Minerar o universo, a última fronteira?

A nova obsessão capitalista é explorar Lua e asteroides. Gurus do mercado a anteveem e corporações tentam materializá-la. Mas ainda falta tecnologia. Por isso, confunde-se ficção com ciência, no delírio de um dia privatizar (também) o cosmos

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Por Marco D’Eramo, no El Salto | Tradução: Rôney Rodrigues

A megalomania do ser humano não conhece limites — assim como também se suspeita da sede e ganância ilimitadas de poder de seus semelhantes (ou dela própria, a megalomania?). Um exemplo recente disso, que passou despercebido durante este verão tórrido e neurótico, foi a estranha troca entre o administrador da NASA, Bill Nelson, e as autoridades chinesas. “Devemos estar muito preocupados porque a China está se preparando para pousar na Lua, enquanto afirma: ‘É nossa agora e vocês não devem interferir’”, alertou Nelson em entrevista publicada no Die Bild. Um porta-voz do Ministério das Relações Exteriores da China respondeu imediatamente : “Esta não é a primeira vez que o chefe da NASA mente descaradamente e calunia a China”.

A acusação de Nelson foi estranha, já que este dezembro marcará o 50º aniversário do momento em que alguém pôs os pés em nosso satélite. Desde então, a exploração da Lua foi delegada a pequenos veículos rastreados que se movem por seus montes rochosos. A China, afinal, só implantou um desses robôs, que viajou para o “lado escuro” da Lua em 2019, então a ideia de que poderia estabelecer controle exclusivo sobre uma área aproximadamente do tamanho da Ásia, suspensa no vácuo a temperaturas variando de 120 graus Celsius (durante o dia) a menos 130 graus Celsius (à noite), expostas à radiação cósmica e a mais de 384.000 quilômetros da base de suprimentos mais próxima, parece implausível.

A acusação era ainda mais absurda porque eram os Estados Unidos, e não a China, que planejavam lançar um foguete gigantesco ao espaço em 29 de agosto, destinado a permitir que uma pequena espaçonave não tripulada fizesse um pequeno número de órbitas lunares antes de regressar à Terra, tudo pela modesta quantia de US$ 29 bilhões. Seria a primeira etapa da missão Artemis, em homenagem à deusa grega da Lua e irmã de Apolo, o deus Sol, cujo objetivo é estabelecer até 2025 uma base de US$ 93 bilhões em nosso satélite. Em teoria, esse assentamento lunar um dia servirá como plataforma de lançamento para uma expedição humana a Marte.

A questão é: por que estamos interessados em fazer mais viagens à Lua? Em sua bem-sucedida viagem de 1969, os astronautas estadunidenses coletaram algumas pedras curiosas, e mas nada mais, tornando difícil encontrar uma justificativa científica para futuras missões. Pode haver um objetivo militar: não foi em vão que os Estados Unidos criaram, no final de 2019, o sexto braço de suas forças armadas, a Força Espacial, para gerenciar todas as atividades militares relacionadas ao espaço. Mas por que a Lua? Talvez para instalar uma base militar para ameaçar um inimigo na Terra? Com certeza bastaria usar os satélites que já estão em órbita, muito mais próximos, baratos e precisos.

Observadores cínicos como o Financial Times e o The Economist sugerem que essas missões nada mais são do que uma manobra para financiar a indústria de defesa e distribuir fundos para colégios eleitorais estratégicos. Esta última publicação informou que o Sistema de Lançamento Espacial (SLS), usado no projeto Artemis, foi apelidado de “Sistema de Lançamento para o Senado” porque sua tecnologia, derivada do extinto Space Shuttle Program (Programa de Ônibus Espacial), pretendia salvaguardar postos de trabalho no Alabama, onde a maioria de seus componentes foram fabricados.

Outra hipótese é que os Estados Unidos querem repetir o jogo que acabou provocando o colapso da URSS. A Iniciativa de Defesa Estratégica, ou o programa “Guerra nas Estrelas”, como era conhecido na época, era um sistema de defesa cósmico que nunca se concretizou, mas cuja busca deixou os soviéticos de joelhos. Para acompanhar a conquista estadunidense da Lua, a China teria que desviar recursos que colocariam sua economia em crise. Assim, os Estados Unidos convocaram seus vassalos – Canadá, Japão, Reino Unido e União Europeia – para participarem da missão Artemis.

Dado que todo este raciocínio parece algo forçado, o governo tirou um coelho da cartola para que esta despesa da Nova Guerra Fria não apareça ao público como algo realmente inútil, apresentando à opinião pública a miragem de uma possível exploração de minérios não só da Lua, mas também de asteroides. Nos últimos anos, vimos inúmeros gurus econômicos exaltando o potencial da indústria de mineração espacial. Nomes com grande prestígio do mundo das finanças começaram a patrocinar esta incipiente indústria. Em 2009, Larry Page e Eric Schmidt, do Google, se uniram ao diretor de cinema James Cameron e aos empresários aeroespaciais Eric Anderson e Peter Diamandis, entre outros, para fundar a Planetary Resources, uma empresa cuja missão final é extrair minerais de alto valor de asteroides e refiná-los em espumas metálicas, que poderiam ser enviadas de volta à Terra. Enquanto isso, em 2010, uma empresa semelhante, a iSpace, nasceu no Japão, afirmando o seguinte:

Ao aproveitar os recursos hídricos lunares, podemos desenvolver a infraestrutura espacial necessária para enriquecer nossas vidas diárias na Terra, bem como expandir nossa esfera de vida no espaço. Além disso, ao tornar a Terra e a Lua um sistema único, uma nova economia, com uma infraestrutura espacial em seu núcleo, se apoiará a vida humana, tornando a sustentabilidade uma realidade.

Desde então, empresas fantásticas desse tipo proliferaram. Em 2013, a Deep Space Industries Inc. desenvolveu um plano ambicioso para identificar asteroides adequados para mineração até 2015, ter a capacidade de enviar amostras de volta à Terra no ano seguinte e garantir o início de operações em larga escala em 2023. Logo depois, uma empresa californiana chamada OffWorld anunciou um grande plano para “desenvolver uma nova geração de robôs industriais universais encarregados de fazer o trabalho pesado na Lua, asteroides e Marte”. A empresa pretende que “milhões de robôs inteligentes trabalhem sob supervisão humana dentro e fora do planeta para tornar o sistema solar interno um lugar melhor, mais amigável e mais verde para a vida e a civilização” (sic!).

Em um relatório de 98 páginas para clientes, em 2017, o Goldman Sachs disse que a perspectiva de mineração de platina no espaço com “naves espaciais de captura de asteroides” era cada vez mais factível e previa lucros crescentes no setor. Seu rival, Morgan Stanley, seguiu o exemplo, enquanto a The Economist organizava space summits quase ininterruptamente, especialmente em 2018 e 2020. Quando esses bancos estimula seus clientes a investir nas indústrias de mineração espacial, e aí vale lembrar que foi o Goldman Sachs que administrou a dívida nacional da Grécia, praticamente duplicando-a no processo, significa que as grandes instituições financeiras são capazes de enganar seus clientes repetidas vezes — e espremê-los feito limões. No final, apesar das previsões dos bancos, a Deep Space foi vendida para a Bradford Space, uma empresa relativamente modesta de sistemas de voo orbital e componentes de aeronaves, enquanto a Planetary Resources foi liquidada e seus ativos leiloados. No entanto, as ilusões têm suas teimosias: em janeiro de 2022, foi fundada a AstroForge, outra empresa californiana que afirma ter desenvolvido uma nova tecnologia testada em laboratório para processar materiais provenientes de asteroides.

Onde estaria a ficção científica sem a mineração espacial? De Ellen Ripley em Alien e Dave Lister em Red Dwarf a Sam Bell em Moon e Naomi Nagata em The Expanse, o fim mais nobre do drama interestelar estaria incompleto se não fossem os engenheiros recalcitrantes e suas operações de processamento mineral […]. É maravilhoso que as pessoas apontem para as estrelas, mas aqueles que se recusaram a financiar os planos expansivos da nascente indústria de mineração espacial estavam certos sobre a lógica por trás da iniciativa. A mineração espacial não vai decolar em um futuro previsível e você só precisa olhar para a história da civilização para entender o porquê. Um fator exclui a maior parte da mineração espacial: a gravidade. Por um lado, garante que a maioria dos melhores recursos minerais do sistema solar estejam sob nossos pés. A Terra é o maior planeta rochoso que orbita o Sol. Como resultado, a cornucópia de minerais que o globo atraiu quando se fundiu é tão rica quanto pode ser encontrada deste lado de Alpha Centauri. A gravidade também apresenta um problema mais técnico. Escapar do campo gravitacional da Terra torna o transporte dos volumes de material necessários para realizar uma operação de mineração extremamente caro.

De fato, se por um momento trocarmos a ilusão pela realidade, percebemos que há boas razões pelas quais pouquíssimas pessoas, nos últimos 50 anos, colocaram a cabeça fora das imediações do nosso planeta. A Estação Espacial Internacional orbita a Terra a apenas 400 quilômetros da superfície da Terra: se nosso planeta fosse representado como uma esfera de um metro de diâmetro, estaria apenas três centímetros acima dela. A Lua, por outro lado, está quase mil vezes mais distante e a distância mais curta entre a Terra e Marte é de 55 milhões de quilômetros, distâncias todas inimagináveis, sem falar nas distâncias interestelares: a estrela mais perto, a Proxima Centauri, é 4,2 anos-luz do nosso planeta, ou seja, nove bilhões de quilômetros. Isso não significa que o ser humano nunca sairá do sistema solar, mas isso exigiria uma mudança de paradigma científico além da física einsteiniana, bem como avanços tecnológicos surpreendentes que revolucionariam o transporte de uma maneira tão impensável quanto o motor de reação teria sido na era da carruagem.

Por isso, o recurso de Bloomberg à ficção científica para enquadrar o assunto é mais do que uma referência espirituosa, pois a miragem da exploração do espaço obedece à mesma lei férrea que Horkheimer e Adorno identificaram na gestão da indústria cultural. Ou seja, funciona adiando indefinidamente a satisfação: “A indústria cultural engana perpetuamente seus consumidores com o que promete perpetuamente. A nota promissória que, com seus enredos e mise en scène, extrai do prazer se estende indefinidamente”. Constantemente nos dizem que em dois, cinco, dez anos, uma nova missão vai pousar na Lua, ou melhor ainda, construir uma base lá. Da mesma forma, serão sempre vinte, trinta ou quarenta anos antes de estabelecer colônias em Marte. Os prazos dos voos espaciais estão infinitamente atrasados, como mostra Artemis, cujo lançamento estava programado primeiro para 2020, depois para o final de 2021, depois para 29 de agosto de 2022, depois para 3 de setembro e agora, “provavelmente”, até o final deste mês, ou talvez o próximo…

Há, no entanto, uma grande diferença entre a indústria cultural “normal”, que produz cultura de massa, e a miragem espacial: se o público-alvo da primeira é óbvio, a segunda é voltada para a classe capitalista. São os Larry Pages, os Elon Musks e os Jeff Bezos que contam a si mesmos esses contos de fadas, acreditando, com arrogância plutocrática frenética, que podem converter ficção em ciência. Deste ponto de vista, a exploração (ou devastação) do espaço assume uma forma mais próxima do postulado religioso do que da superstição plebeia. Porque o fato concreto que continua incomodando os capitalistas é que a Terra é redonda (e, portanto, limitada, finita). O capitalismo é um sistema intrinsecamente expansionista; sem crescimento ilimitado, o mecanismo de lucro para. Temos testemunhado esse fenômeno com frequência, pois os capitalistas abriram novas fronteiras para a industrialização e a acumulação de capital: depois da Grã-Bretanha e dos Estados Unidos, foi a vez da França, depois da Alemanha, depois do Japão e da Itália; agora é a China e o Vietnã e um dia será a África. No entanto, a Terra permanece teimosamente esférica, o que representa um problema insuperável, a menos que o mercado possa se expandir além de suas fronteiras, ou talvez muito e muito além das do sistema solar. O sonho dos capitalistas é um mercado infinito e universal em que se pode comprar ações da galáxia de Andrômeda e futuros sobre as matérias-primas produzidas nos três planetas que orbitam o pulsar PSR B1257+1 na constelação de Virgem, localizada a 980 anos-luz de nossa sistema solar. Imagine: um cosmos inteiro para explodir!

No entanto, o capitalismo não é simplesmente uma economia expansionista; é também uma concepção proprietária e privatizante do mundo. Basta lembrar os elogios que acompanharam no ano passado os saltos de pulgas feitos na atmosfera terrestre por três bilionários (Branson, Bezos, Musk), anunciando a conquista privada do espaço (obviamente muito mais efetiva que a pública). Aqui fala-se de privatização do universo, de propriedade privada de sistemas solares. Nossos bilionários não têm nenhum problema em pensar grande ou se fazerem de bobo por agir dessa maneira.

Eu não estou exagerando. Para demonstrar quão sério (e megalomaníaco) é esse desejo de exploração proprietária do espaço, basta pensar que foram nada mais nada menos do que seres humanos que colocaram o pé fora de sua atmosfera, nada mais nada menos do que eles que encenaram um salto microscópico em torno de seu planeta (a cachorro Laika em 1957, Yuri Gagarin em 1961), os Estados imediatamente começaram a usar fóruns internacionais para discutir a quem o cosmos pertencia e assim, para evitar futuras incursões e imperialismo galáctico, os governos assinaram solenemente o Outer Space Treaty (Tratado do Espaço Exterior) em 1967 em que se recomendava pomposamente que “exploração e o uso do espaço sideral sejam realizados para o benefício e interesse de todos os países e sejam da competência de toda a humanidade”. Mas esse desinteresse não passava de uma fachada. Em 1979, quando o Moon Treaty declarou a Lua e seus recursos naturais como “patrimônio comum da humanidade” e exigiu “uma participação equitativa de todos os países nos benefícios derivados desses recursos”, muitos Estados, incluindo os Estados Unidos, se recusaram a ratificar isto. Em 1988, nove anos depois, o Departamento de Comércio dos EUA criou o Escritório de Comércio Espacial, cuja missão era “promover condições para o crescimento econômico e o avanço tecnológico na indústria espacial comercial dos EUA”.

Durante a última década, Washington intensificou seus esforços para criar uma estrutura legal que permita a exploração dos recursos do espaço sideral: o governo Obama assinou, em 2015, a US Commercial Space Launch Competitiveness Act que permite que cidadãos estadunidenses participem da exploração comercial e exploração de recursos espaciais. Em abril de 2020, o governo Trump emitiu uma ordem executiva para apoiar a mineração dos EUA na Lua e em asteroides. Em maio de 2020, a NASA divulgou os Acordos de Artemis, que incluíam o estabelecimento de zonas de segurança em torno dos locais de mineração lunar.

Nesse ritmo, não demorará muito para que os escritórios de advocacia comecem a lidar com disputas relacionadas ao espaço, contratando advogados especializados nos meandros do comércio interplanetário. E tudo isso antes que alguém retorne à Lua! Vamos imaginar as iniciativas que podem surgir nos asteroides! O problema é que, enquanto persistimos nesses planos ultrajantes, estamos simultaneamente chutando o balde neste único, pequeno e fabuloso planeta que a sorte nos concedeu.

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