Quando Milei piscou

Deputados vetam reajuste miserável nas aposentadorias congeladas. São recebidos com churrasco e vinho na casa presidencial. Aos idosos, cassetete, gás e tiros de borracha. Mas a vida precarizada doi mais. Pela primeira vez, popularidade do homem-motosserra degringola

Foto publicada pelo jornal Hora do Povo
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Por Emiliano Gullo, no CTXT | Tradução: Rôney Rodrigues

A Celebração, de Thomas Vinterberg, conta esta história: um pai milionário convoca a família para comemorar seu aniversário de 60 anos em uma mansão no interior da Dinamarca. O convite é generoso, daquele tipo que inclui o namorado da prima do filho. Jantar do chef, cozinha industrial, auxiliar, garçonetes atenciosas, bandejas de champanhe, pratos requintados. A certa altura ouve-se o trinado de um copo: tilín, tilín. O filho mais velho quer dizer algo importante. Olhares são trocados com o pai. A tensão indica que uma bomba vai explodir. E explode.

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Nestes dias, o presidente Milei deu um grande churrasco para celebrar o último triunfo legislativo da sua gestão. A reunião foi para entreter os 87 deputados que ratificaram o veto à lei que propunha um singelo aumento nas aposentadorias. “Vocês são heróis”, disse-lhes o presidente. Sequer um singelo veio, de 13.000 pesos. Algo em torno de dez euros. Algumas cervejas e algumas batatas rústicas. Para evitar o cardápio previdenciário, o governo ordenou uma repressão conjunta a todas as forças federais e derrubou idosos na praça durante a votação. No meio da operação, os policiais federais atiraram com gás no rosto de uma menina de dez anos.

Milei oferece churrasco a deputados que vetaram aumento das aposentadorias. Foto: Presidência da República da Argentina

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O filho do patriarca dinamarquês conta a todos que seu pai estuprou ele e sua irmã durante anos e é por isso que ela cometeu suicídio. Antes de se sentar novamente, ele diz: “Obrigado por estes anos maravilhosos. Feliz aniversário!”. Parece um show de baixo orçamento. Os convidados ficam incomodados, mas não acreditam nele. Um pouco de ansiedade e o jantar continua. O pai diz que não sabe do que está falando. O choque passa.

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O pai libertário não se intimidou com o choro do bebê e saiu para festejar. Disse que a sua alegria se devia ao fato de, felizmente, o equilíbrio fiscal não ser quebrado pelos cabelos brancos e pelas batatas rústicas. Felizmente não. Graças aos heróis. Para eles organizou um jantar na residência dos Olivos. Os deputados – sim – tiveram que pagar couvert, 20 mil pesos. Porque o reajuste – como já dito – será pago pela casta. O jantar foi pouco transcendental. Alguns deputados levaram saladas deliciosas. Não se sabe para quem o dinheiro foi transferido. Não podiam entrar com celular, mas alguns trouxeram dois, deixaram um e entraram com outro. O vinho veio de uma vinícola boutique de Mendoza.

Tudo é muito delicioso, senhor presidente.

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Tilin tilin. O filho do patriarca dinamarquês toma novamente a palavra. Desta vez é direto. Ele dedica o brinde ao pai assassino. Ele diz isso mesmo, “assassino”. A ansiedade apodrece a atmosfera. Os convidados ficam desesperados para escapar. Fogem daquela casa pervertida. Apenas a família mais próxima fica. A mãe sai em defesa do marido. Ele diz que seu filho nunca soube diferenciar a fantasia da realidade; um menino especial, com atributos de escritor, com grande capacidade de inventar histórias. Tilin tilin tilin, o filho novamente. Ele conclui: diz que sua mãe foi cúmplice do pai estuprador.

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Enquanto o governo terminava de confeccionar os convites para o jantar dos heróis, o canal governista La Nación (LN+) recebeu um vídeo esclarecedor. Exclusivo. O momento em que se vê algo como uma manifestante jogando um pó estranho na garota. Agora sim. Era uma mentira então. O policial não foi responsável. O sonho molhado da ministra da Segurança durou pouco. Antes que as imagens circulassem por outros canais, os mesmos jornalistas que apresentaram o vídeo como prova para livrar a culpa da polícia tiveram que admitir que se tratava de uma operação. De uma invenção. Eles faziam parte de uma manobra da ministro. “Eles não vão me usar para isso. Nem a mim nem a este canal”, disse Eduardo Feinman, figura televisiva hiper oficialista e de direita. O vídeo da mulher era falso. As fotos e vídeos que mostravam a sequência completa do policial despejando o gás no rosto da menina viralizaram ao mesmo tempo em que o governo iniciou a opereta.

Antes já havia começado a circular imagens de trabalhadores andando paralelamente aos trilhos do trem para evitar controles e não pagar a passagem. Nos vídeos é possível ver como as pessoas andam na fila. Parecem calmos. Numa ação mais parecida com uma caminhada do que com um protesto ou uma fuga. Muito diferente das imagens de dias atrás, quando um grupo de pessoas se irritou com a polícia que queria prender um homem por pular catraca no terminal Constitución. Desde que Milei assumiu o cargo, o preço dos trens aumentou quase 400% e o serviço de ônibus aumentou 600%.

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A família dinamarquesa explode sua fúria contra o filho. Ninguém acredita nele. Pelo contrário. Ele é um provocador delirante. É expulso pela força. Seu irmão e outros familiares o levam para a floresta e o deixam amarrado a uma árvore. Com a noite se aproximando, ele consegue se desamarrar. Na casa, a festa continua sem peso na consciência.

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Na Argentina a temperatura aumentou e não é por causa da chegada da primavera. As últimas pesquisas mostraram o início do degelo libertário. O estudo realizado pela empresa de consultoria local Zuban Córdoba, em setembro, expôs o declínio da credibilidade do governo. Entre outros itens, 70,6% acreditam que é mentira que “o poder de compra dos aposentados disparou” e uma percentagem ainda maior (76,2%) acredita que é mentira que “as taxas de água, eletricidade e gás estejam quase de graça”. O mesmo estudo mostra que 2 em cada 3 jovens acreditam que a situação econômica não melhorou. 71,3% das pessoas entre 18 e 30 anos dizem que torram suas economias para sobreviver.

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Espancado, mas inteiro, o filho mais velho retorna da floresta. O que ele tem a dizer não importa mais para ninguém da família que continua a festejar e a comilança. Nesse momento, aparece uma carta. É da irmã morta. Eles dão para a outra irmã ler. Ele faz isso na frente de todos. A carta conta sobre os abusos que ela sofreu nas mãos de seu pai. A mesma história, mas na voz da vítima morta, instala definitivamente o estupor.

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Pela primeira vez desde que tomou posse como presidente, as linhas que marcam a opinião entre aqueles que consideram a gestão muito boa (44,2%) ou muito má (54,2) distanciaram-se em dez pontos. Ao longo do ano mantiveram-se em paridade mas depois da celebração acabaram por abrir. Isso foi demonstrado pelo trabalho da consultoria Tres Punto Zero.

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Na manhã seguinte à festa, a família dinamarquesa toma o café da manhã normalmente. O pai chega com a esposa. Seus filhos pedem educadamente que ele encontre outro lugar na casa.

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