Para entender o avesso de Marx
Muitas vezes, esquerdas reduzem obra do pensador alemão a um moralismo humanitário pouco transformador. E se nos libertássemos de uma leitura dogmática, repetitiva ou de “promessa de salvação” para reconstruí-la de forma mais criativa, como ponto de partida?
Publicado 19/09/2025 às 18:36 - Atualizado 19/09/2025 às 18:38

Título original: Marx Revelado: Conversa filosófica por um progressismo de verdade
O moralismo é um sinal de fraqueza da
Esquerda, de sua diluição em humanitarismo.
Fraser & Jaeggi, Capitalism, 2018, p. 208
1 Marx filosófico: humanista, especulativo, metafísico?
Quando até a Teoria Crítica alemã, a mais recente, acha que cabe esse alerta (acima), embora não o entenda nem explore, é sinal de que podemos estar diante de um problema grave. Senão vejamos. O que poderia ser uma tarefa relevante para a filosofia no Brasil, hoje? Oferecer uma decifração de Marx, principalmente de sua normatividade, dada a grande influência que ele segue tendo entre nós, influência tão mal-entendida quanto largamente difundida, até para muito além do que normalmente se concebe como “Marx”. Pela enésima vez, mas agora de modo inteiramente outro, o que é o pensamento de Marx? O que de fato diz e prega? O que sistematicamente esconde? Sobre que bases filosóficas e escolhas conceituais, sobre que metáforas e narrativas, o pensamento dele realmente se constrói? O que está no “avesso” do pensamento de Marx, avesso porque acompanha, sem que se perceba, suas conclusões mais sedutoras, que seguem sendo repetidas sem mais?
No livro O Avesso de Marx,1 me proponho mostrar e problematizar esse lado de seu pensamento, de uma maneira que mesmo o leitor não especializado possa entender, e chegar a suas próprias conclusões, com conhecimento de causa. O que é, no mínimo, uma maneira de “desnaturalizar” o pensamento de nosso filósofo, e de melhor explorar seu argumento, seu dito materialismo histórico. Uma maneira de mostrar seus verdadeiros pressupostos normativos, frequentemente ignorados como tais, e de avaliar melhor suas implicações, boas ou más, inclusive e principalmente, as mais práticas, políticas. E daí poder ter uma ideia mais clara do que fazer com Marx, ou a partir dele, ou de como partir dele para coisa melhor, com mais clareza. Por aí o/a leitor/a pode também avançar em sua própria compreensão ou competência filosófica mais geral, na área do pensamento dito crítico, social e político, de orientação transformadora.
O Avesso de Marx, a cuja Introdução volto aqui, quer dar a quem o lê, não só uma maior liberdade de pensamento com relação a Marx, mas também, com isso, algumas pistas filosóficas de abertura ao real, social e político, como este pode se apresentar melhor à sua compreensão e, logo, intervenção. O livro apresenta o assunto “Marx” de uma outra maneira, mas também apresentar a filosofia em geral como pensamento do tempo, e como conversação, para nela introduzir o leitor. Por fim, com a exposição de seu avesso, o livro visa encaminhar a questão de com quanto ficamos ou quanto reelaboramos de Marx, para tomar o lugar de um “xarope humanista”, supostamente de esquerda, dos nossos dias, prolífico no Brasil, na verdade deslocado de qualquer consequência política de transformação real mais efetiva, do país, pelo menos de um ponto de vista de povo.
Posso adiantar que, com essa preocupação, exponho, de Marx, de modo digesto, seu lado metafísico, religioso, até místico, e, em relação a isso, problemas com aspectos filosóficos centrais de seu pensamento, como essencialismo, substancialismo, teleologia etc. Nisso tudo, trato de chamar a atenção para o que podemos chamar de seu “humanismo social-transcendental”, e de sua “história de salvação”, como fundamentos de sua Crítica do Capitalismo e do Mundo. São elementos que têm a ver principalmente com seu lado prescritivo, isto é, com seus esforços por estabelecer um fundamento normativo forte para seu Comunismo. Coisa que ele faz através de uma mistura engenhosa do pensamento do comunitário-amoroso Ludwig Feuerbach, com o do histórico-dialético Georg Hegel, espinosanamente corrigido, ambos por oposição ao subjetivismo e individualismo modernos. E em oposição a mais coisas, em especial ao que Marx entende como a consequente hipostasiação do Mundo Humano, que acompanharia esses dois vícios modernos, hipostasiação em relação a um suposto sujeito humano plenamente social, a se realizar, tal como ele o concebe, no Comunismo.
Não se impressionem a cara leitora, o caro leitor, porém, com esses termos e referências filosóficas, nem com o radicalismo da nossa tese. Você pode passar sem um domínio prévio dessas coisas, porque o que fazemos no livro é mostrar Marx diretamente no seu texto, já que meras citações ou interpretações “exteriores”, dele, dão apenas em infindáveis controvérsias, sem qualquer proveito, para qualquer lado. E, já que se trata de sua filosofia, junto com seu texto, partimos da disputa filosófica, formadora, em que nosso Autor efetivamente se engaja. Partimos do que ele mesmo diz e formula de filosófico, nesse movimento, tudo isso numa conversação filosófica da qual o leitor pode se sentir participante. Pois não creio que exista na filosofia suporte para um Ponto de Vista Superior, para além do que é, em princípio, acessível à compreensão de qualquer ser humano, particularmente no campo da chamada “filosofia prática”, isto é, no terreno da orientação do agir e do fazer.
Pois fazemos tudo isso, como já sugeri, com o objetivo de liberar uma melhor compreensão e atuação, frente à nossa realidade, com vistas ao desenvolvimento de um melhor progressismo democrático entre nós, não doutrinário, mais transformador, em meio a um mundo materialmente tão mudado, e frente a um contexto tão particular como o brasileiro e o do mundo em nossos dias. O que, para mim, cobra, ao final, o desenvolvimento de uma elaboração filosófica própria, melhor do que a mera repetição de Marx, e melhor do que sua variada descendência “crítica” tem podido até aqui oferecer.
Certamente poderíamos entender que interessa mais o estado do pensamento filosófico e teórico, crítico ou não crítico, dos nossos dias, em relação ao social, à política e à cultura, aquele associado ao desenvolvimento democrático de nossos arranjos sociais, um pensamento dito de esquerda ou progressista. Mas é sobretudo em relação a tal estado que Marx mais nos interessa, no caso a dimensão filosófica dos seus fundamentos de alcance normativo, que geralmente não é examinada para além de uma perspectiva dogmática ou ingênua. E nos interessa também porque o pensamento dele se prolonga, nos nossos dias, numa vasta herança teórica e filosófica, além de em suas derivações práticas, supostamente políticas, muito difundidas.
2 Difusão e recalque, degeneração e regeneração – de Marx
Para começo de conversa, admitamos que, quanto a sua influência e difusão, “Marx” é muito mais do que simplesmente o Autor, e que este não representa apenas uma crítica da economia política, mas uma verdadeira crítica da Civilização e da Modernidade. Uma crítica que, “no fundo”, segue tendo praticamente o monopólio do pensamento social radical, de sua normatividade crítica, e do que é considerado como anti-capitalismo, anti-dominação e anti-exploração nos nossos dias. Marx aparece como espírito e espectro da esquerda em geral, ainda a do nosso tempo, e mesmo, mais amplamente, como o ponto de vista do “humano”, “humanista”, “humanitário”, “comunitário”, em sua forma mais acabada. Ou, no limite, aparece simplesmente como o pensamento do Bem, quando se quer resolver o Bem em uma questão de conhecimento e teoria, em termos de posição ideológica e política. Ultimamente, entre nós, aparece até como a suposta base conceitual de uma atitude de Amor, em contraposição ao egoísmo e à maldade do Mundo.
Assim, Marx, como espírito e como espectro, está em quase toda parte, até inconscientemente ecoado, por orelhada e por adivinhação, com larga margem de ignorância. E é, além disso, idolatrado e edulcorado, ao final deturpado e empobrecido. Marx vive desse modo em vagas e vogas críticas – na cultura, na academia, na vida intelectual, na vida política e na movimentação social que contribui para articular, não importando a queda do muro de Berlim e o fim da União Soviética. Há poucos pensadores tão geniais e influentes como ele, se é que há algum, que possa presidir, sozinho, um paradigma inteiro, como sinônimo abrangente de Crítica, de Ideal, de Utopia, que como tal vige e se desdobra em infinitas derivações. Não admira que acabe canonizado.
Nosso comunista, assim, não preside só o marxismo ou marxismos, não está só no pensamento de partidos de esquerda ou de suas facções internas pretensamente mais radicais, nem apenas no pensamento de certos movimentos sociais reivindicatórios mais tradicionais. Ele está ainda, por exemplo, com adendos comunal-altruístas, também anti-modernos, de procedências outras ou não tão outras, na teologia e na filosofia latino-americanas “da libertação”. Via Georg Lukács e através de Theodor Adorno, está na teoria crítica da Escola de Frankfurt, até os nossos dias. Por fim, particularmente no Brasil, está, na chamada “esquerda hegemônica”, num certo cruzamento que inclui Marxismo e Catolicismo, este último por suas históricas inclinações antimodernas e anticapitalistas, comunais e hierárquicas.
O autor de O Capital está presente em tudo isso, em última análise, por seus contornos ideal-normativos, por sua dimensão crítico-social, humanista, que persevera em sedutoras metáforas de interpretação, suas ou dele derivadas, como alienação, fetichismo, coisificação, trabalho vivo, pré-história do homem, reino da liberdade etc. Como também persevera no reiterado binarismo de tantos discursos, como explorador-explorado, dominante-dominado, opressor-oprimido, hoje esgrimido por tanta gente a torto e a direito. Nessa linha, por extensão, passado por algum Nietzsche e Heidegger, “Marx” seria também a chamada “teoria francesa”, pós-estruturalista, entre pós- e neo-marxista, entretanto linguocêntrica, pretensamente até mais radical do que Marx, e (essa é sempre a pedra de toque) supostamente não menos anticapitalista.2 Esse “Marx” meio subterrâneo vem a ser agora, repetindo-se como farsa, “anti-moderno”, “anti-ocidental”, “anti-branco”, e o que se mais queira de “anti-“, que o “pensamento do negativo” ainda impera no campo dito crítico quase que inteiro.
Como sinônimo de crítica e denúncia sempre estruturais, nas Ciências Humanas e nas Humanidades em geral, Marx é, para o bem ou para o mal, o que veio a se denominar de “teoria”, termo agora seguido de todo tipo de adjetivos particularizantes, para cada possível discriminação/polarização/vitimação, binária, particular, tomada justamente como “estrutural”. Disso resulta um pensamento de fragmentação do social em infindas “opressões” e em seus respectivos “proletariados”, multiplicáveis ad infinitum, no prolongamento do Marx tradicional, classista, compondo um amplíssimo campo, apelidado de “Marxismo Cultural”. Marx transparece no “politicamente correto”, na reforma crítica da linguagem, num novo “rousseauísmo” como idealização das sociedades ditas primitivas (sem Estado, sem meios técnicos). Transparece numa idealização do “tradicional”, do “não-moderno” em geral – isso tudo em modos de pensamento que sempre pretendem ter base histórica e alcance político e social radical. Pois, fragmentadas e diversas como sejam, todas essas supostas derivações de Marx se imaginam igualmente opostas, em última análise, a uma mesma figura, de sentido universal: o Opressor, o não-Humano, o Inumano, o Mal – como Capitalismo.
Mas por que toda essa decomposição/proliferação “anticapitalista”, cripto-humanista, até piedosa, moralista, cujos eventuais vícios podem já estar em Marx? Porque o marxismo tornou-se hoje um ponto de vista sem materialidade e sem sujeito geral ou universal, por base social real, daí resultando num radicalismo em grande medida vazio, discursivo, expresso em termos dominantemente morais, basicamente na pouco marxiana linguagem dos “direitos”. O materialismo histórico de Marx, entretanto, registre-se, sempre sustentou uma perspectiva geral, para os seres humanos, de afirmação e exuberância, francamente material e corpórea. E sempre foi ao seu modo contra a degradação moralista do pensamento crítico, como adversário histórico que nosso Autor foi do chamado “socialismo verdadeiro”, alemão, e, do “comunismo cristão”, amoroso e abnegado, do seu tempo. E foi adversário por causa das consequências políticas desses dois e mais, como deixa muito claro, por exemplo, no Manifesto Comunista e na Ideologia Alemã. Podemos dizer, em termos contemporâneos, que Marx sempre se mostrou avesso a pobrismos, vitimismos, migalhismos, a assistencialismos estatais e outorgas de direitos tutelares, pouco ou nada transformadores. Avesso a posições sem imaginação para mais nada, para além de serem apenas “humanizantes”, no mais limitado sentido.
3 Um materialismo prático-produtivo, em Marx e além
O lado exuberante e afirmativo do humanismo de Marx, embora ainda em última análise “crítico-negativo”, aparece, em sua teoria, dos mais variados modos. O proletariado para ele não é tanto uma vítima quanto uma força/agência nova, vigorosa, transformadora, em ascensão, movida por um “interesse particular”, ao final universalizável. O trabalho, como “atividade genérica” dos seres humanos, por seu lado, para Marx, deve encontrar condições/relações em que possa desenvolver as dimensões de expressão, criação e liberdade, também de enriquecimento, que lhe cabem, frustradas nas condições capitalistas de assalariamento. E a principal força produtiva que uma verdadeira transformação social deve liberar, por via de novas relações de trabalho, de livre acesso a meios materiais, são para Marx, em primeiro lugar, os próprios produtores, seres humanos comuns, com suas competências e potencialidades. A expressão “forças produtivas”, aliás, aparece em outros pensadores do séc. XIX, Nietzsche por exemplo, com a conotação, vitalista, de força criadora, exuberante, afirmativa.
O problema, ainda assim, é que, se em Marx os trabalhadores seriam os autores de sua própria emancipação (coisa que o marxismo não assume tão consistentemente), o conteúdo dessa emancipação está dado por cima de suas cabeças. Está dado pela Teoria, que, como Lênin reconhece com sua característica franqueza, é coisa de “intelectuais burgueses”. Daí, aliás, que o Partido (Comunista), segundo nosso “corifeu da filosofia da práxis” (Lênin, para Gramsci), fica na posição de “instrutor, chefe, guia”, e daí impositor de “uma unidade absoluta de Vontade”, como “subordinação de milhares à vontade de Um só”. Pois, no fim de contas, o que se visa e mais interessa, no Marxismo, é a supressão da “subordinação escravizadora dos indivíduos à divisão do trabalho” (Marx, na Crítica ao Programa de Gotha), tal supressão representando sua verdadeira autodeterminação e liberdade.
*
Depois disso, com respeito à parte propositiva, renovada, a que deve conduzir minha elaboração filosófica própria, adianto que é o que temos desenvolvido como um “ponto de vista materialista prático-poético”, para o qual ofereço referências no percurso do O Avesso de Marx, em seus vários passos, sem que esse seja o foco do livro. De todo modo, com respeito a suas consequências políticas, que já deixei claro constituem a motivação relevante desse livro, tal ponto de vista pode ser entendido, resumidamente, como uma reconstrução de Marx, de sentido prático e atualizador. Desde que não se entenda com isso que tal ponto de vista tenha a ver, p. ex., com a “ação comunicativa” e a “democracia deliberativa” de Habermas, nem com “social-democracia”, nem muito menos com um “neoliberalismo social”, complementado por políticas compensatórias ou identitárias. Desde que tampouco, finalmente, se entenda que tal ponto de vista tenha a ver com alguma fórmula normativa a-priori e universalista, a mesma para todos os contextos ou conjunturas nacionais, em todos os cantos do mundo.
Em vez disso, nosso “ponto de vista materialista prático-produtivo”, o de uma “filosofia da prática como poiesis”, tem a ver com uma noção de democracia e de cidadania materiais, não apenas formais. Como acesso, individual e coletivo, a meios, recursos e competências, produtivos, junto com uma ambiência de arranjos institucionais e materiais, particulares e gerais, que lhe deem suporte. E isso por contraposição às várias formas de escamoteamento dessa luta material, como aquelas patrocinadas pelos linguocentrismo ou discursivismo que se imaginam radicalmente “críticos”. Às vezes também patrocinadas pelo próprio marxismo e socialismo tradicionais, fixados fora do tempo, enquanto “a Revolução” não vem. Tal como Marx, também acho que todos esses problemas – políticos – envolvem uma incontornável dimensão filosófica, só que, nesse caso, no Avesso, trato de “despregá-la”, de sua obra, pela crítica de vícios que seu próprio pensamento envolve, embora mantendo bastante de seu “espírito”.
Voltando, assim, ao começo: Por onde pegamos o fundo metafísico e especulativo, normativo, de Marx, no O Avesso de Marx? Pelos ditos e não-ditos de seus próprios textos, em relação aos desafios reais do contexto teórico a que eles tentam responder. Tratamos de conduzir nosso filósofo ao seu próprio texto e, junto com isso, reconduzi-lo a seu contexto filosófico formador, o que implicará na desmistificação de narrativas sobre sua posição com relação aos filósofos de que se distingue. Fazemos isso, em primeiro lugar, por uma leitura crítica imanente, que chamo de “Marx por ele mesmo”, sem o que a/o leitor/a pode não acreditar no que dizemos. E, para tanto, não precisamos de nenhuma “desconstrução pós-estruturalista” do texto marxiano, mas apenas de um velho e bom conhecimento/esclarecimento conceitual e histórico-filosófico, rigoroso, sobre ele, o que significa uma exploração minuciosa dos meandros do seu pensamento. Precisamos apenas de uma disposição analítica e hermenêutica, crítica, para explorar suas implicações lógicas, seus compromissos e pressupostos, seus argumentos, pegando assim seu fundo ou avesso normativo, no detalhe, na sua laboriosa labuta com interlocutores e adversários.
Nisso tudo, não vale guiarmo-nos apenas, acriticamente, pelo que Marx diz de si mesmo, sobre o que representa e faz, nem muito menos, de modo ingênuo, pelo que ele diz de seus adversários, de suas posições, do que eles são e fazem. Para isso não precisamos ver Marx todo, sua obra inteira com a mesma minúcia, depois de tomar o suficiente dela para estabelecer o tipo de leitura e de compreensão filosófica que propomos no livro. Sem nisso esquecer, por exemplo, que Marx converteu-se ao Comunismo, como Ideal, por uma via filosófica (como Engels admite candidamente), antes de elaborar seu materialismo histórico ou qualquer crítica da economia política que devessem garantir e cobrar, “cientificamente”, a sustentação e realização daquele.
4 Crítica Imanente, do Jovem Marx ao Velho Marx, do Capital
Dizem que Marx, depois dos escritos “de juventude”, teria sido pela última vez filósofo, para se despedir definitivamente da filosofia, na Ideologia Alemã, obra que para uns é o texto de sua transição para a “maturidade”, mas para a maioria pertence completamente a ela. Essa narrativa da “despedida da filosofia”, porém, não é verdadeira, pois, como trato de mostrar, Marx segue também filósofo, e mesmo “hegeliano de esquerda” – que todos os hegelianos de esquerda são, ao seu modo e apesar do nome, anti-hegelianos. Marx segue sendo filósofo por todo o resto de sua obra, no Manifesto, nos Grundrisse, na sua Crítica da Economia Política em geral, e no O Capital em particular, este último como o coroamento de todo o seu esforço de pensamento.
É apenas, por razões didáticas, que, no O Avesso, eu comece minha leitura “crítica-imanente” por aqueles textos em que Marx se bate diretamente com outros pensadores enquanto filósofos. Para em seguida remeter às demais obras, em que ele pode não parecer filosofar, nem parecer tão expressamente continuar a tomar sua crítica do Cristianismo, originalmente feuerbachiana, como primeira crítica e referência fundamental de sua Crítica geral da Modernidade e do Mundo.
Desde já, porém, podemos registrar aqui que O Capital, não por acaso conhecido no seu tempo como “Bíblia do Proletariado”, pode ser entendido como o capítulo mais desenvolvido da narrativa materialista-histórica, dialética, de Marx (que data de antes), aquele capítulo que trata particularmente do Capitalismo. Uma narrativa, o materialismo histórico, segundo a qual este modo de produção deve necessariamente desembocar, primeiro, no Socialismo, e, por último, concluindo a “pré-história” ou “história natural” do “gênero humano”, no Comunismo, como nada menos do que passagem do Reino da Necessidade ao Reino da Liberdade (livro 3, cap. XLVIII).
O Capital trata, Marx mesmo reconhece, da lei mais geral do movimento do Capitalismo, e, em termos lógico-dialéticos hegelianos, podemos dizer, da passagem da Substância (Necessidade) a Sujeito (Liberdade). Por um movimento reconstituído por ele através de categorias filosóficas dialéticas, tais como contradição, negação determinada, superação, mediação, imediatidade etc. Não por acaso, para o revolucionário russo Aleksander Hertzen, a dialética é a “álgebra da Revolução”, e, para Lênin, a Grande Lógica de Hegel, a um só tempo o organon (instrumento de conhecimento) e a ontologia de seu Idealismo transcendental, é a chave para entender O Capital. Chave sem a qual, Lênin conclui, ninguém o entendeu nas décadas que antecederam sua própria leitura dele.
Junto com nossa atenção ao texto de Marx, como adiantei, empreendo por aí, no O Avesso de Marx, uma “recondução’ de nosso Autor ao seu contexto filosófico de discussão – aquele da interlocução, formação e desenvolvimento de seu pensamento. Contexto que é inicialmente o movimento Jovem Hegeliano, ou Esquerda Hegeliana, em que, na Alemanha, em meio ao colapso do Cristianismo (ortodoxo), entre pensadores (como Goethe e Herder) e filósofos (como Hegel, Strauss e Feuerbach), disputa-se o sentido do Moderno e do Humano verdadeiro. E se faz isso em torno de ideias como autonomia, autoconsciência, gênero humano, criação etc., cujas interpretações que não interessassem ao Comunismo nosso Autor tratou de exorcizar como “ideologia”, isto é, basicamente, como idealismo subjetivo e como (quase-) religião.
De modo semelhante, mais adiante, na crítica da economia política, aquela disputa se dá em torno de ideias dominantemente não alemãs, mas britânicas, que envolvem centralmente o que Marx, no O Capital, critica como “robinsonada” (isto é, como individualismo anistórico e pré-social). E o que ele denuncia como a ilusão do fetichismo da mercadoria e, mais genericamente, do nível da circulação, isto é,o nível da aparência, na economia. Tais ilusões modernas correspondem, para Marx, ao “paraíso” da ideologia burguesa, agora inglesa e francesa, o “paraíso” onde imperam o liberalismo, os direitos humanos, o utilitarismo etc. No O Capital, Marx contrapõe tal esfera “individualista”, da aparência, do empírico, do engano, justamente à esfera da essência (social), de fundo, determinante, em que se dissolveriam aquelas quase-religiosas ilusões burguesas e pequeno-burguesas – ideológicas.
Trata-se da esfera em que se dissolveria a Ilusão geral, também o Cristianismo, como Marx constrói e decifra em O Capital, no que chega a parecer sua preocupação teórica central, como uma verdadeira “Teoria do Desconhecimento” de si mesmo dos homens, como se oferece em primeiro lugar no Cristianismo. Com o que podemos ver que o problema para Marx continua sendo aí o individualismo/subjetivismo moderno, para não dizer que continua sendo o “Self” moderno. Ele, entretanto, não vai repetir, no O Capital, simplesmente a acusação de idealismo histórico, que fez aos jovens hegelianos, na Ideologia), que, obviamente, ele sabe disso, não encaixaria tão bem em economistas e utilitaristas britânicos. Agora, quase ao contrário, Marx vai insistir na acusação, a esses novos adversários, economistas, de não serem hegelianamente históricos, dialéticos.
Assim, depois dos seus acertos críticos, inicialmente “feuerbachianos”, contra Hegel, e, logo, depois, acertos críticos “hegelianos”, contra o próprio Feuerbach, foram o naturalismo amoralista de Stirner, e o kantismo liberal-republicano de Bauer Bruno, que mais ameaçaram Marx filosoficamente, segundo ele próprio diz, com relação a suas noções, robustas, de comunidade, objetividade, substância, essência etc., que seu Comunismo cobra. É bem o mesmo materialismo histórico, dialético, entretanto, que Marx levará adiante, com avesso e tudo, no O Capital, como já apresentei mais acima, contra a economia política burguesa. Como uma crítica que ainda se põe como coextensiva à própria religião, o Cristianismo. É tudo isso que fica bem explicado, desdobrado e demostrado no Avesso de Marx.
Notas:
1 Ver meu O Avesso de Marx, Ed. Ateliê de Humanidades, R. J., 2024. Na Ateliê: https://ateliedehumanidades.com/produto/o-avesso-de-marx-jose-crisostomo-de-souza/?utm_source=chatgpt.com. Na Amazon: https://www.amazon.com.br/avesso-Marx-conversas-filos%C3%B3ficas-filosofia/dp/6586972264?utm_source=chatgpt.com/.
2 Sobre isso, está no prelo nosso Para além de Marx, Foucault, Teoria Crítica (Ateliê de Humanidades, 2025).
Sem publicidade ou patrocínio, dependemos de você. Faça parte do nosso grupo de apoiadores e ajude a manter nossa voz livre e plural: apoia.se/outraspalavras