Por que ler bell hooks em tempos sombrios
Ódio, insegurança e medo: ultradireita aprofunda a aridez espiritual em seus discursos. Obra da escritora e ativista é convite-antídoto para enfrentar essa realidade: repensar o amor, desromantizado e como ação política capaz de criar vínculos com o outro e com o mundo
Publicado 25/04/2025 às 16:39

Morreu em 15 de dezembro de 2021. Gloria Jean Watkins se autodenominava bell hooks como homenagem à sua bisavó e em letras minúsculas para privilegiar a escrita, não a escritora. Explorou o racismo, o feminismo e a luta de classes, concentrando-se na interseccionalidade do capitalismo, raça e gênero como sistemas perpetuadores de opressão e dominação. Nesse contexto, bell hooks desmonta o clichê romântico e defende que o amor, mais do que um sentimento, é uma ação capaz de transformar o niilismo, a ganância e a obsessão pelo poder que dominam nossa cultura. A ausência deliberada de notas de rodapé nos seus textos e a grande fluidez de sua prosa são mais duas características de identidade autoral, que rompe com convenções acadêmicas e linguísticas.
De acordo com esta teórica, artista e ativista social, pensar no amor como uma ação e não como um sentimento é uma forma de assumir responsabilidade e comprometimento. Fomos ensinados que não podemos controlar totalmente nossos sentimentos, mas a maioria de nós aceita que nossas ações são escolhidas e que a intenção e o desejo influenciam o que fazemos. Também assumimos que nossas ações têm consequências. Pelo enfoque de bell hooks, pensar que ações moldam sentimentos significa desfazer preconceitos, como o de que todos os pais amam seus filhos, caímos de amores sem desejo nem escolha, ou que existem esses tais de crimes de paixão. Mas se tivéssemos presente, frisa hooks, que amor é o que o amor faz, não usaríamos a palavra de uma forma que desvaloriza o seu significado. Quando amamos, sentimos e também fazemos: expressamos cuidado, carinho, confiança, respeito, nos comprometemos e assumimos responsabilidade.
Em conversas privadas e debates públicos, bell hooks deu e recebeu testemunhos de angústia e medo social, acompanhados de um cinismo indiferente em relação a qualquer ideia que sugira que o amor é mais importante que o sucesso profissional. Ora, todos os movimentos históricos preocupados com justiça social enfatizaram uma ética do amor, e nesse sentido esta pensadora tinha muito em mente o livro de Erich Fromm, A arte de amar, no qual, em meados do século passado, podia-se ler que, liderada por uma burocracia gerencial, políticos profissionais e com o objetivo de produzir e consumir como fins em si mesmos, “o princípio que alicerça a sociedade capitalista e o princípio do amor são incompatíveis”. Assim, dirá hooks, é como se ignora a interdependência básica da vida e se promove a distância entre as pessoas e a ganância individual: a ênfase no consumo infinito desvia a atenção da necessidade espiritual.
Para bell hooks, o amor é a disposição de fazer todo o possível para promover o próprio crescimento espiritual e a dos outros, entendendo por espiritual a união entre mente, corpo e espírito, este último também definido como uma força vital que aumenta nossa capacidade de autorrealização e nos torna capazes de nos relacionar em harmonia com os outros e com o mundo ao nosso redor. A espiritualidade, diga-se de passagem, não precisa estar relacionada com instituição religiosa alguma, mas abre o caminho para o respeito à sensibilidades alheias. Por outro lado, hooks se nutriu de uma combinação do cristianismo materno com o budismo que absorveu mais tarde, e explica: “Por um bom tempo, muitos dos meus amigos e colegas não faziam ideia de que eu me devotava a uma prática espiritual. Entre acadêmicos e pensadores progressistas, era muito mais bem legal, descolado e aceitável expressar sentimentos de ateísmo. Comecei a falar mais abertamente sobre o papel da espiritualidade em minha vida quando testemunhei o desespero dos meus alunos, sua sensação de desesperança, seus medos de que a vida não tivesse significado, sua solidão e desamor profundos. Frequentemente, eles me pediam que contasse como havia mantido a alegria de viver. Para dizer a verdade, eu tinha que estar disposta a falar abertamente sobre a vida espiritual. E eu tinha que encontrar uma maneira de falar sobre minhas escolhas sem pressupor que elas seriam as escolhas certas ou boas para outra pessoa.”
bell hooks reivindica o legado deixado por Martin Luther King Jr., em cuja obra podemos encontrar uma politização do amor, isto é, como uma forma de luta para colocar um ponto final à opressão e como força ativa para uma maior comunhão com o mundo. O amor é uma ação, uma emoção participativa, uma prática de resistência. Quando nos comprometemos com ele, vamos além do reino dos sentimentos. Segundo a autora, entre tantos outros livros, de Ensinando comunidade e Tudo sobre o amor (que inspiraram este artigo), não há lugar melhor para aprender a arte de amar do que em comunidade, superando o limiar do casal e da família, aprendendo a comunicação honesta, estabelecendo relações mais profundas do que simples máscaras de compostura e desenvolvendo um compromisso significativo de nos alegrarmos juntos, de chorarmos juntos, fazendo nossas as condições dos outros. Se as aparências e a mentira são mais aceitáveis que a verdade, dificilmente conheceremos o amor. Amar é uma escolha livre que fazemos contra o medo, contra a obediência, contra a alienação e a separação. Escolher amar é optar pela conexão, por nos encontrar no outro. É por isso que a simplicidade, o compartilhamento de recursos e as políticas do comum são tão importantes. Além do mais, valorizar os benefícios de amar e viver em comunidade nos capacita a reconhecer e nos relacionar sem medo com aqueles que são diferentes. Começamos a construir uma comunidade com um sorriso, uma saudação calorosa, um pouco de conversa…
Infelizmente, já estávamos acostumados a viver num mundo que privilegia a concorrência por cima da cooperação. Porém, com a chegada por segunda vez de Donald Trump à presidência dos Estados Unidos – pavimentando o discurso e as práticas de ódio de toda a extrema direita internacional –, a desconfiança, a ameaça, a insegurança e o fechamento para se proteger do estrangeiro configuram a nova mentalidade em voga. Contudo, acredito que a crise que atravessamos é principalmente uma crise de valores, resultado de décadas de individualismo e aridez espiritual. O discurso desromantizado de bell hooks sobre o amor está na base de qualquer sociedade que se queira realmente justa e livre. É por isso que cada dia se torna mais necessário e urgente repensar o amor como uma ação que cria vínculos e nos torna corresponsáveis pelo nosso destino, que é o destino do mundo.
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