Fracasso? História de duas COPs
A lógica dos lucros, o peso dos lobbies e a vaidade dos engravatados levaram a conferência oficial ao fracasso. Onde o sucesso genuíno floresceu? Nas trocas entre movimentos, nos novos laços de solidariedade firmados e na chama de esperança da união entre povos
Publicado 05/12/2025 às 15:41 - Atualizado 05/12/2025 às 15:49

O Papel Corrosivo da Mídia Sudestina
O governo Lula empenhou esforço extraordinário para realizar este evento por dois motivos fundamentais: primeiro, porque o Brasil é protagonista histórico na agenda ambiental, e a COP30 seria uma excelente vitrine para demonstrar nossa capacidade de liderança; segundo, porque seria a primeira Conferência das Partes realizada no coração da Amazônia. Precisamente aí começou a frustração de muitos ambientalistas e ativistas.
A mídia sudestina desenvolveu uma campanha sistemática e servil de desqualificação da COP30. Ao longo de todo o ano que precedeu o evento, houve uma tentativa orquestrada de atacar Belém e o governo brasileiro. Primeiro, questionaram a suposta inflação dos preços de hospedagem; depois, amplificaram notícias sobre atrasos em obras; posteriormente, criticaram a infraestrutura da cidade como inadequada. E então veio o ápice absurdo dessa cobertura: enquanto o Brasil recebia 70 mil lideranças do mundo inteiro — um feito inédito de mobilização diplomática —, a manchete mais lida da mídia sudestina tratava da “informação valiosa” que todos supostamente precisávamos saber: o preço do café nas zonas de acesso diplomático restrito.
Frustração total. Este jornalismo que desinformou sistematicamente e praticou terrorismo informacional contra o próprio país fracassou em seu objetivo: minar a legitimidade de um evento histórico. O que testemunhamos em Belém foi extraordinário, e ainda não compreendemos plenamente a dimensão de receber ambientalistas, movimentos sociais, cientistas, diplomatas, empresários e líderes mundiais. Pessoas do mundo inteiro engajadas na questão mais urgente da humanidade contemporânea: a emergência climática.
A Excelência do Povo Belenense e a Logística de um Megaevento
Além disso, a generosidade e o acolhimento do povo belenense transcendeu qualquer expectativa. Nos enche de legítimo orgulho de sermos brasileiros. Nosso povo demonstrou capacidade extraordinária de mobilização. As maravilhas da culinária local — o tacacá, a manissoba, o suco de taperebá, os camarões e as peixadas — tornaram a experiência memorável. O sistema de transportes público e privado funcionou dentro da normalidade esperada; a infraestrutura de hospedagem atendeu adequadamente a demanda; os serviços essenciais operaram sem maiores interrupções.
Precisamente isto frustrou a mídia sensacionalista: a demonstração clara de que o povo belenense, frequentemente desprezado nos grandes centros urbanos, possuía a capacidade, a superação e o empenho necessários para mostrar ao mundo que a Amazônia está aberta para o diálogo e para a cooperação internacional. A narrativa do fracasso não se sustentava diante da realidade vivenciada.
Os Limites da Diplomacia Tradicional: A Zona Azul e Seus Impasses
Apesar disso, há sim pontos críticos a serem considerados com rigor analítico. A Zona Azul — a área de diplomacia internacional onde ocorrem as negociações formais entre Estados — apresentou características que revelam as limitações estruturais dos processos diplomáticos contemporâneos. Este espaço funcionava mais como uma feira de negócios em que os países estavam predominantemente interessados em “se vender” no mercado exterior e fortalecer suas vantagens comerciais do que em decidir coletivamente sobre temas verdadeiramente transformadores.
Um espaço marcado pela vaidade, pelo protocolo vazio e pela ausência de avanços substanciais. Isso demonstra uma verdade incômoda: os líderes mundiais e as estruturas diplomáticas tradicionais encontram-se profundamente desconectadas dos problemas reais que afligem a humanidade. Cada nação defende seu “quinhão” de interesses, suas commodities, suas vantagens competitivas. O resultado? Zero avanço vinculante sobre as questões cruciais.
É necessário reconhecer, porém, que este imobilismo não decorre exclusivamente da falta de vontade política: está intimamente relacionado à financeirização da crise climática. Os mecanismos de mercado — créditos de carbono, títulos verdes, fundos de adaptação — transformaram a urgência climática em oportunidade de acumulação de capital. Quando a solução passa pelo mercado, torna-se fácil protelar, negociar, estabelecer prazos flexíveis. A lógica do lucro nunca foi compatível com a lógica da urgência.
Onde o Sucesso Genuíno Floresceu: Os Espaços de Livre Acesso e a Zona Verde
Por outro lado, onde observamos um sucesso genuíno — de impacto real e transformador — foi nas áreas de livre acesso, espalhadas por toda a cidade de Belém. Mais de 40 “casas” de debate promoveram centenas de milhares de discussões, plenárias, fóruns de diálogo, oficinas temáticas. Nestes espaços, a criatividade política floresceu sem as amarras do protocolo diplomático.
Da mesma forma, a Zona Verde — a área oficial destinada à sociedade civil — converteu-se em um laboratório de construção coletiva. Centenas de debates foram promovidos pelo governo brasileiro, órgãos judiciais, empresas e movimentos sociais. É legítimo criticar a presença de empresas que vieram fazer lobby corporativo na COP30, vendendo falsas soluções; todavia, essa crítica não invalida a potência dos espaços de mobilização genuína.
Destacamos especialmente a presença vibrante dos povos originários, do movimento negro, dos movimentos de periferia urbana e rural, bem como dos coletivos de ativistas digitais — como o Coletivo Clima Ácido — que desenvolveram uma atuação incisiva de denúncia das soluções corporativas vazias, colocando o dedo na ferida do greenwashing sistêmico.
A Cúpula dos Povos: O Verdadeiro Sucesso da COP30
Mas o que realmente constituiu uma iniciativa transformadora foi a Cúpula dos Povos.
Este espaço organiza movimentos sociais, ativistas, pesquisadores e diversas entidades da sociedade civil. Meses antes do evento, promoveram discussões intensas para sintetizar uma carta política a ser levada para a presidência da COP. Durante os dias de conferência, realizaram oficinas temáticas, debates especializados, falas de lideranças em plenárias realizadas na Universidade Federal do Pará — tudo afunilando-se para a elaboração de uma carta final potente e unificada.
O grande ápice foi a marcha realizada pela Cúpula dos Povos: 50 mil pessoas de todo o mundo nas ruas de Belém, paralisando a cidade com bandeiras de resistência e esperança. Unir-se — Marcha Mundial das Mulheres, movimentos indígenas, povos quilombolas, movimentos do campo como Via Campesina e MST, sindicatos, frentes de resistência das periferias urbanas — representou um alento genuíno de esperança e uma resposta vigorosa e coletiva ao problema.
Ali estavam os guardiões reais da vida. Aqueles que estão genuinamente na linha de frente da contenção dos danos de desastres ambientais provocados pelo extrativismo e pela ganância. Ali ouvimos gritos de resistência legítimos, mas especialmente palavras carregadas de esperança, e uma certeza infalível: a solução para o planeta e para a humanidade não sairá dos gabinetes de líderes, dos ambientes vazios da diplomacia tradicional, mas sim da base da sociedade — dos excluídos e marginalizados, das periferias do campo e da cidade.
As soluções já estão em construção, e emanam dos povos. Soluções baseadas na natureza, tecnologias sociais desenvolvidas comunitariamente, e aquilo que ganhou força conceitual nesta COP30: as “Soluções Baseadas nos Povos” — um paradigma que reconhece que a manutenção da vida terrestre virá de onde sempre veio: da sabedoria acumulada, da resistência cotidiana, do enraizamento territorial.
Reconhecer Avanços Concretos: Além da Retórica Diplomática
Não podemos encerrar esta análise sem reconhecer os avanços concretos conquistados nos ambientes diplomáticos, mesmo que limitados pela financeirização estrutural do processo.
A adoção formal dos Resultados Globais Acordados (GGAs) — um marco significativo que avança na mensuração de ações climáticas e na transparência de compromissos nacionais — representa uma evolução necessária, ainda que insuficiente. Este mecanismo estabelece parâmetros mais rigorosos para o cumprimento de metas, criando ferramentas de accountability internacional.
Igualmente importante foi o reconhecimento de um Fundo Florestas Tropicais para Sempre (TFFF) — que finalmente coloca recursos concretos nas mãos daqueles que mais sofrem os impactos da crise climática, particularmente os países do Sul Global. Não é a reparação histórica que demandamos, mas é um passo concreto em direção à justiça climática que não pode ser subestimado.
Reunir 70 mil lideranças mundiais em um único território — não é um detalhe burocrático. É a demonstração de que existe mobilização possível, de que a humanidade consegue se organizar coletivamente para discutir seus problemas mais urgentes. Esta capacidade de convocação é em si um ativo político, uma possibilidade que emergia da Amazônia, do Brasil, como afirmação: sim, é possível dialogar, é possível mobilizar, é possível construir coletivamente.
Longe de Salvar Sozinhos: A Virada Começou
Longe de mim depositar o peso de salvar o planeta nas mãos daqueles que mais sofrem — os povos indígenas, os agricultores familiares, os periféricos urbanos. O que presenciamos em Belém foi a manifestação de uma unidade política: povos diversos, compreendendo que sua força reside em transformar seus territórios, em pressionar governos, em denunciar falsas soluções corporativas, em atrair cada vez mais pessoas para a luta coletiva, em virar o jogo que parecia perdido.
A virada começou. É por isso que a COP30 em Belém foi um sucesso histórico.
Ao mesmo tempo em que as discussões diplomáticas empacavam nos corredores da Zona Azul, os camponeses da Guatemala conversavam com famílias do MST, trocando experiências de resistência. Enquanto países ricos ignoravam sistemicamente a crise climática, as periferias do Brasil se conectavam, trocavam tecnologias de enfrentamento, fortaleciam laços de solidariedade.
O mote final lançado pela Cúpula dos Povos acende uma chama de esperança que resgata uma ideia que pode parecer desgastada pela história, mas que faz total sentido no mundo caótico de hoje:
“Povos do mundo, uni-vos!”
Só assim — na articulação de nossas forças, na construção coletiva, na recusa do isolamento — poderemos enfrentar os desastres ambientais cada vez mais frequentes que se avizinham. Só assim construiremos um futuro que merece ser vivido.
Povos do mundo, uni-vos!
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