Notas sobre a esquerda latino-americana
Breve análise de sua trajetória nos últimos 30 anos. Fim da URSS fez muitos rejeitarem o marxismo. Partidos tenderam ao centro. Onda rosa apostou no desenvolvimentismo, identidades culturais e retórica frágil anti-EUA – mas se esqueceu dos horizontes utópicos
Publicado 29/05/2025 às 15:59

O desmoronamento da maioria dos Estados burocráticos, no começo da década de 1990, foi um dos fatos mais marcantes do final do século XX. Embora tenha sido um processo de vários anos, que passa por crises em países como China e Alemanha Oriental e pelo desmantelamento da União Soviética, reverberando também algumas rebeliões nas décadas anteriores em países como Tchecoslováquia e Polônia, possivelmente o evento simbólico mais lembrado é a chamada queda do Muro de Berlim, em 1989. Construído em 1961, dividindo a cidade de Berlim, o muro foi um dos principais símbolos das disputas políticas ao longo do século XX. Essa disputa, que se desdobrou desde o final da Segunda Guerra Mundial, foi marcada por embates retóricos, diplomáticos e, em alguns casos, militares, conhecida como Guerra Fria.
Embora a queda do Muro de Berlim seja o evento mais importante de um ponto de vista simbólico, o acontecimento de maior impacto político foi a queda do governo da burocracia stalinista na União Soviética. Esse processo impactou as esquerdas, em especial os setores mais afinados com a política desenvolvida pela União Soviética e por seus satélites.
Embora fossem repúblicas controladas por uma burocracia, cujo regime político não estava estruturado em organismos de poder dirigidos pelos trabalhadores, no cenário de disputa mundial acabavam reunindo em torno de si a maior parte das tendências teóricas e políticas à esquerda. Esses regimes, independente do modelo que construíram, mostravam que era possível expropriar o capitalismo e, a partir disso, iniciar a construção de uma nova sociedade. Embora não sejam nem simples nem fáceis as explicações para esses regimes de transição não terem avançado ao socialismo, sabe-se que os fatores passam necessariamente pelas derrotas da revolução em diversos países e pelas opções políticas das direções dos processos revolucionários.
O fim de quase todos esses países que expropriaram o capitalismo e levaram ao poder partidos que se reivindicam socialistas ou mesmo comunistas permite pensar diferentes elementos importantes para compreender o período posterior a 1989. O período está marcado por um avanço brutal do capitalismo, que, por meio de seus organismos internacionais e governos nacionais, impõe um modelo econômico de aprofundamento da dominação dos países, pela privatização de serviços e empresas públicas e pela flexibilização de direitos dos trabalhadores, em especial aqueles associados ao welfare state, como os trabalhistas e previdenciários. Em diversos países foram realizadas reformas dos mais variados tipos, buscando reduzir gastos com serviços e ampliar o apoio financeiro a empresas e bancos.
No âmbito da esquerda, a crise dos países governados pela burocracia stalinista impactou o desenvolvimento teórico. O marxismo acabou sendo associado, de maneira bastante equivocada, aos regimes políticos autoritários que ruíram no Leste Europeu e na União Soviética. Em todo o mundo, na década de 1990, a maioria da intelectualidade, inclusive parte dos que se colocavam como de esquerda, aderiu à propaganda conservadora que apresentava o marxismo como algo nocivo e que deveria ser combatido. Conceitos centrais do marxismo, como luta de classes e modo de produção, passaram a ser atacados como obsoletos e insuficientes para analisar a realidade histórica. O passo seguinte foi negar a existência inclusive das classes sociais, ainda que cotidianamente trabalhadores em todo o mundo tentassem resistir à ofensiva capitalista.
Produto dessa crise foi também o recuo da utopia. No contexto de queda dos aparatos stalinistas, muitos declararam o fim do socialismo ou mesmo o “fim da história”. Nessa lógica, os regimes construídos no Leste Europeu teriam sido exatamente o que havia previsto Marx (mesmo que sejam raros os seus escritos que descrevem uma sociedade futura) e sua queda seria a prova de que sua utopia teria se mostrado um grande desastre para a humanidade. O comunismo, confundido na retórica reacionária com os regimes controlados pela burocracia stalinista, seria impossível de ser alcançado e, por isso, todos deveriam aceitar o capitalismo como realidade social e histórica para a humanidade.
Outro elemento evidente foi a profunda mudança ocorrida em numerosos partidos comunistas, que passaram para o campo do centro ou mesmo da direita, como no Brasil e na Itália. Outro elemento foi a migração da maior parte dos partidos de tradição social-democrata ou trabalhista para a defesa da exploração capitalista, abandonando até mesmo a perspectiva de reformas, em vários países fazendo governos que aplicaram projetos de interesse da burguesia, como ocorreu na Inglaterra. Percebe-se também casos de partidos que, mesmo não sendo de uma tradição comunista ou social-democrata, mas que tiveram expressiva importância em lutas dos trabalhadores e em outro momento defenderam uma perspectiva nacionalista, passarem ao terreno das reformas estruturais impostas pelo imperialismo, como na Argentina e no México.
Na América Latina, diante da crise das principais organizações vistas pelos trabalhadores como seus representantes políticos, foram construídas novas organizações de importante relevância social e política. O zapatismo no México se constituiu logo no começo da década de 1990. No mesmo período também houve o crescimento do PT no Brasil, paulatinamente aumentando sua atuação parlamentar e vencendo as eleições presidenciais de 2002. O PT, dessa forma, ocupou um protagonismo que outrora tinha sido de trabalhistas e de comunistas. Na Argentina, em 2003, uma versão renovada do peronismo ganhou as eleições e diminuiu a instabilidade política pela qual o país vinha passando desde os anos anteriores. Fazem parte desse contexto também diferentes governos, normalmente adjetivados como “progressistas”, no Equador, no Uruguai, na Colômbia e no Peru, além das sucessivas vitórias de uma esquerda mais tradicional no Chile.
O protagonismo desse contexto coube a uma das mais profundas tentativas de construir um novo projeto político. Na Venezuela, Hugo Chávez encabeçou um projeto que chamou de “socialismo do século XX”, apontando para uma alternativa política com elementos nacionalistas, mesmo diante de um cenário marcado pelo avanço dos interesses do imperialismo. O processo conhecido como “revolução bolivariana”, mesmo sem romper com o capitalismo, avançou em importantes reformas sociais e colocou em cena setores da classe trabalhadora organizada.
Na Bolívia, no mesmo sentido, além de reformas importantes, Evo Morales apostou na construção de um Estado que respeitasse a diversidade política e cultural do país. O movimento político organizado em torno do presidente mostrava características bastante particulares, em que a ideia de classe se mostrava bastante imprecisa. No movimento cocalero, desde sua conformação em defesa dos interesses imediatos, observou-se a organização das suas ações em direção à criação de uma centralidade não de classe, mas de identidades culturais e policlassistas.
Embora essas organizações e projetos políticos não se propusessem a romper com o capitalismo, a América Latina se viu movimentado por mobilizações sociais e políticas e governos que apontaram para a necessidade de construir uma alternativa que, mesmo não sendo necessariamente socialista, mostravam no mínimo uma perspectiva de tentar um desenvolvimento autônomo de suas economias, colaborando entre si e com países da África e da Ásia. Contudo, esses movimentos e organizações foram vítimas de seus próprios limites, sendo possível na atualidade ver a crise ou mesmo a degeneração desses setores em países como Bolívia, Equador e Venezuela.
As formas tradicionais de organização também foram transformadas ou mesmo superadas. Os presidentes Hugo Chávez e Evo Morales dirigiram, de início, movimentos que posteriormente viriam a se transformar em partidos. Em 2000, no Equador uma ampla frente de setores populares chegou ao poder por meio do Parlamento dos Povos, ainda que esta tenha sido uma experiência efêmera. Muitas das políticas dos governos considerados “progressistas”, como os de Lula no Brasil, foram elaboradas e discutidas no interior do movimento antiglobalização, em espaços de lutas e debates de trabalhadores de todo o mundo, e que ganharam mais corpo nas sucessivas edições do Fórum Social Mundial.
No período posterior ao final da União Soviética, os grupos marxistas se limitaram a pequenas e cada vez mais fragmentadas organizações. Essa condição, em grande medida, tem relação com sua falta de enraizamento na classe trabalhadora, o que leva muitos desses grupos a buscar se construir dentro de partidos eleitorais. Muitos desses grupos marxistas participaram da construção de partidos de vanguarda organizados de forma ampla, reunindo um campo genericamente anticapitalistas, como é o caso do PSOL, no Brasil. Possivelmente a única exceção a essa tendência se deu na Argentina, onde dois partidos independentes, o PTS e o PO, aliados a outros grupos menores, alcançaram uma importante inserção no movimento de trabalhadores, construindo uma aliança eleitoral que ainda perdura e que vem conquistando importantes votações eleição após eleição.
No período posterior ao fim da União Soviética, se percebe na esquerda latino-americana uma tentativa de encontrar novos caminhos tanto organizativos como teóricos. Uma forte marca de todas essas organizações e projetos políticos continua a ser o anti-imperialismo, em especial no enfrentamento direto com os Estados Unidos. Em termos estratégicos, consolida-se o abandono quase completo da perspectiva socialista, buscando-se utopias ou embasadas na diversidade de tradições culturais, como se percebe na experiência boliviana, ou em uma estratégia nacionalista, como na Venezuela. O discurso socialista continua principalmente no programa de pequenos grupos marxistas, bem como quando se faz menção à defesa de Cuba, mas está longe de ter alguma relevância nas discussões mais amplas das organizações dos trabalhadores.
Portanto, é preciso refletir acerca dessas questões mostrando as alternativas teóricas e políticas que foram debatidas e construídas nos últimos trinta anos na América Latina. Os trabalhadores seguiram se mobilizando, construindo novas organizações, organizando suas próprias mobilizações e reelaborando táticas e estratégias políticas. Diante disso, é possível analisar suas perspectivas teóricas e propostas programáticas, problematizando sua caminhada e, também, os passos que podem apontar para o futuro.
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