Como reinventar o estar presente, em quarentena

Propagam-se as lives e reuniões virtuais — para o trabalho e os afetos. Mas tais conexões desafiam nossa cultura de corporalidade. Eis um roteiro, em 10 passos, para subverter esses limites, brincar e explorar as possibilidades das telas…

.

Por Conrado Federici e Marina Guzzo

“A alegria é a única afecção passiva que aumenta nossa potência de agir; e só a alegria pode ser uma afecção ativa. Reconhecemos o escravo por suas paixões tristes, e o homem livre por suas alegrias, passivas e ativas. O sentido da alegria aparece como sendo o sentido propriamente ético“ – (Deleuze, 2017 p. 188)

Como se manter alegre em meio à pandemia? Como se manter presente, ativo em lives e reuniões virtuais? Escrevemos esse texto como uma série de experimentos para serem lidos e performados.

Juntos e separados. Em qualquer ordem. Alegrias inventadas para tempos de imposições tristes. Uma crítica à situação que nos coloca a pandemia em forma de brincadeira.

Coreografia em pequenas telas retangulares. Tentativa de fazer roda, de circular a palavra e o sentido. Em meio às tantas perdas, como re-inventar rituais? Como criar presenças em reuniões tecno-mediadas?

Que verdades fictícias são possíveis no mundo do zoom/jitsi/meet?A alegria, aquela que nos apresenta Espinoza,será nossa ética para resistir?

A pandemia arremessou de volta uma parcela da população de cara para si mesma, em casa e, como se não bastasse, vem provocando proliferações de diferentes ordens: das negações, das lives, das reuniões virtuais.Estantes de livros fake são vendidas para servir de fundo de tela. É possível participar de uma aula e ao mesmo tempo, lavar a louça?

Para a maioria, habitar e trabalhar parecem ser verbos inconjugáveis com a nova normalidade que começa a brotar, ainda que provisoriamente.

Esta coincidência entre “aquele trabalho de fora agora executado aqui dentro” ainda encontra no sujeito, em seu corpo individual, seu lugar de amálgama, na medida em que as fronteiras do privado continuam sendo diuturnamente violentadas. O trabalho procura pela casa o local mais adequado, controlado, calmo, protegido, livre de interferências, cool, apresentável, capaz de sustentar uma “boa conexão”.

Não o encontra, mas insiste. Fechar a câmera, o áudio, o coração?

A escolha deste ambiente ideal revela o absurdo, o ridículo de todos nós. O fracasso das reuniões de trabalho já emoldurava toda a produtividade esperada e, agora, é transmitido ao vivo pelos aplicativos de encontros virtuais.

Pretender que a presença aconteça independentemente dos recursos disponíveis para a mediação dos encontros (computador, tablet, celular, chamada telefônica) tem sido um jogo perdido. Sempre foi. O que resta de atenção é empurrado para a corda bamba e obrigado a buscar aquela experiência da “reunião” que a memória ainda guarda. Tarefa desesperadora ou risível.

“A alegria é na realidade resultado de encontros alegres com outros, encontros que aumentam nossos poderes, e da instituição desses encontros de tal maneira que perdurem e se repitam” (Negri& Hardt,2016, p.415)

Entende-se por presença a capacidade movida pelo desejo de se estar simultaneamente no mesmo tempo e espaço em que se está. No presente, com atenção e vontade. A presença virtual ainda é uma novidade tão plana quanto a tela. O encontro com pessoas daí resultante não tem densidade pois, ao serem desligados microfones e câmeras para o bem da conexão possível, os interlocutores perdem os retornos dos sinais que regulam as trocas humanas. Fisionomias, gestos, murmúrios e suspiros precisam ser silenciados para que algum entendimento seja estabelecido. A comunicação será necessariamente precária, mas custa-se a aceitar.

As necessidades de encontro humano nesta fase de distanciamento forçado parecem clamar por um cuidado especial com os próprios dispositivos tecnológicos de acoplamento e dispersão. A multiplicidade de sensíveis em jogo exige um tempo para a sua compreensão e degustação. Exige um tempo. Abandonado e despretensioso.

A flexibilidade das crianças nos indica as pistas de um importante gesto a ser feito nesta época de suspensão e reavaliação dos rumos da humanidade: brincar.

Os experimentos são tentativas de explorar essa situação e o dispositivo que nos circunda. Brincar e inventar presenças possíveis. Criar rituais de partilha.

(pressupõe-se de antemão que os resultados oscilarão entre a completa ficção e os múltiplos olhares sobre a realidade. Não importa se você irá inventar ou se basear na verdade).

01. Experimento para respirar junto

1- Pedir para todos os participantes da sala virtual abrirem seus microfones

2- Sentar-se em uma posição confortável com a coluna ereta

3- Fechar os olhos

4- respirar juntos e ouvir o som ao redor. Todos os sons.

5- Ficar assim por 5 minutos

6- Aceitar e lidar

02. Experimento para descontração

(tela do computador em “modo arena”, onde aparecem todos os quadrinhos simultaneamente)

Todos com microfones ligados começam suas declarações de bom dia, boas-vindas, narrativas e banalidades pessoais, enfim, as coisas possíveis e importantes de serem ditas publicamente..) falando prolificamente, sem parar.

0- Aleatoriamente, cada um na sua, congela e volta, variando sempre a posição do congelamento;

1- Se um congela, todos congelam, se um retorna todos retornam;

2- Um de cada vez vai congelando até todos pararem e a tela ficar imóvel, e depois desfaz, um de cada vez vai descongelando, até retornarem ao caos.

Procurar um estado de presença para uma equalização mínima da escuta para o encontro coletivo

O3. Experimento para (re)conhecer a casa território

1- Use um dispositivo que você possa mover durante a reunião

2- Conecte-se em um lugar, escolhendo uma imagem ao fundo.

3- Desconecte-se e mude de lugar na sua casa/confinamento sem avisar o grupo

4- Conecte-se novamente e permita que a nova imagem de fundo seja vista pelo grupo.

5- Crie pequenos textos sobre o que vê das imagens e das casas imaginadas dos outros participantes.

6- Compartilhe no espaço do chat.

04. Experimento para um gesto poético de presença coletiva virtual

1- Atente-se para si mesmo, neste exato momento. Perceba-se. Descreva a sensação dominante, qualificando-a, e em seguida, polvilhe características cinestésicas, como dores, cansaços localizados, resíduos de excessos corporais, prazeres, banhos de sol e lua. Vale desejos também!t

2- Atente-se para o lugar onde você está neste exato momento. Perceba-o. Descreva-o e como você se sente em relação a ele. Destaque (ou invente) um aspecto invisível, uma marca inesquecível deste espaço em que você se encontra agora.

3- Atente-se para uma outra pessoa deste grupo. Descreva aquilo que te impressiona, que chama a sua atenção concretamente. Imagine a continuação do contexto que extrapola o enquadre que você é capaz de apreender na sua tela. Faça perguntas.

4- Por fim, proponha uma ação simples para o coletivo. Um verbo.

5- Envie seu texto para uma pessoa do grupo por mensagem privada (algumas salas virtuais dispõem deste recurso)

6- Leia em voz alta para o grupo a mensagem que você recebeu.

(Garanta que todos os escritos sejam lidos)

05. Experimento para crianças pequenas em atividades escolares

-Perceba a criança em frente ao dispositivo: o que chama a atenção dela? Tente perceber por quê. Descreva para si com precisão aquilo que a desperta

-Reconheça a importância de todas as coisas que acionam a criança em uma reunião virtual

-Permita-se acompanhá-la na invenção do roteiro do encontro que emerge da relação com a(s) outra(s) pessoa(s)

-Não diga como ou o que a criança deve falar ou responder quando perguntada

-Traduza somente o imprescindível

-Perceba o interesse pelos detalhes dos planos de fundo e ambiência sonora, às vezes, mais do que a professora ou assuntos principais do encontro

-Programe reuniões curtas e ritualize os encontros, dando os contornos suficientes para que o novo hábito se instaure com conforto

-Reconheça que os encontros podem se tornar chatos

-Admita o caráter precário e paliativo, e a importância da manutenção do vínculo, acolhendo o que todos trazem, caótica ou organizadamente

-Converse com a criança sobre o que mais gostou e sobre o que não foi bom

-Planeje o próximo encontro junto com a criança, valorizando suas sugestões

06. Experimento para vídeo-dança

1- Todos os participantes abrem suas câmeras

2- Colocar modo “exibição de todos na tela”

3- Olhar para sua posição no quadro geral

4- Colocar uma música dançante

5- Movimentar-se dentro do pequeno quadrado que sua câmera projeta

6- levantar e dançar por 30 segundos, e deixar de olhar para tela

7- gravar esse momento para poder assistir depois.

07. Experimento para intervalo (real ou fictício) de reunião

-Informe que precisará fazer uma pausa (real), desligue a câmera, o microfone e fique observando/ouvindo;

-Informe que precisará fazer uma pausa (fictícia), desligue a câmera e esqueça propositalmente o microfone ligado: simule a sonoplastia de uma ida ao banheiro e assista a reação do grupo. Retorne e prossiga a reunião com normalidade;

-Proponha um intervalo (real e fictício) para a reunião e envie mensagens de trabalho e/ou pessoais pelo Whatsapp dos participantes durante a pausa;

-Forge uma pausa sem sair da reunião, participando com atraso nas respostas, falando sem voz, dublando outra pessoa, congelando em expressões absurdas.

Sustente cada uma das ações até ser flagrada(o).

08. Experimento para revigorar

Presença e espaço – percurso da atenção até a interface pele/coisa (o contato) e de volta

(com olhos fechados é melhor)

(tela do computador em “modo arena”, onde aparecem todos os quadrinhos simultaneamente)

1.desencostar

2.espreguiçar

3.esticar

4.torcer

5.(torcer e) desviar

6.superar

7.alcançar

8.tocar

9.segurar

10.sentir

a. reconhecer como você é fisicamente diferente (tamanho, peso, textura, calor, cheiro, gosto, vida) da coisa (é MUITO FÁCIL?)

b. reconhecer o que haveria de semelhança entre você e as características concretas da coisa (é MUITO DIFÍCIL?)

c. mimetizar a coisa primeiro com o corpo todo e depois somente com a musculatura facial

d. (para quem quiser e tiver energia criativa sobrando…) – inventar metaforicamente as relações de semelhança experimentadas nos movimentos, narrando as sensações ao coletivo

09. Experimento para as passagens

*da vida

Para acompanhar o parto da amiga

-faça uma sala virtual só com mulheres

-peça para as participantes abrirem suas câmeras

-olhem-se e sorriam em silêncio

-acendam uma vela para a passagem

*da morte

Para o funeral de alguém querido

  • peça para os participantes abrirem as câmeras e fecharem os microfones.
  • chorem juntos em silêncio
  • acendam uma vela para iluminar a passagem

10. Experimento para catarse coletiva

(sugestão que seja no final da reunião)

  • abram todos os microfones
  • Berrem juntos, bem alto (#foraBolsonaro)

Perceba que todo experimento não passa de um jogo para você mesmo perceber como inventar seus próprios roteiros de criação.

Seus rituais de presença.

Singulares.

Para lidarmos com as nossas realidades.

Virtuais. Verdadeiramente.

“Desde que vos tornastes novamente alegres! Em verdade, todos vós desabrochastes: parece-me que flores como vós necessitam de novas festas” (Nietzsche, 2003, p. 300).

Referências

Deleuze, Gilles. Espinosa e o Problema da Expressão. São Paulo: Ed. 34, 2017.

Hardt, Michael e Negri, Antonio. Bem-estar comum. Rio de Janeiro: Record, 2016.

NIETZSCHE, Friedrich. Assim falou Zaratustra. São Paulo: Editora Martin. Claret, 2003. ( Coleção A obra-prima de cada autor, v. 22 ).

Leia Também:

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *