Nós e o cyborg. Minorias e políticas da identidade
A fragmentação favorece “neutralizar as diferenças”. Mudam a população de referência, as técnicas de governo, as políticas identitárias e a configuração das minorias. Completa-se o projeto do neoliberalismo: a individualização das políticas deve visar a subtração de referências coletivas
Publicado 28/03/2025 às 17:14 - Atualizado 29/03/2025 às 10:37

O devir da minoria
Numa entrevista de Toni Negri com Gilles Deleuze, publicada na revista Futur Antérieur em 1990 e posteriormente incluída em uma coletânea de textos de Negri lançada pela editora brasileira Politeia com o título Deleuze & Guattari, uma filosofia para o século XXI, Deleuze fala sobre o que significa ser minoria.
Se a maioria “é um modelo ao qual ela mesma deve se conformar, por exemplo, o europeu médio, adulto, homem urbano etc.”, uma minoria “não tem um modelo, é um devir, um processo”. Mais do que uma diferença numérica, o que distingue a maioria da minoria é a diferença entre o progresso da história e o evento: a primeira segue dentro do pentagrama da história, enquanto o segundo representa a variação, a fuga desse sistema de notação.
Uma minoria assume uma forma visível dentro de uma contradição no cenário de referência do modelo maioritário. É um devir num processo que, ao se situar na base dessa contradição, a antecede, não é sua consequência. A paixão marxiana, por exemplo, é “a irrupção sensível da atividade do meu ser”, como escreve Marx nos Manuscritos de 1844. Como consequência da relação entre homem e natureza, homem e mundo, a paixão funda a atividade a partir de sua anterioridade, produzindo uma resistência à história que busca distorcer essa relação. O tornar-se minoria desse processo gera a emergência de um “evento” que, ao problematizar a estrutura de verdade maioritária, marca a torção de que fala Deleuze e pretende imprimir um desvio ao fluxo da história.
Uma evidência disso pode ser encontrada na relação entre línguas que coexistem num mesmo contexto. Usar uma língua menor é viver uma paixão primária, é um evento que desmonta os princípios fundadores das modalidades comunicativas e normativas da “língua maior” dominante e imposta. Usar uma língua diferente da maioritária, expressar o próprio ser minoria, implica adquirir um nome, ser reconhecido por meio desse meio. Em outras palavras, trata-se da ordem “policial” que define o jogo das partes, pronta para dar lugar à “política” como “questionamento da ordem”, como afirma Marramao em Contro il potere.
Um exemplo disso está em Quarto Século, de Édouard Glissant. Ali, o autor descreve de forma memorável o uso das línguas em um contexto colonial no diálogo entre o latifundiário escravocrata La Roche e o marron Longoué, um escravizado fugitivo que se refugiou na floresta. Com o uso de uma língua que não é a imposta pelo poder colonial, Longoué destrói a “partição do sensível” que esse poder havia estabelecido. La Roche é forçado a aceitar um diálogo que não estava previsto e, com ele, um novo ordenamento, no qual o escravizado passa a ser reconhecido como um ser consciente e falante. Longoué cria — e é-lhe reconhecida — a sua própria posição como segundo foco da elipse que substitui o círculo monofocal, única expressão, até então, do saber e do poder encarnado por La Roche.
Maioria e minoria, portanto, vivem uma relação íntima com o saber hegemónico que se torna poder, ao qual a minoria é reconduzida pelas regras da “polícia”, como afirma Rancière: existes enquanto minoria, tens um nome, tens direito à palavra e estás sendo falado enquanto tal.
A existência de uma minoria é, assim, definida pela ordem policial dos corpos, que lhe atribui ou reconhece um nome, fala sobre ela e lhe permite falar: quem não tem nome pertence àquela zona marginal dos “sem parte”, onde reina apenas o estigma, o incontemplável, o ruído em vez da palavra.
A “política”, por outro lado, problematiza essa ordem “policial”, “desloca um corpo de um lugar que lhe havia sido atribuído ou altera a destinação de um lugar”. Produz uma fratura nas partes, desloca ainda mais a fronteira entre o visível e o invisível.
É nesse limiar que se inserem as políticas da identidade. Elas representam o instrumento que permite governar os corpos na variabilidade das distinções entre visível e invisível, entre voz audível e ruído de fundo (entre quem se faz viver e quem se deixa morrer, diria Foucault). As políticas da identidade atuam no momento em que as minorias se manifestam nessa fratura.
Os exemplos em nosso tempo são incontáveis: desde as distinções entre migrantes, por exemplo, até aquelas referentes aos direitos civis ou a qualquer outro campo (educacional, habitacional, laboral, sexual etc.), onde o poder capitalista combina “o governo das desigualdades […] com a produção e o governo dos modos de subjetivação”, como escreve Maurizio Lazzarato em Enunciação e política. Uma leitura paralela da democracia: Foucault e Rancière.
As políticas da identidade, incluir diferencialmente
As políticas da identidade colocam de maneira evidente o problema da ordem: problematizam a ordem que parece inscrita na suposta naturalidade do elemento identitário de um sujeito (a ordem “policial”), reescrevem a trama que compõe a estrutura das relações, dos conflitos entre as identidades e entre estas e o poder. No lugar dessa ordem, as políticas da identidade definem relações, posicionamentos, elementos de força contratual; definem relações de poder.
Longe de se ocuparem apenas em tornar os sujeitos “dóceis”, as políticas da identidade têm como objetivo a produção de “coerências identitárias” baseadas em práticas de cristalização, imposição e indução, “produzidas por um Estado que só pode conceder reconhecimento e direitos a sujeitos totalizados”, incluindo, e sobretudo, aqueles pertencentes a diferentes minorias, como escreve Haider em Mistaken Identity.
O objetivo dessas políticas, portanto, não é apenas ou necessariamente a produção de identidades como resultado de um processo de sujeição não problemático e maioritário. Elas devem incluir – de maneira diferenciada – identidades e reivindicações de qualquer minoria nos discursos que legitimam e viabilizam o sistema que as reconhece.
Nesse sentido, a identidade se associa à ideia de “trabalho morto”. Para que as normas se reproduzam com os menores “custos” possíveis, as identidades devem ser incorporadas ao ciclo produtivo do sujeito, favorecendo a identificação do indivíduo com algo já disponível e previsto. O suporte ativo que a identidade fornece ao dispositivo normativo é o “trabalho excedente”, o valor adicional que o sistema obtém no processo produtivo do sujeito.
Para que isso seja possível, duas condições devem ser satisfeitas. As políticas da identidade devem considerar tanto os indivíduos quanto as formas coletivas. Além disso, devem possuir o caráter de políticas voltadas a indivíduos “livres”. As democracias liberais, aliás, encontram nesses dois pontos a sua legitimidade histórica.
Ocupar-se simultaneamente do indivíduo e do coletivo é a função do governo das vidas. A racionalização da ação governamental permite essa via dupla, na qual o poder passa de “microfísico” a institucional. É aqui que as políticas da identidade demonstram toda a sua eficácia e seu papel como um instrumento poderoso a serviço da biopolítica.
Mas isso ainda não é suficiente: os indivíduos devem perceber-se como “livres”, devem sentir-se considerados livres para serem submetidos a essas normas e para se subjetivar dentro delas em diferentes graus de igualdade.
A identidade e as políticas da identidade, mais do que ligadas a uma ideia de poder absoluto e totalizante, constituem o produto (a primeira) e a técnica (as segundas) de um poder que assume a forma de governo dos seres vivos dotados de um nome. Em O Sujeito e o Poder, Foucault afirma que “governar, nesse sentido, é estruturar o campo de ação possível dos outros”; para que isso seja viável, o indivíduo deve ser “livre”, pois, no jogo que se estabelece entre poder e liberdade, esta última “aparece, de fato, como uma condição para o exercício do poder”.
Há um outro aspeto que as políticas da identidade, na sua relação com as minorias, nunca deixam de considerar: a função constitutiva do desejo na definição da relação entre o “eu” e o “outro”, sendo que esses termos podem se referir tanto a entidades individuais quanto coletivas.
O desejo e a paixão marxiana mencionada anteriormente são duas coisas diferentes: o primeiro é induzido, a segunda é anterior.
Afirmar que o sujeito, por meio da identidade à qual adere, deseja o desejo do Outro (no sentido de que esse desejo pertence ao Outro) significa enxergar-se no lugar onde se está posicionado por meio da sujeição e, a partir disso, formular um pedido de reconhecimento enquanto ser que adere a um projeto.
Tomemos, por exemplo, uma minoria religiosa. A manifestação do desejo de praticar a sua fé de determinada maneira é induzida pelo desejo do Outro, de modo que essa minoria religiosa pode se expressar apenas na medida em que não interfira ou choque a sensibilidade dos pertencentes à religião majoritária. Isso significa, no caso da religião muçulmana, a proibição de minaretes nos locais de culto urbanos, a ausência de chamadas para oração por meio de alto-falantes, o controle dos sermões do imã, entre outras restrições.
No momento em que a minoria demonstra aderir a esse desejo e o transforma em sua própria reivindicação, ela não está agindo movida por paixão, pois, caso contrário, essas restrições lhe seriam incompreensíveis. Ela está operando de acordo com as lógicas definidas pelas políticas da identidade, que estabeleceram o nível diferencial de sua inclusão, induzindo um desejo que corresponde a normas específicas.
Na medida em que a minoria age não mais por força de uma paixão, mas segundo as lógicas desejantes definidas pelas políticas da identidade, o processo que levou ao devir-minoria é reinserido na mediação dialética das “fraturas compostas”, nas técnicas de “ortopedia social”. A sujeição atingiu seu objetivo, e a subjetivação se estrutura com base nesses pressupostos, mesmo quando assume um caráter antagonista.
Identidade e minorias no tempo do cyborg
Que a digitalização das vidas modifica a constituição dos sujeitos e sua representação identitária é algo amplamente reconhecido. Ela altera os pressupostos e as formas pelas quais essa relação se estabelece, acelerando e simplificando o processo, de certa forma. A objetivação do indivíduo ocorre em um ritmo diferente de sua subjetivação; são produzidas transformações de tal magnitude que permitem prever uma “redução da espécie humana a material de experimentação”, escreve Rocco Ronchi na Doppiozero.
A velocidade dos processos em que o indivíduo está inserido, como objeto de experimentação de técnicas que vão desde as tendências de consumo até as respostas a estímulos ético-políticos, o transforma em um sujeito parcialmente consciente ou interessado em seu próprio papel como produtor de dados, treinador de algoritmos, matéria-prima insubstituível e inesgotável do capitalismo digital. “O extrativismo do conhecimento e o colonialismo epistémico”, como um “projeto de mecanização da razão humana”, segundo a síntese precisa de Joler e Pasquinelli na L’Indiscreto, parecem não ter freios nem sofrer contragolpes. Se acreditássemos que não há escapatória para esse destino da humanidade, sob os golpes implacáveis do turboliberalismo das elites “siliconadas” que impulsionam cada vez mais esse projeto, talvez fosse melhor acelerar nossa extinção ou ao menos não tentar impedi-la.
A pervasividade das técnicas adotadas por essas elites é tão profunda que chega a agir no inconsciente offline de nossas consciências, segundo uma descrição precisa do sociólogo brasileiro Miskolci na revista Cult. É nesse nível profundo que se realiza o aspecto mais sofisticado da transformação da espécie humana em corpos disponíveis para experimentação. A todo o momento, em qualquer parte do dia, somos constantemente testados sobre onde conseguimos focar nossa atenção e como podem induzir, articular e modificar os nossos desejos.
Quem tem familiaridade com as redes sociais (praticamente todos nós) sabe que é nelas que o nosso desejo se torna o desejo do outro, sob diversas formas. A identidade que projetamos nos diferentes grupos sociais é fruto de uma produção contínua do desejo de identidades — temporária, fluida e múltipla — que se combina perfeitamente com aquilo que os grupos aos quais pertencemos expressam como desejo, dependendo disso.
Com a difusão generalizada das redes sociais, e especialmente desde que começamos a virar a câmara para nós mesmos (mais uma observação perspicaz de Miskolci), inicia-se o declínio do mundo totalmente analógico, ainda dominante na época da entrevista de Deleuze. Desenvolve-se uma coexistência entre o digital e o analógico, com nuances que variam ao longo do tempo, cada vez mais favoráveis ao primeiro, ao qual a inteligência artificial impôs uma aceleração brutal. Isso marca uma ruptura definitiva: o lugar do ser humano como sujeito e objeto de conhecimento, que dominou a cena epistemológica nos últimos dois séculos, é ocupado por uma nova entidade: o homem-máquina. Trata-se de uma mutação antropológica irreversível.
No “infinito limitado” no qual nos movemos sempre que abrimos uma caixa de diálogo para interrogar um sistema de IA sobre qualquer assunto, experimentamos diretamente como está a ser modificado o nosso investimento na capacidade de pensamento autónomo, elaboração, aprendizagem e crítica. Isso é uma consequência direta do extrativismo e do colonialismo praticado pelas grandes corporações transnacionais de tecnologia, como apontam Joler e Pasquinelli.
A transformação em curso atinge um nível ainda mais profundo, afetando as propensões às relações pessoais induzidas pelos múltiplos instrumentos de conexão virtual, que nos permitem, em qualquer contexto, gerenciar essas relações a partir dos nossos ecrãs, com poucos ou nenhum contato “analógico”. O extrativismo também penetra na esfera emocional e erótica da componente humana dessa nova entidade, como antecipado no filme visionário Her, de Spike Jonze, lançado no já (tecnologicamente) distante ano de 2013.
Pensar as questões relativas à subjetividade e identidade exigirá, portanto, necessariamente uma referência ao homem-máquina.
Donna Haraway aborda esse tema de maneira convincente em seu Cyborg Manifesto. “Um cyborg — escreve a filósofa e feminista americana — “é um organismo cibernético, um híbrido entre máquina e organismo, uma criatura da realidade social e uma criatura da ficção”. O que impressiona nessa definição é a continuidade que a autora estabelece entre realidade e ficção. Derrubar a barreira entre essas duas esferas da vida descreve perfeitamente um dos pilares do capitalismo contemporâneo, ou ciber-capitalismo, onde essa fronteira nada mais é do que uma “ilusão ótica”.
Para Haraway, o cyborg representa uma identidade híbrida, que rejeita as dicotomias entre homem e mulher, natureza e cultura, humano e máquina, favorecendo uma visão de identidades múltiplas, fragmentadas e parciais.
Resta entender o que significa ser minoria e quais políticas identitárias são aplicadas no mundo do cyborg. Um ponto de reflexão pode ser a maneira como a “diferença” se estrutura e se há discontinuidade em relação ao modelo que nos é familiar, onde diferenças e minorias se refletem mutuamente, com as desigualdades a marcar o traço comum das reivindicações que atravessam todo o corpo social.
A digitalização parece operar uma partição diferente naquilo que Étienne Balibar, no seu livro Os Universais, chama de “diferenças de primeiro grau”, ou antropológicas, e, consequentemente, nas “diferenças de segundo grau”, que correspondem ao resultado da exploração das primeiras, a partir das quais se origina uma hierarquização social e política das próprias diferenças.
A impressão que se tem é que, no mundo do cyber-capitalismo, tende-se a atenuar as diferenças de primeiro grau que criam conjuntos (idade, religião, género, etnia, orientação sexual, etc.), nos quais historicamente se formam as minorias coletivas.
A multiplicidade, fragmentação e parcialidade das identidades que caracterizam o homem-máquina favorecem a “neutralização das diferenças” antropológicas de grupo, empurrando-as para uma individualização na qual dificilmente podem ser reconhecidas como tais e funcionar como motor para formas de agregação. No centro das experimentações do governo das vidas estão as individualidades na forma do homem-máquina, cujo contentor já não pode mais ser a “população”, como Foucault a concebia. Trata-se de um conjunto heterogêneo de corpos e máquinas que se interseccionam em áreas geográficas não pré-determináveis, atravessando fronteiras nacionais e continentais, movendo-se ao longo das trilhas migratórias das pessoas, do capital, das infraestruturas, das tecnologias e das guerras.
Um gig worker, um rider, um operador de armazém da Amazon na Itália tem mais experiências em comum com um seu colega na Índia do que com um operário metalúrgico ou um artesão de um distrito industrial da mesma cidade.
Muda a população de referência, mudam as técnicas de governo, mudam as políticas identitárias e a configuração das minorias. Completa-se o projeto do neoliberalismo: a individualização das políticas deve visar, tanto quanto possível, a subtração de referências coletivas. É aqui que entra em jogo um elemento central na definição das identidades e das políticas que as governam: a solidão.
Solidão entendida como “ser sozinho/a”, mais do que “estar sozinho/a”. Parte-se da segunda, como uma escolha de vida desvinculada de laços compulsórios, e chega-se à primeira, como uma condição existencial masturbatória de ausência de relações solidárias, de compartilhamento de escolhas e estratégias. Torna-se uma minoria atomizada, disfarçada na rede por relações de reconhecimento recíproco tão frágeis quanto temporárias. É a isso que almeja o “muskismo” e seus seguidores em todas as latitudes e longitudes.
Imaginar uma subjetividade que se produz apenas ou principalmente no desejo e na solidão faz pressagiar tempos muito sombrios, nos quais tudo é percebido como uma distância intransponível, tanto física quanto emocional. A isso se acrescenta uma vivência temporal que esmaga passado, presente e futuro em uma eterna imediaticidade do sujeito, que consegue encontrar apenas momentos de “gozo” espontâneo, os quais rompem, por um tempo brevíssimo, a cadeia desejante sem fim.
Por sorte, muitos ainda encontram forças para resistir a essa tendência aparentemente irreversível, com os meios que consideram mais adequados: desde os estivadores do CALP (Coletivo Autónomo dos Trabalhadores do Porto de Génova) que bloqueiam os navios da morte, passando pelo rapper da Amazon “AleMan”, que transforma sua vida em rima, até as milhares de iniciativas que, todos os dias, reafirmam a persistência de uma paixão que, ao menos por hoje, mantém o abismo à distância.
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