Marx compartilharia memes?
Tóxico!, dizem sobre o algoritmo das redes sociais. Ele não mascara o real, mas dissolve o desejo de compreendê-lo. Uma mais-valia cognitiva, talvez avaliasse o filósofo alemão. Poderia a gargalhada viral ser arma política, se munida de crítica e esperança? É algo a se pensar (ou disputar)…
Publicado 13/06/2025 às 18:31 - Atualizado 13/06/2025 às 18:49
Vivemos num tempo em que até o delírio se tornou programável. O nonsense é produto. O absurdo, mercadoria. O brain rot — essa estética viral do vazio — não é uma simples excentricidade da juventude conectada, mas um sintoma gritante de um tempo doente. Um tempo em que o riso já não liberta, apenas lubrifica a engrenagem.
O nome é sugestivo: apodrecimento cerebral. Mas não é o cérebro que apodrece — é a nossa capacidade de viver o mundo com sentido. O brain rot é a estética da alienação digital: o nonsense domesticado, transformado em trilha sonora de uma sociedade que já desistiu de se entender. Aquilo que poderia ser subversivo — o absurdo, o desajuste, a gargalhada — foi capturado. Monetizado. Algoritmizado.
Marx nos ensinou a reconhecer a alienação no trabalho. Mas hoje, alienamo-nos no descanso, no consumo, no riso. Rimos do absurdo sem perceber que o absurdo somos nós. Que rimos do espelho.
A sociedade do espetáculo, descrita por Guy Debord, foi além da imagem que substitui a realidade. Agora, a imagem já não representa nada — e mesmo assim seguimos olhando. O brain rot é o espetáculo do vazio: conteúdo sem conteúdo, que vende nossa atenção como produto bruto. Cada vídeo de seis segundos é uma unidade de tempo vendida ao capital. Não se trata de distração — é projeto.
O espetáculo já não encena a realidade: ele a dissolve. Debord advertia que, no capitalismo avançado, a vida concreta é substituída por representações espetaculares que não apenas ocultam a verdade, mas fabricam uma nova realidade alienada, onde tudo que era vivido diretamente se tornou representação. Mas o brain rot dá um passo além: já não há sequer representação — há somente repetição, saturação, ruído. A imagem não oculta o real, ela anula o próprio desejo de realidade.
Nesse novo estágio do espetáculo, o valor de troca impera sobre qualquer sentido. A mercadoria imagética, desprovida de conteúdo, circula porque captura cliques, dados, rastros. O nonsense viral, aparentemente gratuito, é a forma-mercadoria adaptada ao tempo da fadiga cognitiva. O que se vende não é o vídeo, mas o rastro que ele deixa, o segundo de atenção arrancado da mente entorpecida. A alienação deixa de ser apenas condição do trabalhador na produção e se torna forma cotidiana de percepção — um modo de existir mediado por fluxos incessantes de signos vazios.
O sujeito, nesse contexto, não é apenas espectador, mas também produtor involuntário de valor. A rolagem infinita, os likes, os comentários — tudo é trabalho não remunerado, convertido em lucro para as plataformas. A alienação é completa: não só nos afastamos do produto do nosso trabalho, mas da própria experiência sensível.
O brain rot é, assim, a superação cínica do espetáculo: já não há promessa de verdade, nem desejo de sentido. Só ruído que engaja.
Esse projeto é o de uma nova forma de ideologia: não mais a que mascara a realidade, mas a que dissolve o próprio desejo de compreendê-la. O algoritmo não impõe um conteúdo, ele modela a forma de nossa percepção — e, com isso, captura nossa capacidade de negar. Trata-se de uma alienação de segunda ordem, em que o sujeito já não se reconhece como sujeito, mas como fluxo, dado, reação.
Atenção é campo de batalha. E o cansaço é sua principal arma. O esgotamento cognitivo não é um efeito colateral do digital — é sua política. Uma subjetividade exausta não protesta. Não organiza assembleia. Não escreve panfleto. Somente desliza o dedo em tela fria, rindo de um peixe que dança salsa ou de um padre que dubla funk. O brain rot é a nova censura: aquela que não proíbe, apenas entorpece.
No início de 2025, o Italian Brain Rot emergiu como ápice desse delírio algorítmico. Memes absurdos gerados por inteligência artificial, com criaturas híbridas e nomes pseudo-italianos como Tralalero Tralala, Ballerina Cappuccina ou Chimpanzini Bananini, tomaram as telas com trilhas sonoras caóticas, vozes robotizadas e estética saturada. A lógica: nada precisa fazer sentido, contanto que continue sendo consumido. O absurdo, aqui, não mais provoca — apenas distrai. O nonsense não é rebeldia, é anestesia.
O Italian Brainrot não é uma piada aleatória. É a forma mais recente de uma estética do esgotamento: uma sobrecarga sensorial que não apenas diverte, mas atordoa. A lógica é simples — e perversa: quanto mais fragmentado e insensato o conteúdo, mais fácil capturar a atenção cansada. Trata-se de uma estratégia refinada de distração contínua, onde o nonsense vira ferramenta de alienação.
O que parecia apenas humor nonsense revela, na verdade, a face pós-irônica de uma cultura saturada, onde o nonsense é a norma e o excesso é estilo. Essa estética alimenta o espetáculo do nada: vídeos sem contexto, imagens que não dizem nada, sons que não comunicam, mas que circulam — e vendem. O que está em jogo não é apenas o tempo roubado, mas a destruição da nossa sensibilidade histórica e crítica.
No centro desse processo está a economia da atenção, forma contemporânea de exploração que transforma mais ainda a mente humana em mercadoria. A atenção, que antes mediava o conhecimento e a experiência, torna-se agora força de trabalho capturada, medida e monetizada. O algoritmo extrai lucro da fadiga: quanto mais o sujeito se esgota diante das telas, mais tempo de engajamento é convertido em dados e lucro. Trata-se de uma forma de “mais-valia cognitiva”, em que o tempo de vida psíquica é subsumido ao capital.
O esgotamento não é um subproduto, mas uma condição necessária para o funcionamento do capitalismo digital. O cansaço crônico da subjetividade é o terreno fértil onde prosperam a despolitização, o conformismo e o automatismo do consumo. O brain rot, nesse sentido, é a estética funcional da ideologia dominante: não exige crença nem adesão, apenas passividade.
Sob sua aparência divertida, o brain rot — e sua vertente italiana — representa um novo estágio da alienação: um esvaziamento contínuo da experiência, em que o riso não vem da inteligência, mas do cansaço. E é justamente esse cansaço o que o algoritmo deseja. Não se trata de erro ou excesso. É um refinado regime de produção e dominação. É projeto.
Mas há resistências.
Brecht compreendeu o poder do riso. Para ele, a comédia não era fuga, mas arma. Seu teatro não buscava empatia, mas estranhamento. O público não devia se identificar, mas se desconcertar. O riso, ali, não era alívio: era ruptura. Rir, sim — mas rir com consciência. Rir da miséria social para combatê-la. Rir do opressor para expô-lo. Rir do absurdo, mas com o punho cerrado. Brecht reivindicava o riso que ilumina — o riso que pensa, que incomoda, que desperta.
Hoje, essa lição é urgente. Não se trata de demonizar o meme, mas de disputar sua forma. Mesmo a gargalhada viral pode ser arma, se munida de crítica. Até o delírio pode ser politizado. É preciso resgatar a força do riso dialético, aquele que desestabiliza a ordem sensível, que nos convida a ver — e mudar — o mundo.
O brain rot só existe porque o real se tornou insuportável. Combatê-lo não é renegar a cultura digital, mas enfrentar as formas sociais que a moldam. Não é calar os memes, mas revirá-los, esvaziá-los de alienação e enchê-los de sentido novo. O problema não está nas imagens que circulam, mas nas estruturas que determinam o que pode circular, o que pode ser visto, pensado, sentido.
A crítica do presente exige, portanto, que voltemos a pensar a cultura não como espelho deformado da realidade, mas como campo de disputa sobre o sensível. A alienação contemporânea não opera apenas na fábrica, mas na tela; não somente no trabalho, mas no lazer. Precisamos retomar a arte como arma — não de distração, mas de desalienação.
Precisamos reconstruir o sensível. Precisamos de arte que cure e denuncie. De ironia que fira a mentira. De imagens que não apenas nos distraiam, mas nos devolvam a nós mesmos. Precisamos de silêncio também — e de pensamento lento. De tempo que não seja cronômetro de produção, mas solo fértil de insurgência.
Desligar pode ser um ato político. Reaprender a pensar, um gesto de rebeldia. E rir, sim — mas do jeito que Brecht ensinou: rindo com raiva, com lucidez, com esperança. Rindo para não nos tornarmos cúmplices do espetáculo do nada.
Porque até sonhar, hoje, exige coragem.
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