Em Defesa dos Intelectuais: resposta a Coutinho

É contra os atos e posturas de pensadores como Fanon que João Pereira Coutinho reage. Na busca pela universalidade autêntica, eles erguem-se para refletir, escrever e falar ao lado dos que vivem “violência, trabalho alienado e necessidades elementares”. Por isso são temidos

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Qual o lugar do último artigo de João Pereira Coutinho nesta Folha, “Coragem não é o habitat natural da maioria dos intelectuais”, no âmbito do debate de ideias? E o que, eventualmente, nos traz de novo e original para refletirmos sobre os principais problemas políticos e sociais do nosso tempo?

Não são segredo para quem acompanha as discussões públicas em nosso país as posições políticas de Pereira Coutinho e a linhagem de pensamento à qual se associa. Suas obras não nos deixam dúvidas: “Por que Virei à Direita: Três Intelectuais Explicam sua Opção Pelo Conservadorismo”, “As Ideias Conservadoras Explicadas a Revolucionários e Reacionários” e “Edmund Burke – a virtude da consistência”. Neste aspecto, o escrito referido pertence sem mais ao modo como os conservadores entendem a atividade dos intelectuais, em especial dos intelectuais público-engajados. Com isto, o que ele nos oferece de original e inovador para meditarmos acerca das nossas questões mais urgentes? A resposta é — nada!

Coutinho segue a tendência de autores conservadores inaugurada pelo escritor e político irlandês Edmund Burke que possuía verdadeira repugnância dos intelectuais: para ele foram um dos agentes responsáveis pela “catástrofe” da Revolução Francesa liderada por Robespierre, Saint-Just e outros jacobinos. Em “Reflexões sobre a Revolução Francesa”, a condenação dizia respeito ao fato dos philosophes, os teóricos políticos abstratos, inspirados pela arrogância do pensamento geométrico, terem desmantelados as principais instituições políticas e sociais francesas. Meio século depois, Tocqueville, menos moralista e cínico, afirmava a importância da filosofia na construção das sociedades humanas, mas advertia que os hommes de lettres possuíam pouca experiência prática na administração dos negócios públicos, particularmente das instituições representativas do governo. No século XX, a resposta de teóricos conservadores ao desafio dos intelectuais, em geral, não mudaria. Mesmo com as profundas alterações nos modos de vida decorrentes, por um lado, das tensões políticas advindas com o jogo de interesses dos principais Estados-nação do período (Inglaterra, França, Alemanha, Rússia), conduzindo o mundo para um cenário de guerras e revoluções; e, por outro, da maior participação popular na política ocasionada com a ampliação do sufrágio universal: o teor de aversão e repulsa do conservadorismo diante da rebeldia das letras manteve-se intacto. É neste contexto, por exemplo, que se formam os primeiros partidos políticos modernos da classe trabalhadora, com a Social-Democracia Alemã em destaque.

Ainda assim, Max Weber, e sua fúria racional, julgava os intelectuais como meros literatos[literatis], sempre afeitos à ética da convicção, mas que não se responsabilizavam eticamente (a ética da responsabilidade) pelas consequências diabólicas do exercício do poder — o que, invariavelmente, para o sociólogo alemão, significava a mobilização e aceitação da violência física lograda pelo Estado moderno. Já nos Estados Unidos, Leo Strauss e Eric Voegelin em troca de cartas acusaram Górgias, um dos sofistas mais ousados nos diálogos de Platão, e expressão avant-lettre do intelectual moderno, de não se importar com a verdade, a verdade objetiva em particular, e de substituir com má intenção os argumentos, a conversação séria, por discursos.

Nos anos 1960, Hannah Arendt, a mais apaixonante e respeitada autora da filosofia política no século XX, insuspeita no tópico da seriedade, desaprovava não apenas os intelectuais da nova esquerda, os filósofos Herbert Marcuse e Jean-Paul Sartre, pela leviandade por que tratavam as contendas público-políticas, fazendo-os aderir sem mais reflexão à causa dos movimentos estudantis e de resistência, como se opôs com veemência aos escritores, intelectuais e movimentos negros estadunidenses por defenderem a desegragação das escolas públicas — escrevendo para o Dissent, sobre o famoso caso de Little Rock, Arendt clamava pelo discernimento em não sobrepor os espaços da vita ativa (o político, o social e privado) com medidas equivocadas de imposição pela política de comportamentos ao domínio do particular.

Poderia aqui citar tantos outros, como a recusa da política da fé (o plano pré-estabelecido para futuros distintos, invariavelmente, preconizado pelos intelectuais) por Oakeshott, ou o temor angustiado de Schumpeter ao compreender no seu monumental Capitalismo, Socialismo e Democracia, que os hommes de lettres são capazes de organizar o descontentamento do povo e serem agentes decisivos na derrubada dos muros que protegem as elites econômicas.

No Brasil, o panorama não é diferente. João Pereira Coutinho, um quase português-brasileiro, acolhe a herança de José Guilherme Merquior, para quem a filósofa e intelectual Marilena Chauí era um “plágio doloso de Claude Lefort”, e os neomarxistas e os intelectuais possuem a preguiça da práxis, além de cultuarem certa sensibilidade apocalíptica, revertida em mentalidade utópica determinista: “esses gurus sempre falham”. 

De lugares-comuns e pouca imaginação original no contexto do pensamento conservador, com efeito, não pode ser acusado “Coragem não é o habitat natural da maioria dos intelectuais” e seu autor. Exceção a Edmund Burke, o originador do conservadorismo, é a reprodução plácida, nesse caso específico in toto, de considerações ditas e escritas por dois séculos.

No artigo em si, Pereira Coutinho, aborda a posição de Malcolm Gladwell e Jill Lepore. O primeiro por ter depois de decorrido alguns anos ter dito que pensava o contrário do que em 2022; na ocasião ele defendeu que mulheres trans competissem em categorias femininas. A segunda, por ter dito, supostamente tinha visão contrária, que “a epidemia woke e […] as inquisições do MeToo a partir de 2014” tornaram o “ambiente” acadêmico “miserável”. Esses dois estudos de caso de tergiversação, hesitação ou mesmo de falta de escrúpulos, são o suficientes para João Pereira Coutinho afirmar com firmeza que intelectuais são covardes. E prezam, antes de tudo, pela autopreservação.

Com escrita elegante ele sustenta tal asserção no ano de centenário de Frantz Fanon, cujo nome simboliza  a coragem, o denodo e a impetuosidade da existência intelectual no século XX e que o mundo todo comemora; mas não só, medita sobre qual o sentido para nosso tempo da vida e da obra teórica do psiquiatra e filósofo martinicano no atual momento de incertezas políticas, sociais e morais por que passamos. 

Contudo, é justamente contra os atos e posturas de hommes de lettres como Fanon que João Pereira Coutinho reage. São eles os que representam a tão anatemizada figura do intelectual. Sartre, que prefaciou Os Condenados da Terra, de Fanon, definiu os intelectuais no ciclo de conferências pronunciadas no Japão em 1965, depois reunidas no livro “Em Defesa dos Intelectuais” (Ed. Ática, 1994), como “agentes do saber prático-universal”, pois, na medida em que efetuam a crítica radical de toda forma de opressão, modificam não só “sua sensibilidade”, mas “sua atividade”, o que pode tornar-se a de outros, e os levar a suprimir as “alienações”, a contestar as “proibições sociais nascidas das estruturas de classe” e a rever as autoinibições e “autocensuras” sociais e políticas. Daí que para Sartre o ponto de vista dos intelectuais é o “ponto de vista dos desfavorecidos”. Portanto, hommes de lettres, na busca pela universalidade objetiva, autêntica, se erguem para refletir, escrever e falar ao lado dos que vivem, cotidianamente, “violência […], o trabalho alienado e […] necessidades elementares”. A contradição que todo intelectual vivencia por não ter o mandato para falar em nome de ninguém na sociedade, o monstro de consciência infeliz, se resolve na unidade radical com o pensamento e prática popular. A tradição à qual João Pereira Coutinho pertence e à qual dá  continuidade sempre temeu a capacidade disruptiva da intervenção dos intelectuais radicais e engajados, mas não só. Também dos escritores orgânicos (Gramsci) e dos acadêmicos que não se paralisam diante do desafio da “coragem da verdade” (Foucault). Talvez fosse o caso de se perguntar se não foi isso o que levou Gladwell e Lepore a se postarem em defesa de minorias, historicamente, exploradas e oprimidas. Contudo, somente a nossa infindável era das obscenidades pode fazer alguém raciocinar que mulheres trans e movimentos como o MeToo são predominantes e que ficar ao seu lado é não “enfrentar um risco real” na procura por prestígio e emprego. A possibilidade de  questionamentos imaginativos não faz parte, infelizmente, da cultura comum de escritores conservadores desde os dias de Burke.

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