Um convite da Venezuela a valentia

Explícito, Trump admite: autorizou operações golpistas da CIA na Venezuela. Combate às drogas é pretexto para aparelhar democracias latinas. Para resgatá-las, um chamado à solidariedade que não substituí, mas fortalece lideranças, movimentos locais e a autonomia de decisão aos povos

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Por Ricardo Queiroz Pinheiro

A Venezuela não é um objeto de mercado. Não é moeda de troca em conferências diplomáticas, prêmio simbólico ou manchete de redação. É um povo com história, resistência e memória — um povo que, há décadas, vem pagando o preço de disputas que o ultrapassam. Dizer isso não é fazer apologia de um governo; é afirmar uma regra política elementar: a autodeterminação pertence àqueles que vivem e lutam na própria terra.

Se Maduro não é o ideal — se faltam liberdades, se há erros, se houve autoritarismos e má gestão —, as correções legítimas nascem do conflito político interno, das ruas, das organizações e das urnas venezuelanas. Não podem ser projetadas como bens exportáveis por “casacas” europeias, ONGs financiadas por interesses estrangeiros ou manobras encobertas por slogans humanitários e trumps redentores. Quando os avanços democráticos são instrumentalizados por potências externas, a democracia que daí nasce é uma casca: vistosa, frágil e dependente.

A história da América Latina nos ensinou como se fabricam essas alternativas: intervenções econômicas que asfixiam, embargos que quebram serviços essenciais, campanhas midiáticas que ocultam o cerco real — agora também a inovação dos prêmios “nobéis” concedidos a ignóbeis. Tudo isso opera como pré-condição para mudar um governo sem que as raízes do conflito sejam tocadas. Não se trata de negar problemas locais — trata-se de recusar que problemas internos virem pretexto para projetos de dominação.

Defender a soberania latino-americana não é ser cúmplice de arbitrariedades. É, antes, reconhecer a diferença entre crítica legítima e instrumentalização. É oferecer solidariedade que não substitui a agência popular por tutelas externas. É entender que a luta pela justiça social e pela liberdade passa por fortalecer movimentos, por proteger atores sociais locais, por exigir processos eleitorais limpos e por denunciar sanções e bloqueios que, invariavelmente, atingem civis e agravam crises humanitárias.

Há também uma ética da solidariedade que precisa ser recuperada: solidariedade que escuta e faz escalas com os movimentos locais; solidariedade que não transforma lideranças em fetiches midiáticos; solidariedade que exige transparência e responsabilização internas, mas que também aponta quem lucra com a desordem. Não são os mesmos atores — empresas, fundos e plataformas de influência — que se beneficiam da fragmentação e da dependência? Pergunte-se quem ganha com o colapso institucional e com a privatização dos recursos.

Por fim, chamar o campo soberanista para o combate intelectual tem efeito prático: exige análise concreta, não slogans. Requer mapeamento das sanções e seus efeitos, visibilidade às demandas populares legítimas, apoio a processos eleitorais auditáveis e pressão internacional contra procedimentos que violam o direito internacional. E, sobretudo, requer que a voz central seja a do povo venezuelano — não a de consulados, think tanks ou celebridades em campanhas de fora.

A América Latina só será livre na medida em que recuperarmos a capacidade coletiva de decidir, sem tutelas e sem chantagens. Defender a Venezuela significa, antes de tudo, defender o direito desse povo de escolher seus caminhos, de corrigir seus erros e de construir alternativas desde dentro. Solidariedade que é autonomia: essa é a nossa tarefa.

Não importa se isso fere corações e mentes frágeis, alimentados pelo sonho ingênuo da democracia liberal. Há uma luta a enfrentar — e não será com a Trump ao lado que a venceremos.

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