Identitarismo como ideologia de dominação

Num mundo sob alta pressão ideológica, as alteridades identitárias podem ser meros espelhos de uma norma heterossexual branca. Desligam-se dos vínculos nacionais e da luta de classes. Nesses casos, alienam e agridem a soberania dos povos

Imagem: detalhe de A reprodução proibida, de René Magritte

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Por Luis Eustáquio Soares

Título original: O que é o identitarismo?

Simples assim: a ideologia dominante é a da classe dominante

O identitarismo é uma ideologia da dependência biopolítica em face da metrópole mundial da atualidade: o Pentágono.

E o que é uma ideologia de dependência biopolítica?

Antes de entrar no mérito da questão é preciso definir ideologia. Em diálogo com Louis Althusser, considerando seu livro Por Marx (1965), a ideologia: “é uma estrutura essencial da vida histórica das sociedades” (ALTHUSSER, 1965, p. 239). Para o filósofo francês, a ideologia se constitui como um sistema de imagens, mitos, conceitos, símbolos que, inscrevendo-se no plano do imaginário, não se limita a este, porque é também uma representação real da existência humana socialmente estabelecida.

A ideologia é, assim, uma representação da realidade e ao mesmo tempo é a própria realidade sócio-histórica constituída pela ação humana no interior das relações sociais de produção.

Essa definição de ideologia de Althusser não se opõe à de Marx e Engels de A ideologia alemã, de 1846, livro no qual a ideologia é concebida como um complexo em que “As ideias da classe dominante são, em cada época, as ideias dominantes, isto é, a classe que é a força material dominante da sociedade é, ao mesmo tempo, sua força espiritual dominante” (ENGELS; MARX, 2007, p. 47).

Com Althusser, Marx e Engels, o sistema ideológico dominante, em sociedades divididas pela polaridade de classe, é, pois, o das classes dominantes.

Como a pergunta que dá título a este ensaio (o que é o identitarismo?) remete, também, à imunidade de certos estilos de vida e tendo em vista o fato de que na civilização do capital a classe trabalhadora está irremediavelmente alienada da riqueza socialmente produzida por ela, não fica difícil constatar que a ideologia dominante no modo de produção capitalista seja sempre a que, no coração do cotidiano, confirma e duplica a alienação do produtor (a classe trabalhadora) do produto que produz.

No plano da realidade concreta, a alienação do produto do trabalho de seu produtor realiza-se sem cessar no mercado mundial capitalista, resultando a propósito a seguinte pergunta: o que cada ato de compra e venda abstrai, oculta e aliena?

Oculta, abstrai e aliena sempre o trabalho. Por exemplo, até mesmo a compra do pão de cada dia, mediado pela forma-dinheiro, jamais revelará o suor do padeiro e dos agricultores que plantaram o trigo; e muito menos as suas objetivas e subjetivas condições reais de existência.

O trabalhador é sempre o ocultado; é sempre o eterno anônimo no modo de produção capitalista. Por causa disso mesmo, os donos do capital, apropriadores privados da riqueza socialmente produzida, são sempre os que aparecem bonitos na foto; são sempre os não anônimos, os famosos – de antemão.

Os jovens Marx e Engels, no livro A sagrada família (1845), compreenderam acertadamente essa relação entre ideologia dominante e alienação e assim se expressaram a respeito: “A classe possuinte e a classe do proletariado representam a mesma autoalienação humana. Mas a primeira das classes se sente bem e aprovada nessa autoalienação, sabe que a alienação é seu próprio poder e nela possui a aparência de uma existência humana; a segunda, por sua vez, sente-se aniquilada nessa alienação, vislumbra nela sua impotência e a realidade de uma existência desumama” (ENGELS; MARX, 2002, p.48).

No capitalismo, a alienação é a regra, tanto para os donos dos meios de produção como para a classe trabalhadora. No entanto, para os primeiros, a alienação, ainda que pela farsa, os apresenta como humanos, virtuosos, sérios, magnânimos, democratas, civilizados, desejáveis.

Para os segundos (a classe trabalhadora alienada dos produtos do seu trabalho), a alienação, essa ideologia dominante do capital, de forma não menos objetiva (e subjetiva), realiza-se sem cessar, em cada ato de compra e venda e em cada extração do mais-valor, desumanizando, abrutalhando, desqualificando o mundo do trabalho.

Com essa digressão, apresento a resposta à pergunta formulada acima: qual é a classe dominante no contemporâneo? Ora, não é a do Deep State in the United States? E por quê? Porque é a que tem o seu rosto representado na forma-dinheiro por excelência (ainda) na atualidade, a saber: o dólar.

Os donos do dólar, portanto, são a classe dominante do contemporâneo e, assim sendo, são a própria ideologia dominante; a que se edita e reedita, na própria emissão infinita do dólar, sua própria (ainda que imprópria) aparência de humano, condenando a resistência e os insubordinados (isto é, o trabalho não alienado) à condição de párias da atual civilização.

Estrutura de dependência pentagonista, ideologia de dependência do ultraimperialismo ianque

E o que é mesmo a ideologia da dependência? A ideologia de dependência é uma deriva de uma estrutura de dependência, categoria analítica articulada no interior do último suspiro de inteligência teórica brasileira, que foi a Teoria da Dependência, protagonizada por figuras indispensáveis como Theotônio dos Santos, Ruy Mauro Marini, Vânia Bambirra e Octavio Ianni.

A Teoria da Dependência semeou seus frutos inclusive no campo da teoria literária. Fábio Lucas, escritor e teórico da literatura mineiro, deu a sua contribuição para o desenvolvimento da relação entre estrutura de dependência e a ideologia da dependência. Em seu livro Vanguarda, História & Ideologia da Literatura, escreveu o seguinte a respeito: “Na estrutura imperialista tem-se como Núcleo Hegemônico uma Nação dominante cuja Periferia dependente é formada por nações dominadas. Interiormente, por sua vez, cada nação possui um Núcleo e uma Periferia caracterizados pelas diferenças dos níveis de vida. Daí a evidente desarmonia entre a nação nuclear e as nações periféricas, assim como entre o Núcleo e a Periferia de cada nação” (LUCAS, 1995, p. 19).

O interlocutor direto de Fabio Lucas no trecho citado foi outro teórico da dependência, o alemão André Gunder Frank. Este, em um ensaio de 1966, intitulado “O desenvolvimento do subdesenvolvimento”, argumentou que a estrutura de dependência engendra o “desenvolvimento de seu subdesenvolvimento e o subdesenvolvimento de seu desenvolvimento” (FRANK, 1966, p. 10).

A ideia de base, de qualquer modo, é a seguinte: uma estrutura de dependência é constituída por um núcleo central, a metrópole (ou colonial, ou capitalista, ou imperialista) de referência; e a sua região periférica, dependente do Núcleo central.

Essa estrutura núcleo/periferia tende a se desdobrar em múltiplas outras. Replica outros núcleos periféricos com suas próprias periferias em todos os âmbitos da sociedade dependente.  

Há, assim, o Núcleo dos núcleos e as periferias das periferias, com seus núcleos que replicam o Núcleo hegemônico, inclusive no centro da estrutura.

E o que é mesmo ideologia de dependência? A ideologia de dependência, essa falsa consciência, é a que se norteia (literalmente) pelo Núcleo hegemônico.

A respeito dela, Fabio Lucas, embora se concentrasse na análise de algumas correntes estéticas de vanguarda, assinalou o seguinte: “Em termos de Ideologia da Dependência, as vanguardas derivadas funcionam como elos de um circuito que alimenta a causação circular da dependência, transformando o nacional em multinacional e tornando um triunfo aquilo que não passa de ocasional embaraço histórico, de transitório fruto de um modo de dominação” (LUCAS, 1995, p. 12).

A ideologia de dependência, assim, ao partir do Núcleo hegemônico, produz uma causação circular que replica, nas periferias das periferias, a própria dependência em relação à metrópole imperialista, aprofundando-a e espalhando-a por toda a sociedade, seja sob o ponto de vista econômico, seja político, seja jurídico, seja acadêmico, seja tecnológico, seja cultural, seja cotidiano, seja biopolítico.

O identitarismo é uma ideologia da dependência que deriva da metrópole, Núcleo dos Núcleos periféricos, e tem como efeito mais deletério o seguinte: oculta a própria condição de dependência e, assim, elimina o trabalho não alienado do chão nacional, a soberania popular, o direito inalienável que qualquer povo tem de ser independente, de ser o sujeito de sua própria cultura, de seu próprio desenvolvimento econômico, tecnológico, social; de seus estilos de vida, biopoliticamente considerados.

A ideologia da dependência é literal por ser a que sem cessar confirma a dependência do país dependente e desse modo ratifica a sua condição desumana, humilhada, miserável, quando não presunçosa e arrogante, se o referencial for a pequena burguesia e a oligarquia, ambas aliadas diretas da metrópole.

Se a ideologia, compreendida como sistema de alienação da classe dominante, uma vez ratificada pela classe dominada, chancela a autoalienação desumanizada desta última, a da dependência nesse caso se torna pura alienação dependente da metrópole.

E que metrópole mesmo é essa? O presidente da República Dominicana, eleito em fevereiro de 1963 e golpeado sob a tutela ianque em setembro do mesmo ano, Juan Bosch, publicou em 1968 um consistente livro, cujo título é: El pentagonismo, sustituto del imperialismo.

Sua hipótese, na obra citada, não é outra senão esta: o imperialismo, a partir da Segunda Guerra Mundial, teria deixado de existir, tendo sido substituído pelo pentagonismo, assim definido: “O pentagonismo tem várias vantagens sobre o decrépito e já inútil imperialismo. Dessas vantagens podemos mencionar duas: uma do tipo econômico e outra do tipo moral” (BOSCH, s/d, p.27).

A produção e reprodução do capital, na era do pentagonismo, é guerra. Nesse contexto, a economia mundial se transforma em uma economia de guerra. Seria por isso, segundo o político e teórico dominicano, que a fase imperialista do capitalismo teria se tornado decrépita, pois já não haveria mais espaço para a ampliação e conquistas de mercados e, assim, para a exportação de capitais, como no caso do período imperialista definido por Lênin como a última etapa do capitalismo.

O Núcleo da estrutura de dependência, na era do pentagonismo, sob esse prisma, torna-se o complexo industrial-militar ianque e, desse modo, o Pentágono. O negócio da guerra constitui o seu eixo central. As relações sociais de produção se transformariam em relações a um tempo sociais e bélicas de produção e reprodução do capital bélico.

A ideologia da dependência adquiriria outra dimensão, com a emergência de um sistema de alienação mundial em que a ideologia da classe dominante, a pentagonal, passa a ter a cultura bélica como referência central.

Ideologia da dependência imperialista, identitarismo e biopolítica

No livro História da sexualidade: a vontade de saber, Michel Foucault, estabeleceu a interface entre a biopolítica e a vontade de saber, compreendendo por esta a estrutura de saber institucional.

O princípio que o norteou foi: saber é poder sobre. Nesse sentido, a vontade de verdade ou de saber se constitui como o conjunto dos saberes institucionais cujo objetivo fundamental é o de se apoderar da vida, capturando inclusive a sua diversidade.  

Em linhas gerais, biopolítica é a vida humana sob a disciplina da vontade de verdade do monopólio científico garantido e imposto pelo Estado (qual Estado?). Este, a partir do século XVII, no contexto europeu, cuidou de assujeitar a vida humana sobretudo tendo em vista dois dispositivos inseparáveis da relação saber/poder sobre, quais sejam: o dispositivo da confissão e o da sexualidade.

A vontade de verdade ou a ciência institucional estimula a confissão por meio da seguinte pergunta simples, ainda que oculta: quem é você?

Essa é a pergunta que está onipresente na biologia, na psiquiatria, na jurisprudência, na medicina, na psicanálise e mesmo na teoria da literatura; o protocolo supostamente científico que define as identidades, prescrevendo quem é quem.

O dispositivo da confissão é indissociável do dispositivo da sexualidade. O primeiro estimula a confissão de si e o segundo, confessando-se, define o seu gênero, se homem, se mulher, se hétero, se homoafetivo.

O principal objetivo da confissão é a norma. A vontade de verdade ou a ciência institucional tem este desafio: a norma social, em conformidade com a estrutura de poder de um período histórico.

Há uma curiosa passagem em História da sexualidade: a vontade de saber em que Foucault, em tom irônico, sugere que, agarrados ao dispositivo da confissão, as pessoas tendem a acreditar que se tornam pessoas melhores quando se confessam. 

É o contrário, afirma Foucault, pois é se confessando que você é apanhado pela estrutura de poder, sendo arrebatado e, assim, assujeitado pela norma disciplinar.

Se, por sua vez, a biopolítica, essa vida politizada (para não dizer policiada) tem a norma como referência, como a norma biopolítica é produzida no interior de uma superestrutura de Estado imperialista?

Foucault, em Nascimento da Biopolítica, procurou, a seu modo, levar adiante essa questão tendo em vista especialmente o seguinte argumento: “A autolimitação da prática governamental pela razão liberal foi acompanhada pelo desmantelamento dos objetivos internacionais e do aparecimento de objetivos ilimitados, com o imperialismo (FOUCAULT, 2008, p. 29).

Nessa passagem, o filósofo francês analisava a relação entre liberalismo e imperialismo, alegando que tanto o primeiro quanto o segundo, sendo irmãos siameses, voltaram-se contra o Estado disciplinar, compreendido como um Estado que se limita à livre circulação das mercadorias.

A Inglaterra se impôs contra os Estados disciplinares coloniais (Portugal, Espanha, Holanda, França) pelos “objetivos ilimitados” da concorrência, expandindo esta para a lógica imanente da libra: dinheiro nu, trabalho nu.

Isto é: libra esterlina nua, sem limites para intercambiar, deve ser uma libra que transforma tudo em trabalho nu; tudo, inclusive a escravidão; tudo, inclusive o “trabalho das guerras”; tudo, inclusive o trabalho das mentiras e intrigas; tudo e sobretudo o trabalho que não opõe resistência à livre circulação de mercadorias; tudo e sobretudo o trabalho que seja pura mercadoria; daí ser nu; daí ser dinheiro nu, porque seus objetivos liberais devem ser ilimitados de modo que o trabalho nu é trabalho infinitamente alienado, logo trabalho desumanizado em sua própria nudez prostituída impotentemente pela libra nua.

O que Foucault assinalou, ainda que de forma intuitiva, é: na fase imperialista do capital a biopolítica também é trabalho nu. Quer dizer: a vida humana e suas identidades devem estar a serviço dos objetivos ilimitados do capital.

E mais: vencerá a concorrência interimperialista, motivo da primeira e segunda guerras mundiais, a força imperialista que produzir um mundo à sua imagem e semelhança.

Vencerá a concorrência mundial o imperialismo que dominar as relações mercantis biopolíticas; ou, dizendo de outro modo: dominará quem conseguir dominar a indústria de fabricação de estilos de vida; a indústria mundial da biopolítica.

Isso significa que a vida humana, com a emergência dos objetivos ilimitados do imperialismo liberal, torna-se o principal pivô da ideologia da dependência dos povos e, assim, o centro da estrutura de dependência imperialista.

O ultraimperialismo e a ideologia da dependência do complexo industrial-militar biopolítico

E aqui se chega finalmente acompanhado novamente da pergunta que dá título a este ensaio: o que é o identitarismo?

O identitarismo é a ideologia da dependência da estrutura mundial de dependência arquitetada pela hegemonia do complexo industrial-militar ianque, após a segunda guerra mundial.

Essa estrutura de dependência tem a seguinte arquitetura: ultraimperialismo pentagonista estadunidense, imperialismo dos imperialismos; imperialismo europeu, tornado imperialismo sub-ultraimperialista; povos submetidos e desumanizados por guerras e golpes de Estado; povos que resistem.

Se, ecoando Foucault, os objetivos ilimitados do liberalismo, com o dinheiro nu e o trabalho nu, implicava-se com uma biopolítica liberal nua, a serviço da libra esterlina inglesa, com a emergência do ultraimperialismo ianque, a biopolítica nua, isto é, a vida humana totalmente politizada (militarizada) circunscreve-se às coordenadas de objetivos ilimitados do neoliberalismo, entendido, desta vez, como sistema de produção e de trocas comerciais que tende a transformar o trabalho nu em trabalho marcado pela nudez da alienação bélica.

Isso quer dizer que a dominação inglesa foi liberal, alcançando o seu ápice na fase imperimperialista do capital; e, por sua vez, que a hegemonia do ultraimperialismo ianque é neoliberal.

E aqui se oportuniza uma definição de neoliberalismo não muito usual: o neoliberalismo é antes de tudo a vida humana, suas identidades, a serviço dos objetivos ilimitados da imposição de uma estrutura de dependência subjetiva e pentagônica mundialmente militarizada.

O ultraimperialismo estadunidense realizou esse desafio dominando militarmente a indústria cultural e esta nada mais é que uma indústria mundial de fabricação de subjetividades neoliberais bélicas alienadas em seus estilos de ser pentagônicos.

E o que é mesmo o identitarismo? O identitarismo é uma ideologia de dependência biopoliticamente neoliberal que é parte central da estrutura de dependência do complexo industrial-militar do ultraimperialismo ianque.

Divide-se em dois vetores: o de alteridade e o da norma patriarcal, masculina. Quanto ao primeiro, não sejamos ingênuos: os objetivos ilimitados do ultraimperialismo, em clave neoliberal não deixariam de armar, como boinas verdes especiais, as alteridades negras, femininas, homoafetivas, muçulmanas, indígenas, religiosas, econômicas.

Há que levar a sério a expressão “objetivos (militarmente) ilimitados”, sobretudo na era do neoliberalismo. Significa o que diz: não tem limites táticos e estratégicos subjetivamente bélicos.  

Mas que é alteridade? Sim, é preciso ser objetivo. Abandonar todo pedantismo acadêmico. Alteridade é o outro em relação a um padrão, a uma norma preestabelecida.

Assim, se o sistema colonial europeu impôs ao mundo a norma branca, o não branco, quer dizer, o índio e o africano, o asiático, por exemplo, constituem-se como alteridades – um outro em relação a um padrão imposto pela força e pela ideologia dominante. Se a história das grandes civilizações tem sido patriarcal e heterossexual, a alteridade é a mulher em face do homem; o não hétero em face do hétero.

Ora, os objetivos ilimitados da biopolítica ultraimperialista do complexo militar-industrial estadunidense tem a alteridade, também, como objeto e sujeito bélicos. E se a biopolítica tem como horizonte a norma, seu objetivo não é outro senão este: constituir uma norma bélica para as alteridades.

E qual é? A norma publicitária do estilo de vida de ser alteridade bélica ianque; a norma da alteridade como imagem e semelhança do sistema integral de propaganda militar estadunidense.

Se um dos dispositivos, segundo Foucault, da biopolítica é o dispositivo da confissão, o que está em jogo é a confissão da seguinte forma: quando se diz, “eu sou negro”, traduz-se como “eu sou marine negro ianque”; quando se diz “eu sou mulher”, traduz-se como “eu sou uma marine mulher ianque”; quando se diz “eu sou jihadista”, o sopro divino de fato é: “eu sou jihadista do Pentágono”.

A norma para as alteridades é ser o estilo bélico de alteridade ianque. O maior problema para essa norma não é outro senão este: nunca se é o chão de onde se veio e nasceu; nunca se é brasileiro, cubano, argentino, alemão, italiano, moçambicano, irlandês.

E mais: é preciso confessar-se ianque e nessa confissão, em cada ato confessional, o que está em jogo é: combata militarmente a soberania nacional, porque ao fim e ao cabo é a que limita os objetivos ilimitados do pentagonismo e, por isso mesmo, necessita sem cessar ser militarizada, no duplo sentido de ser objeto e ao mesmo tempo o sujeito de uma guerra de espectro completo, sempre contra os povos do mundo, esses párias que jamais podem se armar fora e contra o pentagonismo. Como a Rússia atual.

E o identitarismo heterossexual, patriarcal, masculino? Funciona da mesma forma, pelo dispositivo confessional. Quando se diz sou macho se quer dizer “sou um marine macho ao estilo cowboy de ser macho”. Quando se diz “sou branco” se é ao estilo bélico John Wayne de ser branco: com uma pistola fabricada pela indústria bélica ianque na mão.

Fundamentalmente o identitarismo é um sistema de empoderamento biopolítico-bélico ianque e como tal é uma ideologia de dependência neoliberal a serviço do Núcleo central da atualidade: o Pentágono. 

Há dois identitarismos, portanto, o da norma para alteridades subjetivamente bélicas e o da norma para a normopatia patriarcal não menos militarmente heterossexual e branca.

Nos dois casos o que está em jogo é norma belicamente pneumática, isto é, a do pulmão, a que vem de dentro, como um sopro divino: “sou uma alteridade ianque em defesa intransigente do subdesenvolvimento bélico dos povos”; “sou um branco hétero ianque a serviço da guerra sem trégua contra a alteridades belicamente ianquizadas do mundo”.

É uma situação de fato extremamente inusitada, kafkiana, porque se expressa e age por um duplo empoderamento alienado: o de alteridade e o do patriarcado. Funciona como numa guerra às avessas de cunho religioso porque se torna uma guerra entre normas biopolíticas: a de alteridade contra a masculina, de viés fascista; e vice-versa.

O dispositivo de confissão e mesmo o dispositivo da sexualidade, em cada pneumático “eu sou”, estimulam uma economia libidinal baseada na militância de si para si, produzindo, como efeito, uma cultura bélica das seguintes formas: 1) pelo reforço do isolamento confessional, pois a militância deixa se ser universal para assumir um caráter particular; 2) o particularismo confessional, tornando-se a regra, engendra um caldo de cultura baseado no estereótipo e no preconceito, porque censura o convívio entre diferentes, não havendo nada pior para estimular a violência do que a desumanização do outro estimulada pelo distanciamento social; 3) o particularismo isolacionista e confessional do “eu sou” é sem dúvida uma ideologia do esquecimento e da desvalorização do pensamento e da práxis comuns, universais, pois sua economia libidinal parte do princípio de que negros devem ler negros, mulheres devem ler mulheres e assim por diante.  

Isso na prática tem tido o seguinte resultado: cada vez mais menos pessoas se interessam por poetas como Carlos Drummond de Andrade ou por pensadores como Marx, pois o empoderamento do “eu sou” estimula também uma militância teórica e estética redundantes. Seu princípio é: alteridades negras devem ler autores negros; alteridades femininas devem ler mulheres; africanos devem ler africanos e assim por diante.

A cultura, nesse caso, assume uma dimensão particular e a particularidade pela particularidade é a maior técnica militar de divisão da história humana. O aspecto religioso da militância para si, particularizada, deriva da ideologia do excepcionalismo estadunidense associada ao destino manifesto e, também, ao puritanismo, tendo o seguinte efeito prático: ser puro “eu sou” é ser sem luta de classes.

Disso resulta a militar concepção de corrupção do puritanismo ianque: ser corrupto é se envolver com a luta de classes, sobretudo a luta de classes independentista. Afinal, foi por isso que Lula foi preso; foi por isso que Getúlio Vargas foi suicidado; e JK assassinado e Jango golpeado e igualmente assassinado.

Quem compreendeu essa questão e a desenvolveu em um plano de investigação sobre os motivos ideológicos dominação estadunidense foi o filósofo equatoriano Bolívar Echeverría. Em seu livro Crítica de la modernidad capitalista, argumentou que a modernidade estadunidense impôs-se como hegemônica assumindo os seguintes recursos táticos e estratégicos: 1) para dominar a Europa, explorou e manipulou as contradições de suas lutas de classes, com epicentro nos séculos XVIII, XIX e a primeira metade do XX; 2) para dominar-se a si mesma, evitou a todo custo a ocorrência de lutas de classes dentro de suas fronteiras e o primeiro procedimento usado para tal está relacionado à meticulosa separação, no interior da classe operária, entre trabalhadores negros e brancos.

O identitarismo, seja em sua versão de alteridade, seja em sua versão patriarcal, fascista, é uma espécie de explosão atômica da biopolítica e tem como finalidade, em cada “eu sou” empoderado, como um destino manifesto, combater as lutas de classes e sobretudo a luta de classe anticolonial, pela soberania dos povos.

Com o passar do tempo, sobretudo tendo em vista a gestão repressora das lutas pela emancipação dos direitos civis da década de 50 e 60, o ultraimperialismo pentagonal estadunidense arquitetou, dentro dos objetivos neoliberais ilimitados, uma verdadeira paródia das lutas de classes, substituindo-as por lutas biopolíticas.

Quando ainda existia a URSS, a militância biopolítica estadunidense concentrou-se na performance neoliberal semilaica encarnada no estilo de vida jovem, protoanarquista, irracional, despojado, traços subjetivos do reino da liberdade individual supostamente ilimitado. Nesse período, a palavra de ordem era: é proibido proibir!

Após o fim da URSS, a ideologia da dependência biopolítica da dominação estadunidense assumiu um caráter fundamentalista e, assim, religioso: a religião do puritanismo empoderado do “eu sou alteridade” e “eu sou o padrão cowboy”.

É a era do identitarismo de alteridade e a do cowboy, a atual, marcada pela explosão atômica de lutas entre confissões de gênero, étnicas, culturais, em contextos diversos em que domina o ódio subjetivo e religioso à luta de classe e por isso a sua palavra de ordem é: é proibido ser laico e sobretudo é proibido um pensamento laico, assim como uma cultura laica e um país laico!

É por isso que eles se odeiam, o identitarismo de alteridade e o identitarismo patriarcal; para lutarem religiosamente (para não dizer pentagonicamente) um contra o outro e assim tem sido e quanto mais o fazem tanto mais a soberania nacional vai para o ralo da história.

E não é isso que estamos vivendo dramaticamente no Brasil? O que é o bolsonarismo senão o identitarismo cowboy militarmente estabelecido? E o que é o identitarismo de alteridade senão o identitarismo do globalismo pentagonista monopolar ianque? E qual a função de ambos senão a seguinte: ocultar a luta de classes brasileira contra a sua condição de dependência econômica, tecnológica e ideológico-militar em relação a EUA.

E o que é mesmo o identitarismo? É, à esquerda suposta e à direita suposta, a ideologia de dependência subdesenvolvida contra a soberania popular brasileira.

E por que esquerda e direita supostas? Porque são esquerda e direita militarmente mercantilizadas pelos objetivos ilimitados do neoliberalismo ianque e, assim, constituem-se como puras alienações desumanamente bélicas; assim como puras ideologias da classe dominante pentagonal estadunidense-mundial; a do, respectivamente, dólar nu puritano militar do identitarismo de alteridade; e a do trabalho nu e alienado do eterno retorno do fascismo e do nazismo colonial-patriarcal.

Ambos os fronts guerreiam-se entre e contra si em nome de suas servidões voluntárias indissociáveis de uma ideologia da dependência da estrutura de dependência pentagonal ianque.

É, enfim, para retomar o diálogo com Bosch de El Pentagonismo, sustituto del imperialismo, a vantagem moral imposta ao mundo pelo pentagonismo; a vantagem da moral confessional, de fundo religioso, contra a laicidade dos Estados soberanos, contra a política independentista, que luta contra todas as formas de ideologias da dependência.

Sim, não temos nada a perder, senão os nossos grilhões militares biopolíticos estadunidenses. 

Referências

ALTHUSSER, Louis. For Marx. Translated: Ben Brewster. S.l.: The Penguin, 1969.

LUCAS, Fabio. Vanguarda, História e Ideologia da literatura. São Paulo: Ícone Editora, 1995, p. 19.

BOSCH, Juan. Pentagonismo, sustituto del imperialismo. Madrid: Guadiana de Publicaciones, S/D.

DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. Mil platôs: capitalismo e esquizofrenia. Tradução Peter Pál Pelbart e Janice Caiafa. São Paulo: Editora 34, 2008d. v. 5.

ENGELS, Friedric; MARX, Karl. A ideologia alemã. Trad. Rubens Enderle, Nelio Schneider, Luciano Cavini Martorano. São Paulo: Boitempo, 2007.

ENGELS, Friedrich; MARX, Karl. A sagrada famíliaTrad. Marcelo Backes. São Paulo: Boitempo, 2003.

ECHEVERÍA, Bolívar. La Modernidad desde América Latina. In: Crítica de la modernidad capitalista. Bolívia: Governo Plurinacional, s.d. p.201-290

FOUCAULT, Michel. História da Sexualidade: a vontade de saber. Tradução: Maria Theresa da Costa Albuquerque. Rio de Janeiro: Graal, 1999. v. 1: Vontade de Saber, p.9-149.

FOUCAULT, Michel. Nascimento da Biopolítica. Tradução: Eduardo Brandão. São Paulo: Martins Fontes, 2002.

FRANK, André Gunder. O desenvolvimento do subdesenvolvimento. Monthly Review, v. 18, n. 4, set. 1966.

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2 comentários para "Identitarismo como ideologia de dominação"

  1. Luis Carlos Muñoz Sarmiento disse:

    Magnífico texto sobre el Identitarismo, querido Luis, y la teoría de la dependencia aplicada a la injerencia despótica/dictatorial del Pentágono en el mundo unipolar que solo ven los EEUU por vía de sus desnaturalizados gobiernos. Un fuerte abrazo.

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