EUA, uma potência com famintos

A abundância é para poucos: uma das nações mais poderosas do planeta vive o avanço da fome, que flagela 42 milhões. Latinos e negros são as principais vítimas. O drama é diferente do vivido no Sul global, claro, mas a decadência da “terra das oportunidades”

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“A fome é uma das poucas coisas que não esperam.”
Érico Veríssimo – O Tempo e o Vento (1949)

A ideia de que os Estados Unidos poderiam “entrar no mapa da fome” causa estranhamento imediato: afinal, trata-se da maior economia do planeta, potência agrícola que produz excedentes para alimentar países inteiros. Mas essa imagem encobre um dado inquietante. Em 2022, 42 milhões de pessoas viveram algum nível de falta regular de acesso a alimentos nos EUA[i] – um número que lembra mais relatórios da FAO sobre países de renda média do que estatísticas de uma superpotência. E embora essa carência não corresponda à fome estrutural dos países pobres, o corpo humano não distingue PIB per capita: um estômago vazio reage do mesmo modo em Detroit ou em Dacar. E não há dor mais devastadora do que a de um pai ou uma mãe que vê seus filhos chorarem de fome sem ter o que colocar no prato – uma dor que nenhuma estatística consegue traduzir.

Nos Estados Unidos, a fome assume a forma tecnicamente nomeada como “insegurança alimentar”. Entre os 12,8% dos lares afetados, milhões de adultos pularam refeições, reduziram porções ou passaram um dia inteiro sem comer. O peso da desigualdade racial é evidente: essa falta de alimentos atinge 22% das famílias negras e 20% das latinas[ii]. São números que, isoladamente, se aproximam dos piores indicadores urbanos da América Latina. É uma fome diferente daquela que devasta o Sahel ou o Iêmen, mas ainda assim é fome – concreta, fisiológica, cotidiana.

Esse contraste se aprofunda quando observamos regiões onde a fome não é episódica, mas estrutural. Globalmente, segundo o UNICEF, 148 milhões de crianças menores de cinco anos sofreram desnutrição crônica em 2022[iii]. No Níger, 44% das crianças enfrentam atraso de crescimento[iv], reflexo de pobreza persistente e choques climáticos intensificados. No Iêmen, 17 milhões de pessoas enfrentam fome aguda[v], e no Haiti, 4,3 milhões não têm acesso regular a alimentos[vi]. Nessas localidades, a fome é intergeracional, atravessada por guerras, colapsos ambientais e ausência de Estado. A diferença entre a fome americana e a dos países pobres não está no corpo: está na estrutura histórica que cerca esse corpo.

A comparação ilumina também o caso brasileiro. Por aqui, a fome havia recuado significativamente até 2014, mas retornou após a recessão de 2015–2016, o desmonte das políticas de segurança alimentar e a alta do preço dos alimentos. E, assim como nos Estados Unidos, o marcador racial organiza boa parte dessa desigualdade: estudos mostram que a fome no Brasil atinge de forma desproporcional mulheres negras, famílias chefiadas por mães solo, trabalhadores informais e moradores das periferias urbanas. Essa combinação – econômica, social e racial – levou o país de volta ao Mapa da Fome da ONU entre 2021 e 2022.

Sobre essa fome generalizada recai ainda um desastre de outra natureza: a crise dos Yanomami em 2023. Ali, a fome não decorreu da transição para alimentos industrializados, mas da destruição direta da base produtiva tradicional – caça, pesca e roças – causada pelo avanço do garimpo, pela contaminação dos rios com mercúrio e pelo abandono sanitário. Segundo o Ministério da Saúde, mais de 500 crianças Yanomami morreram entre 2019 e 2022 por desnutrição e doenças evitáveis[vii]. Trata-se de um povo de floresta cuja segurança alimentar dependia do equilíbrio ecológico do território; quando esse equilíbrio é destruído, instala-se uma fome típica de colapso ambiental.

Já entre povos indígenas mais aculturados – como Xavante, Terena, Guarani e Pataxó – observa-se o fenômeno oposto: a substituição da dieta tradicional por carboidratos refinados e ultraprocessados levou a aumento expressivo de diabetes, obesidade e hipertensão, como documentam estudos epidemiológicos robustos[viii],[ix]. Assim, a violência do contato – ambiental para uns, cultural para outros – produz doenças distintas, mas igualmente reveladoras de como a ruptura de sistemas alimentares tradicionais gera fome e adoecimento em sentidos diferentes.

Dessa forma, enquanto os EUA exibem uma fome que convive com a abundância, e países pobres enfrentam fome estrutural, o Brasil convive com formas híbridas: fome conjuntural urbana; fome estrutural nas periferias; e fome induzida pela violência ambiental e histórica contra povos originários. Em todos esses cenários, a conclusão é semelhante: fome é sempre um produto político. Nos Estados Unidos, ela denuncia a desigualdade extrema de uma economia cujo 1% mais rico detém 31% da riqueza nacional[x] enquanto milhões passam fome. Nos países pobres, revela vulnerabilidades profundas agravadas pela instabilidade climática. No Brasil, expõe tanto a fragilidade de políticas públicas desmontadas quanto a persistência de hierarquias raciais e do colonialismo interno. Comparar a insegurança alimentar dos EUA com a fome estrutural dos países pobres – e com as múltiplas formas de fome no Brasil – não significa igualá-las, mas compreender o sistema que as produz. A fome americana expõe as rachaduras de um país rico que convive com a própria sombra; a fome dos países pobres revela desigualdades globais sedimentadas; e a fome brasileira – urbana, racializada, indígena, ambiental – mostra o quanto ainda estamos presos ao colonialismo interno que decide quem tem acesso ao básico para viver. Essa realidade múltipla encontra eco na imagem incisiva de Jorge Amado em Jubiabá, quando descreve o estômago vazio como um bicho teimoso que não dá trégua: ‘a fome vinha como um cachorro magro, mordendo as tripas.’ É essa verdade visceral que atravessa continentes e sistemas políticos – lembrando que a fome, em todas as suas formas, não respeita fronteiras, tratados ou ideologias. Porque, no fim, o estômago

Notas


[i] UNITED STATES DEPARTMENT OF AGRICULTURE. Household Food Security in the United States in 2022. Washington, D.C.: USDA, 2023. Disponível em: https://www.ers.usda.gov/publications/pub-details/?pubid=106107. Acesso em: 30 nov. 2025.

[ii] USDA. Key Statistics & Graphics: Food Security by Race and Ethnicity. Washington, D.C., 2023. Disponível em: https://www.ers.usda.gov/topics/food-nutrition-assistance/food-security-in-the-u-s/key-statistics-graphics/. Acesso em: 30 nov. 2025.

[iii] UNITED NATIONS CHILDREN’S FUND. Levels and Trends in Child Malnutrition 2023. New York: UNICEF, 2023. Disponível em: https://data.unicef.org/resources/jme-report-2023/. Acesso em: 30 nov. 2025.

[iv] FOOD AND AGRICULTURE ORGANIZATION OF THE UNITED NATIONS. The State of Food

Security and Nutrition in the World 2023. Rome: FAO, 2023. Disponível em: https://www.fao.org/publications/sofi/2023. Acesso em: 30 nov. 2025.

[v] WORLD FOOD PROGRAMME. Yemen Emergency Overview. Rome: WFP, 2024. Disponível em: https://www.wfp.org/countries/yemen. Acesso em: 30 nov. 2025.

[vi] UNITED NATIONS. Haiti: Humanitarian Needs Overview 2024. New York: UN, 2024. Disponível em: https://www.un.org/humanitarian/. Acesso em: 30 nov. 2025.

[vii] MINISTÉRIO DA SAÚDE (Brasil). Situação Sanitária do Povo Yanomami: Relatório de Ações Emergenciais. Brasília: MS, 2023. Disponível em: https://www.gov.br/saude/. Acesso em: 30 nov. 2025.

[viii] LEITE, M. S. et al. Prevalence of diabetes and associated factors among Xavante Indians, Central Brazil. Revista de Saúde Pública, v. 45, n. 6, p. 1031–1038, 2011.

[ix] HORTA, B. L. et al. Health transition in indigenous populations: the Xavante case. American Journal of Human Biology, v. 25, p. 841–850, 2013.

[x] WORLD INEQUALITY LAB. World Inequality Database: United States – Wealth Distribution 2023. Paris: WID, 2023. Disponível em: https://wid.world/. Acesso em: 30 nov. 2025.

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