Em Florianópolis, luxo e segregação sem pudor
Apócrifa, mas endossada pela prefeitura, campanha pede o fim das esmolas e associa população de rua à tuberculose e violência. História de um retrocesso: como, na “Ilha da Magia”, parte da elite resgata agora o higienismo do século XIX
Publicado 15/01/2025 às 18:03 - Atualizado 15/01/2025 às 18:20
No dia 17 de dezembro do ano passado, bombou nas redes sociais um panfleto que estaria sendo distribuído em Florianópolis sobre a população em situação de rua. Denunciado nas redes inicialmente pelo Padre Júlio Lancellotti e depois por figuras políticas da região, o panfleto vem com o título “NÃO DÊ ESMOLA, DÊ OPORTUNIDADE”. O fôlder é confuso com relação a sua autoria, mas faz referências ao aplicativo “PMSC Cidadão” e ao CentroPOP do município de Florianópolis.
O mote de não dar esmola não é novidade na região. Há um bom tempo, a Prefeitura de Florianópolis instalou placas nas sinaleiras da cidade com os dizeres “Não alimente a miséria. Não dê esmolas”. Além disso, o grupo Floripa Sustentável – composto por conselhos profissionais, associações empresariais e sindicatos patronais – lançou, em abril de 2024, a campanha “ESMOLA NÃO”. No evento de lançamento, realizado no Hotel Majestic – um dos hotéis mais luxuosos da capital -, esteve presente o prefeito de Florianópolis, Topázio Neto1.
O que chama mais atenção no panfleto, porém, é que logo abaixo do título vem a frase “Os casos de tuberculose entre os moradores de rua preocupam pela alta transmissão”. Após, uma série de ações que devem ser tomadas pelos demais cidadãos – aqueles que não são pessoas em situação de rua. “Não ofereça alimentos”, “Evite contato físico: risco de transmissão de doenças”, “Cuidado: podem ser violentos” e “Fotografe o infrator e denuncie às autoridades competentes” são algumas das dicas que o panfleto traz.
Após a grande repercussão que o fato tomou, o prefeito Topázio Neto e a Polícia Militar do Estado de Santa Catarina vieram a público manifestar-se sobre o caso. Em um reel publicado em seu Instagram, o prefeito fala que tomou conhecimento do fôlder e que ele não é oficial. Ainda diz: “Desestimulamos a esmola sim, e vamos continuar. Mas não tratamos os seres humanos como leprosos [sic]”2.
A PMSC, por sua vez, informa que o material não foi produzido pela polícia, mas sim que “Trata-se de uma iniciativa autônoma elaborada pela comunidade local, refletindo suas preocupações quanto em relação segurança da população em relação a pessoas em situação de rua”3. A nota da Polícia Militar deixa claro que a instituição tem conhecimento da origem do panfleto e de quem o elaborou e, ao mesmo tempo, apresenta conivência com o ato (que pode ser considerado criminoso) e, inclusive, o legitima.
A postura das autoridades citadas, infelizmente, não é novidade para a população em situação de rua. Desde o final de 2023, é possível verificar uma ofensiva articulada entre a Prefeitura de Florianópolis, as forças de segurança (Polícia Militar e Guarda Municipal), a mídia empresarial e parte da sociedade civil contra a população em situação de rua.
Em março de 2024, foi aprovada e publicada a Lei Municipal n. 11.134/20244, que dispõe sobre a internação psiquiátrica voluntária e involuntária – chamada de “internação humanizada” pela lei – da população em situação de rua (exclusivamente), com “dependência química” e/ou “transtornos mentais”. Para o prefeito de Florianópolis, a legislação surgiu como solução à suposta periculosidade e criminalidade apresentada por esse grupo.
Como resposta, a Defensoria Pública da União (DPU), por meio da Defensoria Regional de Direitos Humanos (DRDH/SC), e a Defensoria Pública do Estado de Santa Catarina (DPE/SC) junto ao Núcleo de Cidadania, Igualdade, Diversidade, Direitos Humanos e Coletivos (NUCIDH), elaboraram uma recomendação à Prefeitura de Florianópolis que discorre sobre medidas alternativas à internação involuntária, demonstrando que, através da referida legislação, a Prefeitura de Florianópolis não pretendia preservar a saúde física ou mental da população em situação de rua, mas sim realizar a exclusão socioespacial5.
No mesmo mês, a PMSC iniciou a Operação Choque de Ordem, com abordagens generalizadas nas pessoas em situação de rua presentes nas filas para ingresso no Restaurante Popular da Capital. Mais uma evidente tentativa de intimidação e estigmatização do grupo, por parte dos agentes públicos municipais. A DPU/SC e a DPE/SC impetraram um habeas corpus coletivo, em favor das pessoas que sofrem ou podem sofrer esse constrangimento ilegal, cujo pedido foi deferido após recurso ao Tribunal de Justiça, sendo expedido salvo-conduto em favor da população em situação de rua6.
Diante desse contexto, somado à situação da população em situação de rua em outros municípios de Santa Catarina – como Chapecó, Palhoça, São José, Criciúma e Balneário Camboriú –, o Conselho Nacional de Direitos Humanos (CNDH), motivado pelas diferentes denúncias de violências e situações degradantes, chegou ao estado de Santa Catarina em abril de 2024 para realizar a “Missão População em Situação de Rua”. No Relatório da missão do CNDH a Santa Catarina para apurar violações aos direitos humanos da população em situação de rua no Estado, ficou constatado que as pessoas em situação de rua vêm sofrendo um “apagamento” por parte dos poderes públicos, isso devido a adoção de inúmeras estratégias para esconder esse grupo das vistas da população em geral (através das internações psiquiátricas forçadas, por exemplo), bem como a expulsão dessas pessoas do território, por meio de violência, ameaça ou oferecimento de passagens de ônibus para voltarem ao seu “local de origem”.
Esse tratamento dado à população em situação de rua de Florianópolis pode ser visto como uma forma de higienismo social. Surgida paralelamente aos anseios da classe dominante em modernizar o país, essa ideologia entendia a desorganização social enquanto causa do surgimento e da multiplicação das doenças. Por isso, caberia à medicina e ao sanitarismo “neutralizar todo perigo possível”. Para as elites, a higiene pública passou a representar elemento definidor do grau de civilização de um povo.
Sidney Chalhoub7 aponta que, amparados pelo racismo científico, os intelectuais-higienistas designaram as classes pobres e, principalmente, a população negra, enquanto objetos do higienismo. Conforme a ideologia, a pobreza era associada ao vício e, esse último, à violência, de modo que as classes pobres seriam sempre perigosas. Nesse sentido, como a população em situação de rua reúne grande parte desses corpos excluídos, também passou a ser lida como alvo dessa política.
Essa forma de higienismo social empreendida por diversas instituições do Estado e por parte da sociedade civil não é novidade na Ilha de Santa Catarina. Desde o início do processo mais intenso de urbanização da capital, verificamos uma série de atitudes higienistas que foram construindo um projeto de cidade que se alonga até os dias de hoje.
Em Florianópolis (à época, Desterro), como aponta Maria Inês Sugai8, inicia, ainda no século XIX, um processo de segregação socioespacial mais acentuado a partir da separação entre os locais de comércio e também as áreas de moradia dos ricos e pobres, o que coincide com a expansão do trabalho livre. Geograficamente, na cidade, os mais pobres passam a habitar os cortiços localizados nas encostas do Morro da Cruz, bem como nas áreas mais próximas dos portos e das áreas industriais.
Essa periferização faz parte do processo de higienismo, relacionado à segregação espacial e aos problemas de saúde pública que a gestão era incapaz de lidar. Como aponta Fernando Calheiros9, é a partir das reformas urbanas e sociais entre o final do século XIX e início do XX que serão empreendidas intervenções com o objetivos de “higienizar” e “modernizar” a cidade.
Dentre esses processos de higienismo, temos o caso da rede de esgoto articulada no Rio da Fonte Grande (também chamado de Rio da Bulha), uma das principais ações sanitaristas da capital, que deu origem à abertura da Avenida Hercílio Luz, localizada em uma região importante da área central do município. A referida obra não pretendia solucionar os problemas sociais daquela localidade. Ao contrário, “expulsaram os moradores e demoliram todos os cortiços e casebres que há mais de um século vinham se instalando às margens do rio”10, assim como ruelas e becos, o que impeliu as camadas populares a irem para as encostas do Morro da Cruz. Assim, não foi promovido somente o saneamento e remodelação da área, mas também ações de segregação que abriram novas frentes para o capital imobiliário.
O projeto de cidade que se construía no início do século passado alonga-se durante a história e chega ao presente. A partir de 1980, inicia-se um projeto de marketing de Florianópolis empreendido pelos poderes locais e grupos empresariais, com o objetivo de disseminar a cidade enquanto uma referência de padrão de vida e conectada aos padrões de modernização tecnológica11. Cunha-se o apelido “Floripa” e o título de “Ilha da Magia”, a meca da classe média e média alta.
Esse marketing das cidades, segundo Fernanda Sánchez12, emerge na ideia de valorização da dimensão local no contexto da globalização. Tem, como uma de suas estratégias, a construção de um consenso social em torno dos modelos de administração urbana, baseadas em parcerias entre o poder público e privado e que adotam práticas orientadas ao mercado.
A questão da população em situação de rua de Florianópolis, que aparece com evidência no ano de 2024, relaciona-se com o marketing das cidades na medida em que se busca criar e propagandear um cidade limpa e sem “baderna” – como diz o prefeito Topázio Neto -, bem como estabelecer consensos sociais sobre a questão. A solução que se apresenta é o higienismo social, construindo uma série de políticas que buscam “limpar” as ruas da cidade.
O panfleto divulgado nas redes sociais é apenas mais um capítulo desse processo, mas que assume centralidade diante do seu teor. Tomar “cuidado” com os tuberculosos relembra o higienismo clássico do século XIX e do começo do século XX, com seus objetivos sanitaristas. Fotografar os “infratores violentos” caracteriza a população em situação de rua como violenta, construindo estigma da classe perigosa. É a cidade da “inovação” com a cabeça no século XIX.
Se Topázio fala que não podemos tratar os seres humanos como “leprosos” – designação preconceituosa contra portadores de hanseníase -, aqui afirmamos que precisamos tratar os seres humanos como seres humanos, rompendo com o higienismo e buscando construir uma cidade que seja justa para todos que a habitam e que virão a habitar. É preciso superar os preconceitos e construir políticas públicas dignas para a população em situação de rua.
Notas:
1 https://floripasustentavel.com.br/floripa-sustentavel-lanca-campanha-esmola-nao-e-tem-grande-receptividade-no-panfletaco-realizado-nas-sinaleiras/.
2 https://www.instagram.com/p/DDsZr36RclP/.
3 https://www.nsctotal.com.br/noticias/evite-contato-panfleto-sobre-pessoas-em-situacao-de-rua-em-florianopolis-viraliza-nas-redes.
4 https://www.cmf.sc.gov.br/assinatura/assinado/2024/03/2403041107570DB170.pdf.
5 https://direitoshumanos.dpu.def.br/dpu-e-dpsc-recomendam-suspensao-de-projeto-que-preve-internacao-involuntaria-em-sc/.
6 https://www.dpu.def.br/noticia/30/justica-restringe-abordagens-policiais-excessivas-contra-populacao-em-situacao-de-rua-em-florianopolis-sc.
7 CHALHOUB, Sidney. Cidade febril: cortiços e epidemias na Corte Imperial. São Paulo: Companhia das Letras, 1996.
8 SUGAI, Maria Inês. Segregação silenciosa: investimentos públicos e dinâmica socioespacial na área conurbada de Florianópolis. Florianópolis: Editora da UFSC, 2015.
9 CALHEIROS, Fernando. Ocupações urbanas e os efeitos socioespaciais da disputa pela terra em Florianópolis: o caso das Ocupações Marielle Franco e Fabiano de Cristo. 2020. Dissertação (Mestrado em Geografia) – Programa de Pós-Graduação em Geografia da Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis, 2020.
10 SUGAI, Maria Inês. Segregação silenciosa: investimentos públicos e dinâmica socioespacial na área conurbada de Florianópolis. Florianópolis: Editora da UFSC, 2015. P. 62.
11 SUGAI, Maria Inês. Segregação silenciosa: investimentos públicos e dinâmica socioespacial na área conurbada de Florianópolis. Florianópolis: Editora da UFSC, 2015.
12 SÁNCHEZ, Fernanda. Políticas urbanas em renovação: uma leitura crítica dos modelos emergentes. Revista Brasileira de Estudos Urbanos e Regionais, [S. l.], n. 1, p. 115-132, 1999. Disponível em: https://rbeur.anpur.org.br/rbeur/article/view/13. Acesso em: 7 ago. 2024.