África: seriam os chineses novos imperialistas?
As visões simplistas apressam-se a dizer que sim. Uma análise mais profunda revelará relações complexas, em que os africanos formulam reivindicações claras e os chineses tentam lidar com elas – rejeitando de princípio a dominação “civilizatória” e as “lições de democracia”
Publicado 01/09/2025 às 20:02 - Atualizado 01/09/2025 às 20:20

Por Elias Jabbour
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O texto a seguir integra o número 12 (julho de 2025) do boletim do Observatório do Século XXI, parceiro editorial de Outras Palavras. A edição pode ser baixada e lida aqui.
Tem sido muito comum em trabalhos acadêmicos e na mídia corporativa a noção para quem a África tem-se tornado ao longo dos últimos aos território livre para a ação “imperialista” e “neocolonial” chinesa. As razões para este tipo de visão podem variar. Desde a redução da teoria do imperialismo às operações de exportações de capitais até as relações de entre comércio e investimento que podem caracterizar o continente, tão e somente, como um depositário de matérias-primas e mercado para produtos industriais.
O que beneficia esse tipo de opinião, altamente despolitizada, é que o principal teórico do imperialismo (Lênin) foi muito claro ao reconhecer que lhe faltou tempo para desenvolver sua visão sobre a superestrutura do processo. Ficou aberta uma lacuna que tem sido preenchida inclusive de forma a igualar a ação chinesa na África com a ocupação belga no Congo – uma das maiores tragédias da história humana. O problema aí é não perceber que a República Popular da China optou, desde o seu nascimento, por uma postura ativa de apoio político e material aos movimentos de libertação nacional africanos.
Por outro lado, é impossível não perceber que a atual tomada de posição por parte da África — desde a ação histórica da África do Sul contra Israel às rebeliões militares de caráter antiimperialista e anticolonial que acometeram o Sahel — têm relação direta com as possibilidades que a presença chinesa (e também russa) abriram ao continente. Ao lado disso, a disposição chinesa em colocar a África definitivamente no grande jogo da política internacional resultou na admissão da Nigéria, Etiópia e Egito como membros do BRICS+.
A crescente presença chinesa, iniciada com a criação do Fórum de Cooperação China-África (FOCAC), em outubro de 2000, não tem passado despercebida pela principal potência ocidental. Os Estados Unidos estabeleceram, em outubro de 2007, seu comando militar para a África, o AFRICOM, estabelecido em Camp Lamonier, a maior base militar dos EUA no continente. Em sua esteira, podemos elencar a proatividade estadunidense na chamada “Primavera Árabe”, notadamente na destruição da Líbia e, sem exageros, na amplificação de grupos jihadistas na África Negra. A expansão da influência chinesa rumo ao mar Mediterrâneo seria algo intolerável ao Ocidente Coletivo e seu projeto de transformar o referido em mar em um lago da OTAN.
A China, neste jogo de desafio aberto à sua presença na África, tem sido obrigada a se submeter aos desígnios de projetos nacionais nascentes, mas com elevado nível de consciência, sinalizando apoio real à industrialização local e reversão da tendência à deterioração dos termos de troca. Os chineses, desde o encontro da FOCAC de 2021, têm sido pressionados de forma aberta, pelos africanos, a elevar a qualidade de sua intervenção financeira em projetos que não aprofundem a condição africana de mera exportadora de commodities.
Por exemplo, as relações entre a China e o Mali foram alçadas ao grau de “parceria estratégica” em 2024. Neste mesmo ano a China comprometeu-se a investir US$ 51 bilhões nos países africanos após uma ação unitária do continente no sentido de pressionar o país asiático a ser promotor de projetos de industrialização no continente. Um exemplo está na percepção africana nas possibilidades abertas pela indústria siderúrgica, com vários projetos chineses de alto impacto. No Zimbábue, a Dinson Iron and Steel Company está construindo, com recursos e tecnologia chineses, uma usina siderúrgica de US$ 1 bilhão perto de Mvuma.
Já é a maior planta siderúrgica da África, produzindo 600 mil toneladas de aço por ano desde 2024. Atualmente na segunda fase de seu desenvolvimento, o projeto visa reduzir as importações de aço do Zimbábue e contribuir com US$ 5 bilhões para a economia nacional.
Na África do Sul, a Industrial Development Corporation fez no ano passado uma parceria com o grupo chinês Hebei Iron & Steel no ano passado, para desenvolver uma usina siderúrgica de US$ 4,5 bilhões, com o objetivo de aumentar a concorrência local, reduzir os preços do aço e apoiar a criação de empregos.
Estima-se que, de 2000 a 2023, credores chineses concederam 1.306 empréstimos, totalizando US$ 182,28 bilhões, a 49 governos africanos e sete organismos regionais. Em 2023, os chineses firmaram 13 novos compromissos, no valor de US$ 4,61 bilhões, para oito países e duas instituições financeiras regionais. Este foi o primeiro aumento no valor anual de empréstimos à África desde 2016, mas ainda está muito abaixo dos primeiros anos da Iniciativa Cinturão e Rota (BRI), quando os compromissos anuais acumulados ultrapassavam US$ 10 bilhões.
A cooperação entre a China e a África ainda demanda uma série de sínteses. Acreditamos que novos desenvolvimentos teóricos advirão desta relação, pois se trata de interações onde elementos de novidade vão sendo colocados. O primeiro deles é o fato de a China não se dispor a ser uma força de dominação, “civilizatória” e com práticas que remontariam tanto ao rei da Bélgica quanto ao nefasto papel que o FMI e o Banco Mundial jogaram na década de 1990. Nem tampouco os chineses estão dispostos a vender consultorias sobre democracia e instituições. Preferem entregar pontes e ferrovias.
A África não está mais disposta a aceitar o papel de coadjuvante nas relações internacionais, nem o comportamento infantilizado que o imperialismo buscou entregar ao continente. Se é verdade que nem todos os governos do continentes estão dispostos a ser instrumentos de ação real em prol de uma segunda independência, é fato que a tendência é o da busca por vantagens diante da disputa geopolítica acirrada entre o Ocidente Coletivo e a China (além de Rússia e Índia). A questão é saber até que ponto a África está preparado para se colocar em pé diante desta imensa janela de oportunidades.
O que percebemos à distância é a existência de um sentimento novo por aquelas bandas. Nada será como antes, ainda mais diante dos resultados da intervenção ocidental na Líbia e a proliferação de grupos jihadistas e a contínua busca pela desestabilização das recentes experiências do Sahel. Os chineses são peça fundamental neste processo. O Sul Global participa de uma nova onda de independência na região, invertendo as teorias do imperialismo.
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