devem torná-las suspeitas. A parceria entre as grandes corporações e o campesinato global permitiu que as primeiras capturassem as receitas do segundo e, assim, removessem muita liquidez do próprio campo global. As pessoas que lá vivem, cujos bens mais preciosos lá se localizam e cujos meios de subsistência estão lá, viram a sua capacidade de gestão e investimento responsáveis diminuir catastroficamente. A única solução real é entregar a responsabilidade às pessoas que têm um interesse de vida ou morte na agricultura regenerativa.
O modo de vida camponês é um amortecedor crítico contra as alterações climáticas. As aldeias camponesas reciclam resíduos bioquímicos de volta para a terra; muitos camponeses também suprem as suas necessidades nutricionais das suas próprias propriedades. Os camponeses, que gerem diretamente cerca de 10% da terra no planeta – uma área cinco vezes maior do que todas as vilas e cidades – fornecem um contraponto ao extrativismo e ao curtoprazismo corporativos. Eles também preservam conhecimentos locais críticos sobre os sistemas de terra e clima, e as interações com plantas e animais. O campesinato é um dos recursos econômicos, sociais e ecológicos mais cruciais da humanidade. Precisamos investir nele se quisermos prosperar. Se for afluente e inovadora, esta classe poderá protegern-nos de uma degradação mais extrema dos sistemas naturais. Empobrecida e aterrorizada, será forçada, no final das contas, a deixar a terra em massa, com múltiplas consequências catastróficas.
Em 1979, quando escrevia de uma aldeia remota no leste de França, John Berger observou que o objetivo do camponês era transmitir os meios de sobrevivência (se possível tornados mais seguros, em comparação com o que herdou) aos seus filhos. Os seus ideais estão localizados no passado; as suas obrigações são para com o futuro, que ele próprio não viverá para ver.
Faríamos todos bem – e nossa sobrevivência pode depender disso – em generalizar a caracterização sintética e elegante de Berger da relação do camponês com a vida e a terra. A crise do campesinato global situa-se no centro de todas as outras crises, e temos de resolvê-la. Temos de recolocar os camponeses no centro da nossa visão do mundo. A sua luta para manter o seu lugar e papel vitais é a nossa luta. Uma luta da espécie.
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