A favela está no “mapa” oficial do Estado. E agora?

Dicionário Marielle Franco mostra como, após muita luta, movimentos sociais conseguiram no Censo o termo “favela” – como espaço de cultura e resistência, e não “problema”. Mas falta muito mais, como políticas públicas reais de bem-estar nas periferias

Foto: Mapa Cultural do governo do Ceará
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Em setembro de 2023, foi realizado, em Brasília, o Encontro Nacional de Produção, Análise e Disseminação de Informações sobre as Favelas e Comunidades Urbanas no Brasil, pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). O encontro reuniu pesquisadores(as), lideranças de favelas, organizações sociais e diversas referências na área. Um ano após a conferência, no final de 2024, foi anunciado pelo IBGE o retorno do uso dos termos “​​​​favelas e comunidades urbanas brasileiras” para divulgação do Censo 2022 – inclusive, tema já discutido por nós. Este momento foi considerado um marco para as favelas e os(as) favelados(as) de todo o país. Afinal, por mais de 50 anos, esses territórios e suas populações foram significados por diversas nomenclaturas que estigmatizavam e criminalizavam tal espaço de moradia, sendo uma delas a expressão “aglomerados subnormais”, adotada pelo Instituto desde 1991, além de tantas outras responsáveis por reproduzir ao longo das décadas o seu estigma, colocando a favela no imaginário de um problema social.

Termos, nomenclaturas e conceitos não são apenas formas de descrever algo a ser apresentado em um documento estático no tempo. Ao descrevermos algo para o mundo, contribuímos também para a sua própria constituição e, com isso, a constituição de certa visão de mundo sobre aquilo assim descrito. A palavra e o ato de nomear produzem a própria realidade sobre aquilo que está sendo nomeado – seja uma coisa, uma pessoa ou um território. No caso da definição de termos, nomenclaturas e conceitos oficiais, pretende-se constituir um consenso sobre o seu significado, carregando, assim, uma certa representação do que se espera que esteja de acordo com a norma então estabelecida.

Ao descrever as favelas e periferias urbanas como “aglomerados subnormais”, por décadas, constituiu-se esses territórios pela sua precariedade, por um lado, e pelo seu desvio, por outro, como algo “subnormal”, irregular, informal e, potencialmente (no que vem a ser a sua forma de ocupação) ilegal. Ao mesmo tempo, seus moradores(as) passaram a ser também constituídos pelo mesmo prisma da definição de seu território, demarcando estereótipos e estigmas criminalizantes contra os corpos favelados. Nessa perspectiva, durante décadas, o olhar das políticas públicas e as representações sociais sobre as favelas e os(as) favelados(as) marcaram seus corpos e territórios pela gramática da violência, em contraposição à expansão dos direitos de cidadania. Neste artigo, pretendemos ressignificar essa gramática a partir dos(as) próprios(as) favelados(as) e pelo reconhecimento de suas lutas – materiais e simbólicas – por novas definições e novas epistemologias.

O termo “favela” retorna aos dados oficiais

Com a divulgação do Censo de 2022, em novembro de 2024, o IBGE realizou um evento, na Nova Maré, no Rio de Janeiro (RJ), denominado “Censo Demográfico 2022: Favelas e Comunidades Urbanas: Resultados do Universo”. Lideranças, moradores(as) de favelas e representantes da sociedade civil estiveram presentes – inclusive, pesquisadores(as) do Dicionário de Favelas Marielle Franco. O novo Censo traz informações sobre o número de favelas e comunidades urbanas, a população residente nestas áreas, além do número de domicílios. Os dados foram, então, disponibilizados para os recortes geográficos Brasil, Grande Região, Unidade da Federação, Concentração Urbana, Município e Favela e Comunidade Urbana, abrindo-se um debate sobre suas formas de representação e apropriação pelas próprias favelas e periferias urbanas. No evento, nossa pesquisadora Flávia Cândido, também representante do Plano Integrado de Saúde Integral nas Favelas do Rio de Janeiro, ressaltou como os dados entregues pelo IBGE “dão notoriedade às pessoas que vivem na favela e chamam atenção das autoridades para a criação de políticas que tornem a vida da população melhor”.

Não por acaso os movimentos de favelas, historicamente, lutam para que não sejam reafirmados e reproduzidos termos que estigmatizem e criminalizem as favelas e os(as) favelados(as). Tais conceitos, vindos de um Instituto Brasileiro tão referenciado, ajudaram a estereotipar esses territórios que nasceram há mais de 120 anos no Rio de Janeiro e que, hoje, estão espalhados por todo o país. Essa história pode ser também acompanhada a partir do verbete “De Aglomerados Subnormais para Favelas e Comunidades Urbanas​​”. No conceito que significou as favelas por tantos anos como um problema, dizia-se que: “Aglomerados subnormais são formas de ocupação irregular de terrenos de propriedade alheia (públicos ou privados) para fins de habitação em áreas urbanas e, em geral, caracterizados por um padrão urbanístico irregular, carência de serviços públicos essenciais e a localização em áreas que apresentam restrições à ocupação” (IBGE, 2010).

O retorno do termo “favela” no Censo é, portanto, fruto de um processo político que envolveu movimentos sociais e lideranças comunitárias, focados na luta pelo reconhecimento e pela visibilidade dessas localidades. Nos últimos anos, lideranças comunitárias e moradores(as) têm trabalhado ativamente para ressignificar o espaço da favela como um símbolo de resistência, potência e cultura, buscando romper com os estigmas históricos. Essa mudança reflete um movimento mais amplo de valorização da favela como um território de direitos, e não apenas como espaço de carências e exclusões.

Se pararmos para analisar matérias de jornais comerciais e popularescos, assim como pesquisas e falas públicas de autoridades governamentais, muitas dessas falas, ao se referirem às favelas, as colocam em um lugar apenas de carência, desordem, precariedade, desigualdades, ilegalidade e tantos outras nomeações que inferiorizam o espaço e o seu povo. Por força desse discurso, toda uma sociedade passou as últimas décadas reproduzindo essas afirmações e não foi diferente, inclusive, dentro das próprias favelas. Os(as) próprios(as) favelados(as) também têm preconceito das favelas justamente em razão dessa reprodução – parte do que os processos de rotulação produzem ao reificar preconceitos, estereótipos e violências em determinados corpos e/ou territórios. Por isso é tão importante o reconhecimento de movimentos favelados que fazem, historicamente, um trabalho dentro das favelas mostrando que elas têm problemas sociais e desigualdade, mas que esta não é uma culpa dos moradores(as), e sim dos que governam.

Hoje, com a retomada do termo “favela”, esperamos que esta não seja apenas uma nomenclatura a ser utilizada por gestores e acadêmicos, mas sim que este seja o início de um movimento maior capaz de incidir e reorientar a auto estima de quem mora nesses territórios vulnerabilizados, marginalizados e, por esta razão, criminalizados – como representação de uma reivindicação identitária não individualizada, mas de lutas sociais, políticas e ideológicas. O conceito atual não ignora os problemas sociais internos, mas identifica este território a partir de um outro tom, potencializando o seu povo e sua história comunitária e coletiva. Segue aqui sua definição: “Favelas e comunidades urbanas são territórios populares originados das diversas estratégias utilizadas pela população para atender, geralmente de forma autônoma e coletiva, às suas necessidades de moradia, diante da insuficiência e inadequação das políticas públicas e investimentos privados dirigidos à garantia do direito à cidade. Constituem identidade e representação comunitária e se manifestam em diferentes formas e nomenclaturas. Retratam a precariedade de infraestrutura, serviços urbanos, equipamentos coletivos e proteção ambiental, reproduzindo condições de vulnerabilidade que se agravam com a insegurança jurídica da posse, que também compromete o direito à moradia e a proteção legal contra despejos forçados e remoções” (IBGE, 2024).

Como aponta Flávia Cândido, moradora da Maré e pesquisadora do Dicionário de Favelas Marielle Franco, no verbete “O termo “favela” de volta ao IBGE​​”, ao recuperar o nome que as próprias comunidades utilizam para se referir a seus territórios, o IBGE atende a uma demanda histórica dos movimentos sociais e populares, que há décadas lutam para que essas áreas sejam reconhecidas por aquilo que realmente são: territórios de resistência, cultura e luta. Ao adotar o termo “favela”, abre-se um caminho para uma narrativa mais autêntica, que valoriza as histórias e experiências de seus moradores, em vez de relegá-los ao status de “excepcionalidade” e “anormalidade”.

Além disso, a ressignificação do termo está intrinsecamente ligada ao processo de letramento dessas comunidades. O letramento, nesse contexto, refere-se ao empoderamento de seus moradores, que, ao reivindicar o uso de “favela” para definir seu espaço, reescrevem as narrativas dominantes e reafirmam sua própria voz e identidade. Esse ato de autodefinição é um exemplo poderoso de como a linguagem pode ser utilizada como uma ferramenta de resistência e afirmação, desafiando estigmas históricos e propondo novas formas de pensar esses espaços e seus moradores(as).

A mudança na nomenclatura mostra a importância da luta dos movimentos de favelas, em um trabalho árduo de anos de denúncia e de incidência política para que houvesse a alteração da forma de classificar os territórios – e seus moradores(as). Além disso, marca a importância desse público estar presente na forma como ele realmente é, sem que haja o peso da marginalização e do estereótipo que esses territórios historicamente carregam. Ou seja, foi uma importante vitória para os movimentos de favelas e o Dicionário de Favelas Marielle Franco esteve presente durante os meses de reuniões, inclusive, sendo representado pela nossa coordenadora Sonia Fleury no Grupo Consultivo de todo o processo que culminou com o encontro realizado em Brasília, em 2023. A atuação do Dicionário de Favelas pode ser considerada, hoje, uma referência no que se refere às reescrituras do que é “ser favelado”. Acreditamos no poder transformador das palavras – suas linguagens, narrativas e saberes localizados – e na importância de dar voz às histórias silenciadas e esquecidas através de corpos negros favelados e periféricos.

Geração de dados e novos conceitos a partir das favelas

Nos últimos anos, foram inúmeras também as organizações, coletivos e movimentos de favelas que passaram a coletar, analisar e trabalhar com a geração de dados e a produção de conhecimentos. Inclusive, já tivemos a oportunidade de tratá-las em outro artigo aqui publicado – desta vez, pretendemos dar destaque àquelas iniciativas produtoras de dados visando a ressignificação de seus territórios e identidades. O objetivo destes grupos é, muitas vezes, confrontar os dados anteriormente coletados, divulgados e narrados, até então, pelo próprio Estado, como os próprios dados do IBGE. Em termos de coleta e disseminação, temos alguns exemplos. O projeto “Geração cidadã de dados: cartografia dos coletivos de comunicação comunitária para promoção da saúde”, realizado em 2024 por pesquisadores(as) da Fiocruz em parceria com comunicadores(as) comunitários(as) da Frente de Mobilização da Maré, do Instituto Raízes em Movimento, do jornal Fala Manguinhos, do Instituto Decodifica e do Dicionário de Favelas Marielle Franco, teve como objetivo mapear as ações comunicacionais de coletivos populares e avaliar o possível impacto destas iniciativas na promoção da saúde. Os resultados já podem ser acessados na plataforma do Dicionário de Favelas Marielle Franco.

Um dos coletivos que vem também ganhando espaço na construção dessas contranarrativas é o Data_labe, laboratório de narrativas e dados localizado no Conjunto de Favelas da Maré, na Zona Norte do Rio de Janeiro. O coletivo foi criado com o objetivo de promover a democratização do conhecimento por meio da geração, análise e divulgação de dados com foco em raça, gênero e território. Além disso, iniciativas como o Atlas das Periferias, desenvolvido pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA) e publicado em 2021, analisam aspectos raciais e de infraestrutura nas favelas e periferias urbanas, oferecendo uma visão aprofundada das desigualdades urbanas.

Outro exemplo de produção coletiva de dados é a Cartografia Decolonial das Juventudes Negras e Periféricas da Baixada Fluminense, publicada em 2019, pelo Fórum Grita Baixada, movimento que tem como missão a garantia da vida de moradores(as) da Baixada Fluminense do Rio de Janeiro, a partir do fomento e incidência por uma política pública de segurança pública pautada nos direitos humanos e de enfrentamento ao racismo. A Cartografia Decolonial pode ser entendida como a vertente cartográfica que tem como característica marcante a referência sociocultural como ponto de partida e, logo o poder dos sujeitos envolvidos é central nessa construção. Tem como pressupostos, devido aos estudos decoloniais, o rompimento das amarras e epistemologias ocidentais da cartografia tradicional hegemônica, pareando com o discurso da Cartografia Social. Nesse sentido, tem como objetivo também reivindicar sua própria epistemologia, tendo como prioridade a significação cartográfica de quem vive nos territórios oprimidos, fornecendo subsídios que, por exemplo, darão visibilidade/representatividade e “voz” a povos e comunidades tradicionais. O que o movimento busca é apresentar uma metodologia de construção de uma “nova” epistemologia periférica, onde a cartografia é utilizada como um método participativo de construção de novas narrativas e símbolos.

No Morro da Providência, no Centro do Rio de Janeiro, favela conhecida por ser a primeira favela do país, assim como na Maré, no Alemão e em tantas outras favelas do Rio e para além, têm-se produzido os Censos Populares através de um trabalho coletivo e comunitário de auto mapeamento e georreferenciamento. Este é um movimento que não começou hoje e, com certeza, esse enfrentamento dos dados e das formas de quantificação e representação foi capaz de influenciar a mudança de nomenclatura sobre a significação das favelas a nível governamental. Por exemplo, no relatório que apresenta atividades e resultados da iniciativa intitulada “Censo Popular, Auto Mapeamento e Cartografia Social do Morro da Providência – SOS Providência & Projeto Morador Monitor” é possível observar o rigor metodológico para a realização da pesquisa, considerando o papel fundamental dos moradores(as) em seu desenvolvimento. Esta foi uma iniciativa realizada pelo Comitê SOS Providência, através do projeto Morador Monitor, com assessoria técnica do Núcleo de Estudos em Geografia, Relações Raciais e Movimentos Sociais, do Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano e Regional da Universidade Federal do Rio de Janeiro (IPPUR-UFRJ) e aportes financeiros da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) e da Ação da Cidadania.

O Censo Popular da Providência promoveu, junto à coleta de dados, uma troca de experiências que ultrapassa o seu interrogatório impessoal característico, se configurando numa relação de reconhecimento mútuo entre as partes. Além do levantamento, o SOS Providência realiza diversas outras ações de suporte social aos mais desfavorecidos do território, como a distribuição de alimentos, gás de cozinha, itens de higiene e outros – ações fundamentais no quadro de crise social e sanitária da COVID-19, e que permanecem importantes no cenário atual. Estas ações, com certeza, serão qualificadas pelo diagnóstico que ora se apresenta. Coerente com a máxima praticada no Morro, do “nós por nós”, o recenseamento configura-se em um importante instrumento de aferição, expressando em números os problemas socioespaciais identificados, mas também contribuindo para a formulação de estratégias futuras, apontando para a construção de uma epistemologia que considere o olhar do morador do território e uma definição de agenda onde estejam contempladas as suas disputas pela dignidade e fortalecimento de seu papel como agente definidor das suas reais demandas, e, para considerações na construção e definição de políticas públicas.

A favela da Maré, na Zona Norte do Rio de Janeiro, já no início dos anos 2000, iniciou a produção do seu próprio Censo, sendo conhecido, hoje, como Censo Maré e, assim, vem servindo como referência para outras iniciativas em diferentes territórios – como a própria iniciativa na Providência, descrita acima. O primeiro Censo Maré foi uma iniciativa do Centro de Estudos e Ações Solidárias da Maré (Ceasm), localizado no Morro do Timbau. Depois, passou a ser realizado pela Redes da Maré. As três edições do Censo tiveram o apoio das 16 associações de moradores(as) locais e outras organizações sociais importantes de outros espaços da cidade do Rio de Janeiro. O Censo Maré é um marco. Na terceira edição, a realização do Censo Maré contou com a capacitação de moradores(as) da Maré para o trabalho, que envolveu mais de 200 pessoas, contando com a parceria das 16 associações de moradores(as) da região. A equipe multidisciplinar foi composta por geógrafos, economistas, estatístico, cientista social, assistente social, técnico em geoprocessamento e técnico em cartografia. O objetivo desta produção de dados é transformar as condições de vida na Maré e materializar projetos que contribuam com seu propósito maior. Para tanto, a Redes da Maré definiu como prioridade atuar a partir dos seguintes eixos de trabalho: (i) Educação, (ii) Arte e Cultura, (iii) Memórias e Identidades, (iv) Desenvolvimento Territorial e (v) Segurança Pública e Acesso à Justiça.

A Maré é uma favela que também por décadas vem trabalhando conceitos para tirar do imaginário de seu povo a ideia de que favela é um território “problema” – ou um território potencialmente problemático. Por exemplo, o Jornal O Cidadão, mídia comunitária surgida nos anos de 1999, fruto da parceria do Centro de Estudos e Ações Solidárias da Maré com o Laboratório de Estudos em Comunicação Comunitária (Lecc), da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), durante os anos 2000, iniciou um conceito na Maré para trabalhar a auto estima da favela, confrontando a ideia de que a favela é um “problema”. O termo “mareense” vem sendo trabalhado há mais de 20 anos pelas diversas equipes que passaram por esse jornal comunitário. Inicialmente, muitos(as) pesquisadores(as) questionaram a relevância dessa invenção de uma identidade. Mas houve um enfrentamento às críticas e os(as) comunicadores(as) passaram a reproduzir o termo e a debater essa identidade em todas as matérias, debates públicos, além de discussões nas assembleias populares de pauta do próprio jornal. Hoje, é perceptível que os moradores da Maré utilizam com orgulho essa nomenclatura, nos mais variados movimentos sociais da favela, referenciando sempre os nomes Maré e Mareense.

De forma mais abrangente, um debate atual que tem se popularizado entre alguns movimentos e grupos de favelas é o conceito de Geração Cidadã de Dados (GCD). Este termo está relacionado à participação da sociedade civil na retratação, análise e avaliação de assuntos de interesse geral, partindo do princípio da utilização dos dados para identificar problemas ou potencialidades sociais. No manifesto da Rede Geração Cidadã de Dados (Rede GCD), espaço de mobilização constituído por diferentes organizações de favela, entende-se por indispensável a participação e colaboração da sociedade civil por completo nesse processo, desde a coleta até a distribuição dos dados. Apesar da diversidade entre as organizações e na maneira de implementação da GCD, o manifesto apresenta alguns pressupostos desejáveis, como: a) o protagonismo de periferias e populações sub-representadas no debate público e científico; b) ênfase nos marcadores de classe, raça e gênero; c) promoção e uso de softwares livres, ferramentas e tecnologias acessíveis, e construção de bases de dados abertas e de fácil leitura; d) divulgação ampla e segura das metodologias e resultados; e) linguagens e narrativas acessíveis; f) intercâmbio de metodologias;

Ou seja, a geração de dados das/nas favelas também tem ganhado outros debates e ajudado a pautar, inclusive, as lutas nos espaços do poder público. Exemplo disso é a ADPF 635, a ADPF das Favelas, que pauta a garantia de direitos de moradores(as) e a ampliação do controle social, político e jurídico sobre as forças de segurança do Estado, denunciando a alta letalidade de suas polícias. Inúmeros movimentos de favelas que debatem segurança pública no Rio de Janeiro têm analisado dados divulgados pelo próprio governo e enfrentado o debate sobre os efeitos das ditas operações policiais no cotidiano e na segurança dos próprios moradores(as) das favelas. Com isso, apontam para os gastos onerosos de orçamento público, o número de escolas e postos de saúde fechados durante as operações policiais realizadas dentro das favelas e a quantidade de civis mortos durante tais operações. Ou seja, para rebater os discursos que alimentam as políticas de guerra (e de morte), movimentos de favelas têm produzido uma série de outros dados capazes de denunciar as violações das políticas de segurança pública, em especial, no Rio de Janeiro. Se a favela é cidade, ela não deve ser tratada a partir de uma política de segurança repressiva e violenta, mas sim por um conjunto de políticas sociais que garantam (e expandam) os direitos humanos a toda sua população.

O processo de participação dos movimentos populares na ADPF 635 possibilitou, por exemplo, a criação do Fórum Popular de Segurança Pública do Rio de Janeiro (FPOPSEG), espaço de mobilização que articula movimentos sociais de favelas, familiares de vítimas de violência de Estado, organizações da sociedade civil, universidades, ativistas, entre outros sujeitos coletivos, como IDMJRacial, IDPN, Rede de Comunidades e Movimento contra a Violência, Raízes em Movimento, Frente Estadual pelo Desencarceramento RJ, Iser, Fase RJ, Justiça Global, Observatório de Favelas, Najup, Mídia 1508, Geni/UFF, PPCis/UERJ, Iri/PUC, Educafro, Fórum Social de Manguinhos, Casa Fluminense, Redes da Maré, Blogueiras Negras, Criola, Fala Akari, Movimentos, Fogo Cruzado, Movimenta Caxias, Coletivo Papo Reto, MST e ativistas de direitos humanos. Nesse sentido, o FPOPSEG está dispostos a fazer com que o conhecimento dos territórios negros de favelas e periferias sejam protagonistas na construção de um Estado que assegure a vida e os direitos da população que convive diariamente com a violência policial, e, para isso, atua a partir de três eixos de trabalho: a) mobilização/formação; b) incidência política; c) produção de conhecimento.

Importante ressaltar que o objetivo de gerar dados por conta própria abrange diferentes campos de atuação. Podemos observar organizações que atuam de forma mais ampla na temática das mudanças climáticas e do racismo ambiental, outras atuam no campo da segurança pública e da violência, além de grupos que possuem foco em outros temas como saúde, habitação, infraestrutura etc. Ainda assim, constantemente, tais organizações relatam que precisam legitimar seu espaço, visto que os conhecimentos e os dados produzidos por eles não são legitimados e não alcançam o mesmo reconhecimento que universidades ou órgãos do Estado.

Sem dúvida, a ampliação de um debate que reconheça e valorize as produções e as gerações de dados organizados e narrados pelas próprias favelas vêm fazendo a diferença e, dessa forma, têm colocado a favela numa posição diferente – a partir de sua própria representação. A atuação dos movimentos de favelas e a realização de diferentes iniciativas, sob diferentes metodologias (e novas epistemologias), vem fortalecendo o discurso de que a favela não deve se resumir em terminologias que demarcam o território no lugar de um “problema”, e, sim, que nela existem diferentes questões que merecem destaque, assim como a questão racial, de gênero, de escolaridade, saneamento básico, além das questões como saúde, educação, segurança pública e outras temáticas de direitos básicos. As desigualdades existem, sob sua forma estrutural. Mas a superação dessas desigualdades pode também estar no reconhecimento de demandas e iniciativas locais. A favela não é problema, e, sim, solução.

Muda-se a nomenclatura, mas e as garantias de direitos dos(as) favelados(as)?

Por isso, é preciso que as favelas também apontem a direção. Um fuzil de 28 mil reais usado pelas forças armadas de segurança, por exemplo, é o suficiente para pagar 36.842 merendas escolares no estado do Rio de Janeiro; um blindado lançador de água de R$4 milhões pagaria o salário de 890 professores; um caveirão de R$652 mil é o equivalente ao valor de 2 ambulâncias. Esse e outros dados referentes ao Projeto de Lei Orçamentária Anual (PLOA) para 2025 foram divulgados pela Iniciativa Direito à Memória e Justiça Racial em sua Campanha “Desinveste Já!”, cujo objeto é trazer o debate do desinvestimento e maior controle das polícias, incidindo política e diretamente nesses temas. Quando observamos a composição do orçamento em outros setores para o ano no estado carioca, observamos que a Segurança Pública representa mais investimento do que a soma das pastas de Habitação (R$393 milhões), Trabalho (R$71 milhões), Assistência Social (R$1,1 bilhão) e Cultura (R$418 milhões).

Ainda segundo o dossiê apresentado pelo IDMJRacial, essa ampliação orçamentária vem acontecendo em todo o Brasil. No Espírito Santo, a pasta da segurança pública é a terceira maior com previsão de R$2,6 bilhões para este ano; em São Paulo, temos a segurança pública com mais de R$20 bilhões – sendo a segunda pasta que mais recebeu aumento orçamentário de 2024 para 2025 (+R$1,9 bilhão); e no Paraná, onde em 2024 foram investidos R$5,9 bilhões em 2024 e a previsão para 2025 é de R$6,4 bilhões.

A partir dessa análise, é importante trazer para o centro do debate a seguinte reflexão: enquanto o termo “favela” volta a ser oficialmente utilizado pelo IBGE, uma conquista que merece ser celebrada coletivamente por todos que compõem essa luta, os direitos básicos desse povo serão garantidos? Quando falamos de representatividade e resistência, é necessário falar também sobre a necessidade de que o orçamento público dos estados seja direcionado para uma política que promova a vida e o bem estar social nas favelas e periferias, não somente e de forma desproporcional para a segurança pública, que, atuando como tem feito até aqui, não faz mais do que uma política de medo, insegurança e morte.

Para fazer valer plenamente as existências desses grupos diante de tantas produções de dados sobre favelas e periferias, e especialmente a mudança de nomenclatura usada pelo IBGE, é necessário que o debate sobre Segurança Pública esteja sempre compondo as discussões, já que os temas são diretamente complementares. Como analisado anteriormente a partir das políticas de segurança do estado do Rio de Janeiro, a realidade da violência urbana no Brasil hoje perpassa atores antigos, mas que se atualizam sob novas práticas. Sendo assim, é notável que não se trata da necessidade de um maior investimento numa área de atuação enquanto outras seguem sucateadas, entendendo que a real mudança será alcançada quando direitos básicos forem plenamente garantidos ao mesmo passo em que houver vida digna para pessoas pretas, faveladas e periféricas.

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