Quando a psicanálise dança aos versos do Corão

Masud Khan trouxe o “ethos” islâmico para o processo analítico. Valorizava o confronto com o verdadeiro “self” e o cultivo do silêncio, em contraste com a discursividade e o acolhimento judaico-cristãos. Um aporte necessário num mundo pleno de sentido pré-fabricado

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Por Gilberto Safra na Revista Cult

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> Este texto é parte da edição 298 da Revista Cult — parceira editorial de Outras Palavras. O número reúne um dossiê sobre o psicanalista islâmico Masud Khan. Veja o índice completo e conheça o espaço Cult no OP

Masud Khan tem sido considerado um analista polêmico, por sua personalidade e por suas atitudes controversas em situação clínica. Nasceu em Punjab, na Índia. Seu pai foi camponês, praticante da religião islâmica, de tradição xiita, eventualmente tornou-se bastante rico, voltou-se primordialmente à criação de cavalos, que eram fornecidos ao governo britânico. Casou-se quatro vezes. Masud Khan envergonhou-se do último casamento de seu pai por considerar que sua mãe era uma cortesã adita em ópio, aspectos reprováveis na cultura islâmica.

Khan graduou-se em literatura inglesa na Universidade de Punjab e obteve o título de Mestre pela mesma universidade em literatura e psicologia. Era um homem de gosto refinado. Há descrições dele sempre como uma figura aristocrática e muitas vezes arrogante.

Nesse texto, não irei me ocupar dos relatos polêmicos sobre ele, porque interessa-me focar as dimensões das contribuições que realizou para o campo psicanalítico, que me parecem bastante fecundas e originais. Em grande parte delas, a influência do ethos islâmico é significativa.

Em seu livro Quando a primavera chegar, Khan descreve-se como um exilado. Considero que essa experiência de se sentir exilado não aconteceu somente por estar na Inglaterra, mas, do meu ponto de vista, ela originou-se muito cedo em sua vida. Foi criado longe de seus pais, sem permissão de ver sua mãe durante os primeiros anos de sua vida. O fato de seu pai ter se casado com uma mulher considerada vulgar no meio islâmico significou para a família um certo estigma. Fatores que parecem ter influenciado de maneira significativa o modo de ser de Masud Khan.

O anseio de inserção social e de prestígio parece ter movido Khan em diferentes momentos de sua vida. A maneira como buscou se inserir no meio social e psicanalítico inglês, o convívio com artistas e pessoas de prestígio social, parecem assinalar a importância desse anseio. Perspectiva também importante na compreensão de seu estilo de ser assertivo e muitas vezes arrogante. Em Quando a primavera chegar, Khan afirma: “Tendo vivido e trabalhado em Londres por quarenta anos, aprendi que viver num autoexílio é diferente de ser émigré. Não precisei fabricar uma nova identidade como cidadão britânico e, ao mesmo tempo que me encontrava aberto para aprender da cultura na qual estava vivendo, o persistente poder que minhas raízes tinham sobre mim exerceu uma influência marcante sobre minha forma de trabalhar”.

No entanto, neste texto gostaria de assinalar a importância que o Islã teve como fundamento de seu modo de ser. Não se pode afirmar que Khan tenha sido um muçulmano devoto. No entanto, pode-se observar que Khan trazia o Corão em seu ser. Pessoas que conviviam com Khan relatam que frequentemente recitava uma das suras do Corão em reuniões da Sociedade de Psicanálise ou em reuniões sociais.

Em Quando a primavera chegar, há inúmeras referências ao Corão ou a histórias sufis, não só como citação, mas em alguns casos como intervenção clínica. Em uma primeira entrevista, ele diz algo como “bem, vamos conversar e o processo estará nas mãos de Allah”. Também no caso da Aiesha, que, como ele, provinha da tradição islâmica, realizou intervenções e confrontações buscando restaurar o ethos islâmico no modo de vida da analisanda. Tratava-se de, por meio do confronto, levá-la à restauração de seu senso de dignidade. Masud Khan posicionou-se, frequentemente, com frases do Corão. Algumas vezes, pôde explicitar a amigos que ele valorizava o Corão, pois era sua tradição, que lhe ofertava um modo de ser singular e inédito.

Referir-se ao Corão implica que havia uma compreensão que o texto sagrado regeria todas as ações humanas. A dignidade do ser humano está na compreensão de que se está sempre referido ao divino. O ser humano só encontraria seu ethos na lembrança do divino. O esquecimento do divino implica perda da humanidade e da dignidade originária da condição humana. Todas as áreas da vida humana, o direito, relações familiares, hábitos de higiene, tudo é estabelecido pelo Corão.

Estudando os casos clínicos de Khan, observamos que ele foi um analista que trabalhou na transferência. Seu foco clínico fundamental não foi tanto trabalhar a transferência, mas sim trabalhar na transferência. Para Khan tratava-se não tanto de interpretar, explicitar a transferência, mas intervir, confrontar a partir do lugar transferencial no qual ele estava colocado na situação clínica. Esse tipo de trabalho clínico era profundamente sintônico com a estrutura e a linguagem do Corão. O texto corânico é um texto interventivo. Allah, por meio do texto, confronta, intervém para que o leitor recorde a sua condição, recupere a sua dignidade, que seria seu estado originário, na perspectiva islâmica. A intervenção e a confrontação são a maneira privilegiada da atividade analítica de Khan. Ele afirma: “meus experimentos com a técnica analítica se dão pela utilização do confronto com o verdadeiro self do paciente. Diferencio-me da indução de Winnicott à dependência redentora por meio da regressão”.

Grande parte dos analistas têm a sua prática assentada (consciente ou inconscientemente) em um ethos judaico-cristão que se manifesta pela primazia do acolhimento e da discursividade, e para estes torna-se muito difícil compreender um modo de realizar análise na qual, por meio de um ethos islâmico, o confronto coloca-se como ação clínica fundamental.

Na realização de seu trabalho clínico, Masud Khan utilizou-se amplamente da modalidade clínica que Winnicott apresentou e que foi denominada de placement (termo que poderia ser traduzido como alojamento). Nesse dispositivo clínico, o analista trabalha na transferência a partir da sua singularidade, por meio de intervenções na situação do cotidiano da vida. Nessa perspectiva, não há ruptura entre o consultório e a situação externa a ele. A atividade clínica, nesse dispositivo, acontece no mundo de vida do analista e do analisando, compreendido como espaço potencial. Há, aqui, a compreensão de que o cotidiano não é simplesmente um agregado de coisas, de costumes, de objetos, mas que é campo fecundo onde as diversas experiências humanas estão em jogo, em um campo de intensa espessura simbólica. No placement, o analista intervém utilizando-se dos campos simbólicos constituídos pelos modos de vida de analista e analisando. De modo que o analista intervém a partir de sua personalidade. Khan a esse respeito afirma: “não concordo com a corrente tradicional no que se refere ao anonimato por parte do analista”. Embora Winnicott tenha apresentado o placement em quadros clínicos específicos, o fato é que ele o utilizou amplamente em sua atividade clínica. Khan parece ter encontrado nessa modalidade de trabalho o campo privilegiado de sua prática clínica, sobretudo porque nela também encontramos a dimensão fundamental da vida do ser humano como apresentada no Corão: o cotidiano é campo de espessura simbólica e é sagrado. A esse respeito, Khan esclarece: “O verdadeiro gênio da visão do Profeta foi que ele insistiu no milagre da bondade de Deus, que só pode ser encontrada na vida cotidiana com suas exigências”.

Outro vértice importante na compreensão da contribuição de Khan, refere-se à questão do segredo, da privacidade e do mundo interno. Khan discutiu amplamente em seus diferentes textos a demanda fundamental do ser humano pelo espaço privado, a importância do segredo como possibilidade de existir com o outro sem ser invadido no núcleo de seu ser. Para ele, o segredo é o espaço no qual se alojam experiências significativas de uma pessoa, guardadas como memória, sonhos, histórias que dão densidade à vida interna de uma pessoa. Lugar que se diferencia do espaço subjetivo que acontece em relação com os outros. É verdade que Winnicott já havia chamado a atenção para essa questão ao abordar o núcleo não comunicável do self. No entanto, Khan amplia a discussão abordando-a por diferentes perspectivas, como a necessidade do segredo, o adoecimento do espaço do silêncio pela promiscuidade social e, sobretudo, compreendendo que esse lugar do silêncio no cerne do self é o espaço no qual a vida interior ganha profundidade e no qual pode vir a ocorrer o “bom sonho”, aquele que não precisa ser lembrado ou narrado por já ter cumprido sua função psíquica. Para ele há uma diferença fundamental entre o sonhar como campo de experiência e o sonho narrado, que se move em direção ao outro na busca do espaço intersubjetivo, que possibilite que a atividade onírica possa ser lembrada para encontrar destinação e elaboração.

Essas discussões também estão embasadas pela antropologia islâmica, pois nela encontramos a importância do que é denominado Sirr (o Segredo). Sirr é o coração espiritual, que precisa vir a ser desperto ao longo da vida. É considerado a Meca da alma humana que possibilita que o ser humano possa sentir-se vivo e ativo em sua vida diária, fundação de sua dignidade sagrada.

Considero importante acessarmos a obra de Khan a partir dos fundamentos do islamismo, elemento que foi tão fundamental em seu modo de ser. Poderíamos por esse vértice ter uma compreensão mais profunda das características de sua clínica, pois, como ele afirmou: “Os pacientes que aparecem nestas páginas foram criados por pais devotamente religiosos, da fé cristã, judaica ou muçulmana. Transgrediram sua fé e crenças… Mas raramente a fé na qual se foi criado é abandonada. Carl Jung o reconheceu pública e profissionalmente e Sigmund Freud apenas na sua correspondência, confidencialmente”.

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