Ouvir (e salvar) as crianças, para nova Educação

Todos atravessamos o momento em que não havia fronteiras entre viver e aprender. A escola precisa disso, para deixar de ser formal e arcaica. E a mudança requer não os mercados, mas os saberes irreverentes do ativismo e da infância

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Por Antonio Lafuente, em El Diario de la Educación | Tradução: Simone Paz

Para pensar no ensino, nas aulas, não é preciso formar nenhum pelotão de fuzilamento. Não precisamos “atirar” em ninguém, muito menos em professores. Ou seja, de modo algum, poderemos mudar a escola enquanto não confiarmos nos indiscutíveis artistas do milagre da aprendizagem. Não é preciso que ninguém nos explique isso, basta que alguém evoque esse sentimento, porque todo pai e mãe deve se lembrar do dia em que seus filhos aprenderam a ler. É muito gratificante vê-los progredir, mas eu gostaria de ter o dom da escrita para eternizar aquele momento em que a criança descobriu, conosco de testemunhas, que sabia ler e que tudo o que existe falava com ela e lhe oferecia um diálogo fascinante. Nossa gratidão às mestras [1] que souberam acompanhar esse processo tornou-se infinita.

Além de tudo falar com você, tudo também parece fazer sentido. Somos tocados pelo que ocorre, e ocorre que nos toca. Não há diferença entre estar na sala de aula e estar na vida. A continuidade é perfeita. Nossa vida é plena, porque ela não é feita de fragmentos que depois devemos organizar e conciliar. Não há nem dentro, nem fora. Aprendemos em qualquer lugar, com qualquer pessoa e em todos os momentos. A educação é expandida porque é onipresente, coletiva e comum. Ou, em outras palavras, não é um evento cerebral, individual ou formal. E isso torna os mestres essenciais. Podemos discutir sobre professores, mas nunca sobre os mestres. E isso é fácil de explicar, porque enquanto os primeiros se enxergam como transmissores dos saberes, os segundos são construtores de pessoas. Porém, o que desejo escrever não se refere a nenhuma disputa.

A sala de aula é sagrada em ambas as situações. Os conhecimentos especializados são os tijolos com os quais construímos o mundo que habitamos. Não contestamos a sua relevância, mas para percorrê-lo é necessária uma sabedoria que torne as nossas ruas acolhedoras. O mundo e a sala de aula se coproduzem e precisam um do outro. Sem mestres não há professores, assim como sem saberes não existe sabedoria. Sem mestres não há urbe e sem professores não há cidade. Mas o objetivo desses parágrafos não era elogiar a escola, e sim explorar sua permeabilidade com a vida.

Adoro essa escola sem fronteiras que as crianças inventam e gostaria de entender como é possível ampliá-la. Gostaria então de imaginar as crianças como facilitadoras. Temos muito que aprender com elas e acredito que devemos tentar. Supor que não é o acaso que governa suas vidas já é um gesto tão radical quanto poético. Sua energia, sua confiança e sua surpresa sempre foram exemplares. Só relembrar isso já é muito inspirador. Porém, também não quero falar sobre o óbvio.

O que me intriga, especialmente, é a fluidez do mundo das crianças, a capacidade de desafiar fronteiras, a habilidade para colonizar espaços ou a facilidade para conectar situações. Interessa-me essa escola que não distingue saberes nem exclui experiências, essa sala de aula que se abre para o exterior, que os alunos experimentam, e que se alimenta do exterior que as crianças habitam. Quero me aproximar dessa educação menor, seja pela idade dos destinatários ou pela qualificação de quem ensina. Não vou discutir o seu tamanho nem hierarquia, porque me interessa mais o que ela tem de admirável e exemplar.

Vou repetir de outro jeito. Fico fascinado pelo fato de não haver distinção entre aquilo que ocorre e aquilo que nos toca. Sinto-me atraído pela naturalidade com que a vida das praças é facilmente hibridizada com a vida das salas de aula. Devemos aprender a perguntar às crianças como elas fazem isso. Devemos consultá-las e ser afetados por suas respostas. Devemos transformar as crianças, como dizem agora, em co-designers: devemos ser menos paternalistas e mais afetuosos. Definitivamente, temos muito a desaprender.

A escola pode ser tornada permeável, porosa, se ela também olhar para outras fontes de inspiração. Vou citá-las de forma direta: os movimentos sociais deveriam fazer parte do sistema educacional. Movimento social é aquele nome genérico que damos a grupos de cidadãos, grupos de bairro ou associações de pessoas atingidas por alguma questão. Juntos, eles configuram uma espécie de sistema de alerta, que nos avisa a tempo sobre os problemas que nos dizem respeito. Eles atuam como catalisadores, naquela alquimia que regula as mudanças do nosso mundo. Também é verdade que a imprensa tende a retratá-los como agentes políticos ou, em outras palavras, como grupos que se dedicam a protestar contra tudo que parece injusto ou contra aqueles que desgovernam. Mas não é de política que eu queria falar neste texto.

Os movimentos sociais também podem ser vistos como agentes cognitivos, graças à sua capacidade de identificar novos problemas, fazer perguntas diferentes e obter outras respostas. Há anos eles transitam do protesto à proposta. Não é que eles tenham abandonado as formas tradicionais de luta (manifestações, greves, faixas, campanhas, murais ou comícios), mas que é cada vez mais frequente vê-los em fóruns onde fornecem análises baseadas em evidências, a fim de desestabilizar o ponto de vista oficial, canônico ou hegemônico. Obviamente, eles não estão totalmente certos e, talvez, também não tenham os melhores dados. Ter certeza e dados são coisas que custa muito dinheiro e muito tempo. Eles não estão disponíveis para todos. Mas a fragilidade de suas abordagens não é sinônimo de loucura nem manipulação; é antes expressão de sua heterogeneidade e, por consequência, do caráter provisório, incompleto e, em suma, improvável do conhecimento de questões complexas. Enfim, motivos para alguns desconfiarem e outros reclamarem, não faltam. Mas, também, não é de epistemologia que queremos falar.

Os movimentos sociais nos mostram onde o nosso mundo sangra e quais as soluções provisórias — ou, pelo menos, nos convidam a termos essas conversas necessárias. São atores tão limitados quanto relevantes. Nenhuma organização sã ignora as pessoas que discordam, e elas fazem da governança uma forma de incorporar a diferença. Assim, a diferença passa a ser tratada como um estranho tipo de empreendedorismo que mobiliza outras sensibilidades e novos saberes. Em termos históricos, os ativistas têm o mérito de terem nos mostrado que era urgente ampliar o espaço público e torná-lo mais inclusivo, acolhedor e equilibrado. E hoje em dia, tempos em que amamos falar sobre inovação, seria justo dizer que nosso mundo tem uma dívida impagável com eles, e que deveríamos fazer muito mais para reconhecê-la. Mas não é sobre história que quero falar.

Houve uma época em que sabíamos incorporar a gestão das escolas aos sindicatos e, depois, às famílias; hoje, não deveria tardar tanto a incorporação da sociedade civil organizada, daquilo que também chamamos de terceiro setor e que antes identificamos como ONG. Já o dissemos e o repetiremos. O que nos interessa sobre eles é sua capacidade de identificar problemas, ouvir os afetados, articular o descontentamento, reunir informações, documentar processos, contrastar opiniões, isolar prioridades, produzir dados, medir consequências, medir impactos, oferecer soluções e, por fim, mediar conflitos. É um erro enxergá-los apenas como agência política. Mas não é da cegueira de nossas instituições que nos propusemos a falar.

Uma escola disposta a se abrir ao exterior teria que considerar seriamente as duas possibilidades: a de ouvir as crianças e a de engajar os ativistas. Não se trata de infantilizar ativistas, nem de mortificar as crianças. Não queremos o pior dos dois mundos, e sim o que eles podem trazer para contribuir e tornar a relação entre a escola e seu ambiente mais fluída e realista. Trazer essas inquietações da vizinhança para a sala de aula, da mesma forma que as crianças levam suas conversas do tobogã para a escola. E, claro, seria ótimo se os encontros não fossem pensados ​​como uma transferência de conteúdo, ou como aquilo que, com alguma grandiloquência, chamamos de consciência cidadã. Tornar a escola mais mundana não significa torná-la inútil. Lembremos que queremos fazer tudo isso juntos com as mestras, e estas mulheres não se deixam enganar nem seduzir pela retórica que nos cerca. Mas não são os manipuladores que eu queria evocar.

Os contos de terror sempre foram grandes ativadores da imaginação das crianças, mas abusar desse recurso seria bem sádico. O mundano pode ser um território fértil. Provavelmente, havia muita leveza e muita generosidade nesses encontros de saberes, mundos e aspirações. Nada nos obriga a imaginar mundos que para ser melhores tenham de ser entediantes, rigorosos e discriminatórios. Podemos tentar fazer da abordagem ao meio ambiente algo divertido, provisório e empático. Os ativistas não têm licença para aborrecer, nem mais privilégios do que banqueiros e juízes para compartilhar o que sabem, e sufocar assim a nossa já reduzida capacidade de assombro. Mas não era sobre atores de stand-up nem comediantes que queríamos conversar.

Queríamos levantar novamente a necessidade de abrirmos a escola. Queríamos que essa abertura não fosse desenhada pelos pedagogos, mas pelos visionários do tobogã e pelos empreendedores das praças. Queríamos que crianças e ativistas fossem os agentes da mudança. Queríamos que essa conversa não demorasse e fosse garantida pelas nossas mestras. Queríamos homenageá-las mais uma vez, e dizer que sempre confiaremos nelas. Também queríamos reconhecer a dívida que temos com os ativistas de todos os tempos, lutas e lugares. Queríamos dizer àqueles que chegaram até aqui que esta conversa não é uma reflexão febril de última hora. Queria dividir com vocês que tudo o que eu falei, aprendi no MediaLab-Prado e que ele, e tudo isso, funciona. Mas, finalmente, queria prestar homenagem a essa instituição, atualmente ameaçada em Madri, e que merece toda a nossa admiração. Eu queria falar sobre brokers, mas meus olhos se encheram de lágrimas.

[1] Optamos por traduzir “maestras” por “mestras”, para diferenciar de “profesores” / “professores”, termo também usado no texto. “Maestras”, em castelhano, refere-se à professora primária, especialmente a que alfabetiza. Também respeitamos a opção do autor, de se referir à profissão no gênero feminino.

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2 comentários para "Ouvir (e salvar) as crianças, para nova Educação"

  1. José Mario Ferraz disse:

    Realmente, as crianças precisam ser resgatadas de um mundo de mentiras e conduzidas para a realidade. Não há limite para a maldade de ensinar às crianças que seu bem-estar e segurança dependem de deus se o mal-estar e a segurança dos representantes de deus encontram solução nos hospitais, carro blindado, grade de ferro e homens armados. A observação de Platão de que o rumo indicado à criança pela educação determina o destino do adulto, se analisado, leva à conclusão de ser criminosa a educação da cultura capitalista transformando crianças em religiosos, ladrões, torcedores, carnavalescos e reis de pau-oco, isentos do sentimento de solidariedade em função da necessidade de riqueza incutida no “tempo é dinheiro” que é a característica desta cultura.

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