A tempestuosa identidade (latino-)americana no Brasil

Pindorama, dizem, vive de costas para seu continente. Em novo livro, Bernardo Ricupero debruça-se sobre as interpretações que politizam – entre apropriações e conflitos de ideias – a inserção brasileira entre os hermanos

Imagem: -J. Hondius (1607)
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Este texto foi originalmente publicado no Blog da Biblioteca Virtual do Pensamento Social (BVPS), com o título “E depois de A tempestade?” Para ler outros textos da BVPS por nós publicados, clique aqui.

CALIBAN: You taught me language, and my profit on’t
Is, I know how tu curse.
William Shakespeare, The Tempest, 1611

Vou aprender a ler
Pra ensinar meus camaradas
‘Prender a ler
Joao Roberto Caribe Mendes / Capinan, Yáyá Massemba, 2003

É recorrente a ideia de que Brasil e América Hispânica estão de costas um para o outro na história intelectual. A variação mais contundente da mesma afirmação mobiliza inclusive a expressão América Latina como se ela fosse sinônimo ou prerrogativa das antigas colônias espanholas, nossas vizinhas. Quantos acadêmicos brasileiros se descobriram latino-americanos em departamentos universitários norte-americanos, ao menos quando eles pareciam locais atraentes para se ir? Outros, por razões biográficas acidentais e ideológicas, cultivaram interesse e conhecimento ímpares sobre o Brasil na América Latina. O assunto volta à tona como problema sociológico e político em vários momentos importantes, como foi o caso da questão do desenvolvimento nos anos 1950 e 1960, que gerou, inclusive, teorias relativamente originais no quadro mais amplo do debate sobre a modernização. O que sugere, portanto, que mais do que exatamente um desconhecimento mútuo, essa história parece, antes, talvez, a reiteração de uma ideia de desconhecimento mútuo como um autocultivo. Uma espécie, ela também, de impressão de recomeço do zero a cada nova geração, no Brasil?

São problemas muito difíceis e para os quais não há respostas unívocas. Mesmo porque relações culturais – ponhamos assim em termos bem gerais – não são estáveis, não se desenvolvem cumulativamente num sentido unívoco e de aperfeiçoamento das partes interlocutoras. E, claro, não estão acima dos conflitos sociais, políticos, econômicos e mesmo linguísticos. O Brasil, esse subcontinente falante da última flor do Lácio, cercado por todos os lados de uma das línguas mais faladas mundialmente, o espanhol. A propósito, uma das expressões mais dinâmicas nas relações entre o Brasil e seus vizinhos mais próximos é a espécie de língua livre, o “portunhol”, cada vez usada com menos constrangimento em nossas interações.

O que pensaria disso um Manuel Bandeira, por exemplo, que, além de poeta, foi tradutor e professor de literatura hispano-americana na Universidade do Brasil, de 1943 a 1956? Bandeira, aliás, já atuava desde os anos 1930 como mediador com “los hermanos” na vida cultural do Rio de Janeiro, então capital federal do Brasil. É conhecida sua amizade com Alfonso Reyes, escritor e embaixador do México no Brasil de 1930 a 1936. Mas, sem querer jogar lenha na fogueira, o papel desempenhado por Bandeira junto aos escritores hispano-americanos não teve reciprocidade equivalente. Depois, já no período da Segunda Guerra e do domínio de Pablo Neruda, os escritores hispânicos passariam a ser recebidos por Aníbal Machado, na Visconde de Pirajá, em Ipanema. Bandeira, sempre presente, mas mais discreto, pois não faz poesia política. De Reyes, ele deixou a lembrança no célebre poema “Rondó dos Cavalinhos” (“Alfonso Reyes partindo,/ E tanta gente ficando”).

Bernardo Ricupero é, sem dúvida, o intelectual brasileiro da nossa geração melhor preparado e equipado para lidar com questões das interpretações latino-americanas. Ele acaba de lançar sua tese de livre-docência, defendida em 2021 no Departamento de Ciência Política da Universidade de São Paulo, em livro: Entre Ariel, Caliban e Próspero: dilemas da identidade (latino) americana pensados a partir do Brasil. E o que estão fazendo as personagens da última peça de William Shakespeare, A Tempestade, encenada em 1611, aqui ao Sul do Novo Mundo? Como mostra Ricupero, há bons indícios da associação da ilha deserta da peça à América, especialmente um naufrágio em Bermudas de um navio da Companhia da Virgínia, a cujos investidores o bardo inglês estava ligado por interesses. Para não lembrar do ensaio seminal “Dos canibais”, de Michel Montaigne, que sugere que Caliban seria um nativo americano (Caliban seria um anagrama da palavra espanhola canibal, usada para se referir aos grupos indígenas Caraíbas). Para além disso, porém, A Tempestade acabou se convertendo numa alegoria para pensar a América, e muito especialmente o confronto entre a América que foi se tornando “latina” com uma outra América, a “saxã”.

É essa história fascinante da viagem das ideias, suas circulações e ressignificações, que o livro publicado neste início de 2025 pela editora Alameda nos conta. Um livro erudito, original, bem documentado e bem escrito. Um desses casos, infelizmente não muito comuns, de um grande tema contando num grande livro. Atento ao preceito de que a recepção das ideias revela mais sobre os receptores e seus contextos diferentes do que os supostamente originais, Ricupero reconstitui um século de apropriações e conflitos interpretativos que, como também argumenta consistentemente, estariam na base de uma politização da identidade latino-americana. Antes de eu entrar mais no livro – e sairmos molhados dessa travessia com tempestades –, porém, deixe-me explicar o porquê de minha afirmação anterior sobre Bernardo ser tarimbado como poucos para nos guiar nessa aventura intelectual.

Bernardo Ricupero dedicou toda a sua formação acadêmica – aliás toda ela realizada com base no Departamento de Ciência Política da USP, onde leciona – à América Latina. Sua dissertação de mestrado estuda a “nacionalização” do marxismo no Brasil em Caio Prado Júnior, sem perder de vista o processo, digamos, funcionalmente equivalente no Peru, como José Carlos Mariátegui. A dissertação foi publicada em 2000 com o título de Caio Prado Jr. e a nacionalização do marxismo no Brasil.

Sua tese de doutorado, também orientada por Gildo Marçal Brandão (uma das pessoas a quem o livro é dedicado), toma mais diretamente a comparação como um problema teórico-metodológico, e coloca em escrutínio contrapontístico o romantismo no Brasil tendo em vista a Argentina. Publicado como livro em 2004, O romantismo e a ideia de nação no Brasil (1830-1870) mostra como independência literária, historiografia nacional, mestiçagem e silêncio cauteloso sobre a escravidão são alguns dos elementos assentados pelo romantismo brasileiro na construção social da ideia de nação. É importante ler José de Alencar em contraponto a autores como Echeverría, Sarmiento, Alberdi, condutores da ideia de nação na Argentina.

Esse background, que também se multiplica em disciplinas e orientações acadêmicas sobre a América Latina nas duas últimas décadas, adensa o debate do marxismo acadêmico uspiano, ao qual Bernardo Ricupero também se filia. No conjunto, seus trabalhos sugerem que, para que se possa apreender os efeitos políticos mútuos entre processos ideológicos e estruturas de poder, não devemos nos deter na constatação da importação de instituições e ideias que marcam as sociedades de matriz colonial. Mas, partindo desse mesmo mecanismo social, propõe a partir de Roberto Schwarz, sobretudo, qualificar as relações dialéticas, ainda que negativas, entre importação e apropriação social, que podem singularizá-las. Assim, a perspectiva comparativa entre sociedades de matriz colonial impõe-se como recurso metodológico na definição do sentido político assumido pelas ideias e pelas instituições em cada sociedade. Impasses de ordem marco-sociológica e econômica ocupam os lugares da dualidade nessa perspectiva que Bernardo vem contribuindo para renovar.

Como se vê, estamos em mãos hábeis para a navegação por mares turbulentos – do século XVII de Shakespeare à longa passagem do XIX ao XX, dos meados dos anos 1950 até os anos 1980 do século passado, temporalidade coberta no livro de que ora nos ocupamos. É muito impressionante a quantidade e a diversidade de matéria textual levantada e analisada na pesquisa ao longo dos anos. Quantas leituras e releituras a subsidiam? Quantos escritores usaram personagens retirados do trabalho do dramaturgo inglês como metáforas para entenderem o que seria próprio à América Latina e o que seria comum a toda uma América? Que eu saiba, tendo escrito eu mesmo meu doutorado sobre Ronald de Carvalho, autor de O espelho de Ariel (1922), estão todos lá no livro de Bernardo, ainda que com ênfases e papéis diferentes na economia interna explicativa do livro. José Enrique Rodó, Roberto Fernández Retamar e Richard Morse, que a mobilizaram diretamente, formam não apenas o eixo da análise, mas também suas viradas na longa duração.

Além desses autores, há os que com eles dialogam sem necessariamente trazerem as metáforas shakespearianas tão direta ou centralmente: Eduardo Prado, Joaquim Nabuco, Ruy Barbosa, Manoel de Oliveira Lima, José Veríssimo, Manoel Bomfim, Oswald de Andrade, José Vasconcellos, Rubén Darío, Paul Groussac, Francisco Garcia Calderón, Pedro Henríquez Ureña, José Vasconcelos, Alfonso Reyes, Emir Rodríguez Monegal e Leopoldo Zea são alguns deles. É um repertório de autores e ideias muito impressionante e que, mesmo nem sempre referidos uns aos outros, permite a Bernardo Ricupero explorar o que chama de uma “certa intertextualidade” entre eles.

Identidade é relação. Politizar identidades é desnaturalizar relações. O foco, nunca perdido no livro, é a história das ideias sobre a identidade latino-americana em relação à norte-americana, especialmente vista do Brasil, ma non troppo. Como disse, é a trinca Rodó-Retamar-Morse que estrutura a massa de material primário e a análise do autor. O uruguaio José Enrique Rodó, quando o século XX se abria e os Estados Unidos emergiam como potência, identificou latinos com o espiritualismo do gênio alado Ariel, contraposto ao materialismo do “escravo selvagem e deformado” Caliban, supostamente mais próximo de anglo-saxões. Após a Revolução Cubana, Roberto Fernández Retamar reivindica a revolta de Caliban contra o senhor da ilha, Próspero, para a América Latina que enfrentava o desafio do imperialismo norte-americano. Já no final do século XX, momento em que a autoestima dos Estados Unidos era crescentemente colocada em questão, o norte-americano Richard Morse defendeu que Próspero, identificado com seu país, olhasse para o espelho de seus vizinhos como forma de lidar com suas dúvidas e incertezas.

Ao invés de pensar esses autores como “momentos decisivos”, ao modo da Formação da literatura brasileira, de Antonio Candido, Ricupero acaba se aproximando do historiador das ideias políticas John G. A. Pocock. Como notou Maria Ligia Prado no excelente prefácio ao livro, Ricupero parece inspirado na ideia de “momento maquiaveliano” para organizar o texto e a análise em três partes: “o momento Ariel (em que a questão central é a cultura)” e José Enrique Rodó constitui o centro do debate; o “momento Caliban (em que a política assume um lugar proeminente)”, com o cubano Roberto Fernández Retamar; e o “momento Próspero (voltado especialmente para pensar a modernidade)”, em que se destaca a heresia de Richard Morse. The Machiavellian Moment (1975) me pareceu uma aproximação, de fato, muito acertada, pois o sentido dado por Pocock à ideia de “momento” envolve a combinação entre tempo e espaço distintos (em que o historiador trata em seu livro: o espaço e o tempo do republicanismo da Florença do Renascimento) e suas reverberações (no caso, nos três séculos seguintes, quando desempenha papel estrutural na constituição do republicanismo inglês e norte-americano), acrescento eu.

Não puxarei mais esse fio, mas aviso leitoras e leitores que o livro é riquíssimo como montagem teórica e metodológica em torno dessa ideia de “momentos”, bem como em termos de estratégia narrativa, que, ademais, permite ao autor simultaneamente pensar e pesar o diacrônico e o sincrônico nas apropriações de A tempestade e, desse modo, discutir o que é comum e o que é diferente na identidade latino-americana face à norte-americana ou estadunidense. E, nela, na diferença, sobretudo, o que há de comum e perene, e o que há de particular em cada momento e também entre os autores, afinal, tão distintos. Na apresentação, Ricupero faz questão de chamar a atenção para o fato de que, no livro, os três momentos acabaram por ter tamanhos muito diferentes, com franca concentração no momento Ariel. Tudo bem, as razões apontadas, inclusive as contingentes, envolvidas na feitura de um livro dessa envergadura, são inteiramente defensáveis; mas, se fosse preciso, eu lembraria a ele que todo desenvolvimento acaba sendo desigual, mas combinado, não é mesmo?

Uma grande conquista do livro, que merece a atenção de todos nós especialistas, diz respeito ao caráter relativamente aberto da análise diacrônica planejada. Num dos enunciados teórico-metodológicos centrais – embora discretamente formulado no livro, como, aliás, é discreta toda a discussão desse nível, já que são os textos forjados em torno de Ariel, Caliban e Próspero que protagonizam o enredo do livro, e não as particularidades e picuinhas acadêmicas –, Bernardo afirma: “A história se manifestaria na ambivalência, sendo também a dimensão a partir da qual o texto se inseriria na história”. Ele ressoa outro historiador das ideias, Reinhart Koselleck, a quem também recorre, neste caso explicitamente, para trabalhar a ideia de “camadas de significação” presentes num conceito e qualificar o que nele se manifesta tanto como permanência quanto como mudança. E mais: “Atrai-me também como o historiador alemão destaca a relação entre história dos conceitos e história social, no sentido de que os conceitos podem tanto funcionar como ‘fatores causais como indicadores de mudança histórica’”.

O comum e o próprio. As permanências e as mudanças. A matéria viva dos livros ressuscitados por Bernardo Ricupero – e uso a expressão não apenas por estar escrevendo esta resenha num feriadão de Páscoa, mas porque ela cabe perfeitamente ao caso, me parece, de tão esquecidos que esses livros estavam, e talvez mesmo desconhecidos das novas gerações de intelectuais brasileiros. A meu ver, parte destes se deixou levar muito unilateralmente pela politização das identidades apenas no plano interno, fazendo o trabalho sem dúvida necessário de revirar os escombros da identidade nacional e mostrar o tanto de violências e apagamentos que foram produzidos para sustentá-la no projeto de construção do Estado-nação que durou quase dois séculos no Brasil. Mas já vivemos tempos de desacoplamento entre essas esferas. É preciso, agora mais do que nunca, correr atrás da compreensão das dinâmicas transnacionais e globais que nos definem, juntam e separam. E, num momento em que os Estados Unidos passam por transformações políticas de ordem carismática e populista tão incrivelmente discrepantes de tudo o que eles escreveram sobre si mesmos e em que muitos acreditaram, ler Entre Ariel, Caliban e Próspero não deixará também, ao que parece, de ser uma forma de nos prepararmos para o futuro bem próximo. Mas e este “entre”, o que será ele?

Petrópolis-RJ, 19 de abril de 2025

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