Brasil-África, tenebroso apagão

Cancelamento, pelo governo, de voos provenientes de dez países africanos é só a ponta do iceberg. Desde o golpe, relações estão em declínio, por atitude colonizada ou pressão religiosa. Retomá-las e ampliá-las será crucial em novo cenário político

.

Dentre as modalidades possíveis de circulação entre o Brasil e a África, a mais severamente afetada durante a pandemia foi a de pessoas, realizada quase sempre por via aérea.

Segundo dados do ComexStat para o ano de 2020 (quando a circulação de mercadorias em escala global diminuiu consideravelmente), as exportações do Brasil para os países africanos se mantiveram estáveis em relação aos anos anteriores (Gráfico 1), mostrando uma não-interrupção dessa circulação marítima no Atlântico Sul.

Em relação à circulação de dados, realizada por meio de cabos submarinos de fibra ótica, a migração para as atividades online durante o confinamento fez explodir o tráfego de dados interoceânicos, com a Angola Cables (empresa responsável por operar um cabo submarino ente Fortaleza e Sangano, ao sul de Luanda) registrando um aumento de 6 vezes no uso de sua rede durante o primeiro semestre de 20201.

Se a circulação de mercadorias (por via marítima) se manteve estável, e se a circulação de dados (via cabos submarinos) aumentou, o mesmo não pode se dizer da circulação de pessoas, e consequentemente, do transporte aéreo entre o Brasil e a África. Com a declaração da pandemia de coronavírus pela OMS em março de 2020, rapidamente os poucos voos diretos existentes entre o Brasil e o continente africano foram sendo suspensos, situação que se mantém até hoje (dezembro de 2021) com notáveis exceções.

Antes mesmo da pandemia, a South African Airways, responsável por voar entre São Paulo e Joanesburgo, já tinha anunciado a suspensão deste voo, e logo após a declaração da OMS, a Latam também interrompeu sua rota entre as duas cidades. Ao mesmo tempo, a Royal Maroc suspendeu seu voo entre São Paulo e Casablanca, assim como a TACV (companhia aérea de Cabo Verde) parou de voar entre Fortaleza e a Ilha do Sal. A companhia angolana TAAG também suspendeu suas operações entre São Paulo, Rio de Janeiro e Luanda, mas foi a única (dentre as que interromperam suas operações) a voar novamente – primeiro em setembro de 2020 e, após nova interrupção, em julho de 2021 –, e apenas de São Paulo.

Como notável exceção, a Ethiopian Airlines, companhia aérea estatal etíope, não parou de circular em nenhum momento entre São Paulo e Addis Abeba durante estes últimos 21 meses, realizando voos de repatriação de brasileiros espalhados pela África, Oriente Médio e Índia, e, fundamental, trazendo insumos médicos como respiradores, máscaras e vacinas de origem chinesa em seus aviões, centrais para o combate à pandemia2.

Há duas semanas, o governo brasileiro anunciou a suspensão de entrada de passageiros com origem na África do Sul, Botswana, Eswatini, Lesoto, Namíbia e Zimbabwe (e posteriormente Angola, Malawi, Moçambique e Zâmbia)3. Todavia, voar entre a África Austral e o Brasil não era exatamente das tarefas mais fáceis (e baratas) de se realizar ultimamente, e por isso mesmo, talvez fosse uma dinâmica pouco expressiva do ponto de vista sanitário (se comparado aos fluxos provenientes de outros cantos do planeta). Obviamente, o problema é muito maior do que este.

Mais do que uma decisão operacional, esse banimento do governo brasileiro é sobretudo um problema político, e que infelizmente não chega a surpreender quem acompanha o triste declínio das relações Brasil-África desde o golpe de 2016.

Queda considerável nas importações brasileiras, afastamento diplomático, paralisação quase completa dos projetos de cooperação técnica, saída das principais empresas brasileiras do continente (Petrobrás, Vale e Odebrecht): em quase todos os aspectos, a África deixou de fazer parte do horizonte brasileiro nos últimos anos, e mais uma vez, a política externa do governo nacional privilegiou seus olhares ao hemisfério Norte.

Quando a África do Sul, por sua própria capacidade científica, identificou uma variante potencialmente perigosa do coronavírus (a Ômicron), os EUA e a União Europeia fecharam seus aeroportos de forma instantânea aos passageiros desta região, muito mais rapidamente do que em ocasiões anteriores e reproduzindo a velha atitude colonizadora para com a circulação africana4. O governo brasileiro seguiu a medida sem pestanejar, mas não cogitou fazer o mesmo para os voos provindos da Europa, onde a Ômicron se difundiu e onde hoje a pandemia se alastra de maneira mais preocupante (pois apesar de terem vacinas, parte importante dos europeus manifestam publicamente sua recusa ao procedimento). Por acaso, quando outras variantes se disseminaram no Hemisfério Norte, alguma medida imediata e automática de contenção foi proposta por aqui? Mais uma vez, o problema parece ser outro.

Para quem acompanha um pouco mais de perto as relações Brasil-África, esse alinhamento imediato do Brasil ao cancelamento da circulação com origem na África Austral parece também uma retaliação aos países da região, que recentemente causaram constrangimento à vertente religiosa do governo brasileiro.

Apesar de enfrentar problemas em vários países africanos nos últimos anos5, foi em Angola que a Igreja Universal recebeu recentemente seu mais duro golpe, tendo seus membros brasileiros expulsos do país por acusações que vão da evasão ilegal de divisas à esterilização forçada de pastores angolanos6. Na sequência, o presidente brasileiro tentou nomear um famoso representante da IURD como embaixador na África do Sul, recebendo como resposta um vexatório silêncio do governo sul-africano, numa firme manifestação de reprovação dentro dos códigos diplomáticos7.

Idas e vindas em relação à África são, infelizmente, recorrentes na política externa brasileira desde o início dos anos 1960, mas o Brasil parece adentrar agora em um período não apenas de afastamento, mas talvez de deliberado descaso com o continente, cujas ruínas podem custar muito tempo para serem reconstruídas – ainda mais com a China oferecendo tudo aquilo que o Brasil tinha e deixou de oferecer para os africanos.

Que as relações Brasil-África são hierárquicas e assimétricas, e que a atuação das grandes empresas brasileiras no continente africano era problemática, não se pode (e nem se deve) negar. Tirar a África do nosso diálogo internacional, porém, parece um dos maiores erros que um governo brasileiro pode cometer, tanto do ponto de vista político quanto econômico e cultural – mas mesmo isso é reversível, quando as bases não são destruídas.

Abandonar completamente o continente africano significa não só arruinar os fundamentos históricos de construção da formação socioespacial brasileira, mas também minar os alicerces da luta tricontinental (América Latina, África e Ásia, em contraposição à Tríade) defendida pelo economista egípcio – e portanto, africano – Samir Amin8.

Do atual governo não se pode esperar outra coisa que a destruição. Por isso, urge buscar novos caminhos para incluir a África em nossa política externa, como nunca deveria deixar de ter sido, cientes das contradições que a cooperação brasileira carrega consigo, mas sem perder de vista o horizonte genuinamente solidário e necessário às relações entre africanos, latino-americanos e asiáticos.

___________

1 https://oestadoce.com.br/economia/trafego-de-internet-cresceu-seis-vezes-na-pandemia/ .

2Sobre os respiradores e máscaras: https://www.nexojornal.com.br/expresso/2020/04/21/A-diplomacia-paralela-da-compra-de-respiradores-pelo-Maranhão .

Sobre as vacinas: https://corporate.ethiopianairlines.com/Press-release-open-page/ethiopian-airlines-transports-vaccine-to-são-paulo-brazil .

3https://www1.folha.uol.com.br/equilibrioesaude/2021/11/anvisa-recomenda-ao-governo-barrar-viajantes-de-mais-quatro-paises-africanos.shtml .

4 https://outraspalavras.net/desigualdades-mundo/oculta-africa-volta-ao-centro-da-globalizacao/ .

5https://noticias.uol.com.br/internacional/ultimas-noticias/2019/11/04/cinco-polemicas-que-igreja-universal-se-envolveu-fora-do-brasil.htm .

6Sobre as acusações: https://theintercept.com/2020/10/21/ex-bispos-da-universal-engrossam-denuncia-sobre-retirada-ilegal-de-dolares-da-igreja-em-angola/ .

Sobre a expulsão: https://www.bbc.com/portuguese/brasil-56740870 .

7https://g1.globo.com/rj/rio-de-janeiro/noticia/2021/11/29/africa-do-sul-indicacao-de-crivella-retirada-governo-brasileiro.ghtml .

8 AMIN, Samir. Somente os povos fazem sua própria história. São Paulo: Expressão Popular, 2020.

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