China e África: uma relação anticolonial?

Pequim é frequentemente acusada de impor a “armadilha da dívida” ao continente. Mas empréstimos não têm os juros leoninos do FMI e são feitos com respeito a projetos nacionais. Após pilhar países africanos, o Ocidente não suporta essa “volta por cima”

O presidente chinês Xi Jinping e o presidente sul-africano Cyril Ramaphosa durante a Cúpula do Fórum de Cooperação China-África de 2018. Foto: Lintao Zhang/Pool via REUTERS
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O texto a seguir integra a edição nº 5 (maio de 2024) do boletim do Observatório do Século XXI — parceiro editorial de Outras Palavras. A publicação, na íntegra, pode ser baixada aqui

Tanto a China quanto a África foram arrastadas pela ordem estabelecida pela Revolução Industrial pela força das armas, violência colonial e uma guerra pela liberação do tráfico de drogas (Guerras do Ópio – 1839-1842). Podemos dizer ainda que a diferença entre o Terceiro Reich e as potências coloniais que assaltaram a África e a Ásia está na geografia: Hitler fez na Europa o que os europeus já faziam em escala industrial em suas colônias. Trata-se de uma risca de giz no chão para dividir o colonialismo europeu e as formas de relacionamento estabelecidas entre a China e o continente africano, principalmente desde 2000.

Como já posto um novo despertar anticolonial africano está ocorrendo. Mais, sob os auspícios de uma crescente presença econômica chinesa na região. Narrativas ocidentais de “neocolonialismo” e “debt trap” são frequentes e se transformaram em senso comum nas discussões sobre o tema. O que não se percebe é que até a disposição das infraestruturas construídas pelos chineses na África não obedece à lógica de “corredores de exportação” e se assemelham mais a investimentos voltados a unificar mercados internos e inaugurar formas superiores de divisão social do trabalho.

Os esquemas dos investimentos em infraestruturas chinesas na África cada vez mais obedecem a uma lógica de conexão com a formação de indústrias. Não se trata de uma benevolência chinesa,

algo que não existe no mundo real. Trata-se de crescentes exigências por parte de seus parceiros africanos a necessidade de relacionar investimentos em infraestruturas com industrialização, instalação de zonas econômicas especiais e agregar valor de matérias-primas na própria África. Vejamos alguns exemplos.

O caso da ferrovia Addis Ababa-Djibouti. Em 2016, o governo chinês orientou suas empresas públicas e não públicas a instalarem plantas industriais e zonas econômicas especiais em torno desta ferrovia. Parques industriais foram instalados em Hawassa, Dire Dawa, Kombolcha e Adama. As periferias próximas da referida capital etíope estão repletas de instalações industriais chinesas.

Acordos semelhantes foram assinados com o Quênia no sentido de transformar o entorno da ferrovia Mombasa-Nairobi em um grande cluster industrial. A tendência deste tipo de operação é a de se espraiar. Isso por conta de uma moção conjunta dos líderes africanos à China em 2022 no sentido de ampliar as relações econômicas no rumo da industrialização do continente. A resposta chinesa veio em 2023 com o lançamento da Iniciativa Para a Industrialização Africana com resultados já claros e demarcatórios em relação ao que colonialismo europeu.

O caso do Zimbábue, um dos países mais sancionados do mundo, é paradigmático das relações internacionais de novo tipo que a China tem desenvolvido. O país asiático anunciou investimentos da ordem de US$ 2,7 bilhões em uma planta industrial de exploração e processamento de lítio. Bom lembrar que, num gesto de afirmação nacional de independência, em 2022 o Zimbábue proibiu a exportação de lítio in natura o que levou o governo chinês a se adaptar a novas regras impostas pela referida nação africana.

Por fim, algumas palavras sobre o mito do “debt trap” (“armadilha da dívida”). A nosso ver existem três problemas com essa narrativa. O primeiro problema é que esse mito pressupõe que a China tem amplos poderes para impor, de forma unilateral, a forma de funcionamento dos projetos envolvendo os projetos da Iniciativa do Cinturão e da Rota com intenção de obrigar os signatários a aceitarem esses empréstimos predatórios. Na realidade, o financiamento chinês para o desenvolvimento é, em grande parte, orientado por acordos bilaterais; convergindo a uma constatação que relaciona a adaptação chinesa a projetos nacionais autônomos. Na verdade, os projetos de infraestrutura são determinados pelo país beneficiário, não pela China, com base em seus próprios interesses econômicos e políticos.

O segundo problema está na suposição de que é um princípio político chinês conceder empréstimos predatórios com termos e condições onerosos aos países receptores. Na realidade, a China costuma conceder empréstimos a taxas de juros mais baixas do que as praticadas por instituições como o FMI e o Banco Mundial. E a tendência, empiricamente comprovada é a de que, de forma repetida, a China se dispõe a reestruturar os termos dos empréstimos. O fato é que em agosto de 2022, o governo chinês anunciou que estava perdoando 23 empréstimos sem juros em 17 países africanos. Antes disso, entre 2000 e 2019, a China também havia reestruturado um total de US$ 15 bilhões em dívidas e perdoado US$ 3,4 bilhões em empréstimos concedidos a países africanos.

A terceira questão reside no fato de a China nunca ter confiscado um ativo de um país em razão do não pagamento de suas dívidas. Casos propalados como os ocorridos no Sri Lanka, Zâmbia e Quênia – três países que entraram em default – já foram devidamente desmentidos por uma série de artigos e pesquisas notadamente as capitaneadas pela professora Deborah Brautgam.

Encerramos dizendo que sim, as relações entre a China e a África estão longe de serem um mar de rosas onde inexiste a contradição. Mas como nos ensina a própria filosofia fina alemã, a contradição move o processo. No caso, as duas partes ao conseguirem saltar de um desequilíbrio a outro em suas relações poderão legar ao mundo o que já dito aqui. Relações internacionais de novo tipo.

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