Crônica sobre o ataque do Spotify à liberdade de criar

Entropia: este é o nome de meu podcast, que aponta como as patentes ferem o direito à Saúde. Um dia, a megaplataforma de streaming tirou-o do ar. Mórbida ironia: a própria palavra “entropia” está vedada, pelas leis de propriedade intelectual…

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Dezessete episódios lançados. Uma temporada inteira finalizada e outra por acabar. Uma organização de estudantes bastante orgulhosa de seu principal projeto. E, na véspera do lançamento do oitavo episódio da segunda temporada — que traria um debate sobre estratégias alternativas ao sistema vigente de inovação em saúde baseado na propriedade intelectual —, tive um grande susto ao não encontrar o Entropia, nosso podcast, na internet. Conferi no Spotify: nada. Tentei entrar na plataforma de distribuição: usuário inválido. Conferi a senha: usuário inválido.

Encontrei, então, um e-mail que havia sido enviado três dias atrás pelo suporte da plataforma de distribuição. Estávamos sendo notificados de uma denúncia de violação de direitos de marca no território mexicano. Uma pessoa alegava que o nome “Entropía”, para podcasts, era dela. Na suspeita de estarmos violando a propriedade intelectual de outra pessoa, a plataforma decidiu tirar do ar, imediatamente, o nosso conteúdo.

Mas como assim? Nosso podcast é em português! Não temos público no México, onde a denúncia de violação foi feita!

Parece brincadeira. Parece pegadinha. Mas, infelizmente, não é. Um podcast que vinha publicando diversos episódios que apontavam que o atual sistema de propriedade intelectual tinha impactos fatais para a saúde das populações, foi ironicamente tirado do ar exatamente por uma denúncia de violação da propriedade intelectual.

Para ter nosso conteúdo disponível novamente, teríamos que contestar e resolver com quem fez a denúncia, chegando a um acordo que seria notificado à plataforma de distribuição. Além disso, teríamos que explicar para a plataforma as razões de nossa contestação. Isso tudo em até cinco dias úteis.

Respondemos que, assim como outros direitos de propriedade intelectual, a marca era territorial. O registro de marca no México não nos impedia de usar o mesmo nome no Brasil. Apesar de esse primeiro argumento ser suficiente, destacamos que lançamos o nosso podcast antes do início do processo de registro de marca no México, segundo o próprio registro mexicano. E destacamos também, usando argumentos do Acordo sobre Aspectos dos Direitos de Propriedade Intelectual Relacionados ao Comércio — o famoso Acordo TRIPS —, que a ideia do direito de marca era prevenir o uso por terceiros de um nome similar que gerasse confusão nos consumidores do produto ou serviço. Como poderia um podcast em português, sem fins comerciais, ser confundido com um em espanhol, eu ainda não entendi.

E eu, que tanto detesto o Acordo TRIPS, me vi estudando toda a sua seção sobre marcas e usando seus argumentos para provar o nosso direito de ter o podcast no ar. Depois, lembrei que, se ele não existisse, talvez a gente não passaria por essa situação. E se o direito de marca tirou do ar, injustificadamente, um podcast desconhecido, imaginem só o que não acontece com as patentes farmacêuticas.

Fora a indignação, este acontecimento me levou a algumas reflexões.

É interesse — frustrante é uma palavra melhor — perceber que a mera suspeita de violação do direito de propriedade resulta na retirada imediata de um conteúdo do ar, mas a violação de direitos humanos pode levar anos para ser investigada e reparada. A própria discussão na Organização Mundial do Comércio sobre a suspensão de direitos de propriedade intelectual que impactam no enfrentamento da pandemia de Covid-19, que já tirou a vida de mais de quatro milhões de pessoas, se arrasta há dez meses. E se tínhamos cinco dias úteis para contestar a retirada de nosso conteúdo do ar, já tem seis que aguardamos uma resposta — tanto do denunciante quanto da plataforma. Não há nenhum prazo para que possam nos responder.

Além disso, me peguei refletindo sobre o quão estranho é você poder pegar uma palavra de um idioma comum e torná-la sua. Essa ideia do “é meu” tem me incomodado há algum tempo. Parece-me bastante sem sentido alguém falar que uma inovação é sua. Nem crescer a gente consegue sozinho: precisamos de alguém cuidando da gente. Depois aprendemos a ler com a ajuda de alguém e estudamos coisas que outros, antes de nós, escreveram. São milhares — ou mais — de pessoas que contribuem para o desenvolvimento do nosso conhecimento, das nossas ideias. Que arrogância é essa que nos faz, então, achar que somos tão brilhantes a ponto de podermos ser os únicos donos de algo que desenvolvemos, ilusoriamente, sozinhos? Se já não fazia sentido, em minha cabeça, alguém poder ter uma patente e ser dono de uma vacina desenvolvida com muito esforço coletivo, quem dirá ser dono de uma palavra.

A missão do Entropia de expandir os debates sobre uma ordem atual que não nos serve foi paralisada por essa mesma ordem. Mas lembrei de algo que sempre falo para os estudantes da nossa organização nos momentos de desânimo: nadamos contra a corrente, mas é menos difícil quando nadamos juntos.

Se esta sociedade de donos silenciou os nossos áudios, não deixaremos que tirem do ar a nossa voz.

Em meio à espera e à frustração, escrevo este texto — que não considero meu, já que minhas ideias não são só minhas — na esperança de que, ao denunciar esta perversa sociedade de donos, aumentemos a entropia por um mundo de todos e, ao mesmo tempo, de ninguém.

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