A condenação perpétua de Silvio Almeida

Mesmo em nome da justiça, condenações morais são perpétuas, trituram vidas e não fazem avançar as lutas. Em nome do respeito ao ex-ministro e às mulheres vítimas, seria hora de virar a chave da “judicialização” e apostar em mecanismos que não reiterem opressões

Foto: Fernando Frazão/Agência Brasil
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Vocês acham que não tem nada a ver com racismo, a velocidade fulminante com que se acusou, julgou e condenou à abominação perpétua e irrevogável um homem, um homem negro brilhante, devotado à luta antirracista, que por sua capacidade e trajetória se destacava como postulante a posições de liderança em âmbito nacional e internacional? Vocês acham mesmo que a sem-cerimônia com que se lhe marcou o lombo com a figura em brasa do banimento nada tem a ver com a cor desse homem, com sua ancestralidade, com a negritude retinta de sua pele? Silvio Almeida, em menos de 24 horas, foi banido da pátria dos cidadãos decentes e honrados, aqueles a quem se concede voz e dignidade. Faria sentido que ele viesse a ser para sempre um apátrida, vagando entre o desprezo arrogante da direita e a repulsa inflamada da esquerda? Um homem invisível?, não, pior. 

Vocês pensaram que não haveria destino mais doloroso do que a invisibilidade? Pois há, porque a invisibilidade, embora devastadora, pode servir a estratégias de sobrevivência, oferecendo uma espécie de sombra para quem precisa desesperadamente escapar de algozes onipresentes. Invisibilidade pode ser trincheira solitária para quem o desaparecimento é morte mais suportável do que o aviltamento sem consolo, trégua ou salvação. O preso condenado um dia cumpre a sentença, o preso torturado cultiva a esperança de reparação futura, mas a pessoa moralmente desconstituída na fogueira da linguagem nunca mais terá abrigo em nenhuma versão futura de nossa história comum. A pessoa moralmente estigmatizada corre o risco de vir a ser, enquanto viver, um morto-vivo que contamina, com a morte que ostenta, o espaço ao redor. 

Uma acusação autossuficiente percorre todas as etapas num átimo, da denúncia ao patíbulo. Quem ousará por-se ao lado do condenado à morte que porta consigo a morte adiada, contagiando os ambientes? Relatar a dor inominável da execração moral significará aliar-se ao perpetrador e trazer para si o estigma da cumplicidade. Quem se arriscará a imolar-se na pira sacrificial dos bons sentimentos? Quem ensaiar um gesto de empatia com o banido será apedrejado com as réplicas óbvias e inevitáveis, que cobrarão a omissão da outra dor, a dor das vítimas, o sofrimento negligenciado quando o foco da descrição é o tormento imposto ao acusado. Mais uma volta no parafuso, acuando os que duvidam, hesitam, lamentam a tragédia que se abate sobre ambos, acusado e vítima.  

O conflito seríssimo entre a necessidade de legitimar a voz das vítimas, tomando a sério as acusações, e, ao mesmo tempo, respeitar a presunção de inocência e o direito de defesa, este conflito está longe de ter sido resolvido, seja legalmente, seja cultural, moral e politicamente. Estamos pendurados sobre o abismo por um fio, e para que ele não se rompa temos de, pelo menos, penso eu, ter humildade e extremo cuidado ante casos desse tipo, casos que essa situação dramatiza de forma tão intensa, por suas implicações. Enfim, sinto uma tristeza imensa por todas as perdas envolvidas, e pela ausência do reconhecimento da gravidade desse impasse. Não há direito de defesa quando seu exercício é automaticamente tomado como renovada agressão à vítima, uma espécie de extensão do ato criminoso, desautorizando a própria defesa. Por outro lado, como sabemos, chegamos a esse extremo porque era preciso reverter o histórico silenciamento a que as mulheres eram submetidas, silenciamento patriarcal que desautorizava suas acusações. 

No caso de Silvio Almeida, não apenas este impasse foi reposto para a sociedade brasileira. A dupla opressão de gênero e raça está sendo mobilizada. Abusos têm sido a linguagem do opressor masculino. Acusações que precipitam condenações perpétuas e irreversíveis têm sido a linguagem do racismo, de que dá testemunho o encarceramento em massa de jovens negros, cujas sentenças tantas vezes se fundamentam na palavra do policial, responsável pela prisão em flagrante.

Em nome do respeito que o ex-ministro merece, em nome do respeito que merecem mulheres vítimas, eu me pergunto se não está na hora de virar a chave da judicialização, da policialização e da penalização das situações que talvez pudessem ser melhor enfrentadas e elaboradas por outras linguagens e mecanismos, em que fossem efetivamente rompidas as estruturas que acabam reiterando as opressões de raça e gênero, articuladas com o domínio de classe. Não nos iludamos: as condenações morais que são perpétuas e transcendem penas não fazem avançar as lutas mais nobres, apenas agravam as dramáticas iniquidades brasileiras, que trituram tantas vidas — com a mais perversa hipocrisia —, em nome da justiça, da ordem e da moralidade.

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3 comentários para "A condenação perpétua de Silvio Almeida"

  1. Bárbara disse:

    Sim, a situação é complexa e impõe um dilema sobre legitimar vozes das vítimas x presunção da inocência . Mas quais seriam estes mecanismos e linguagens para lidar com casos como este?

  2. LUZIA PORTO disse:

    Excelente reflexão que eu precisava ler, Luiz Eduardo. Na verdade, todos nós. Se eu discordar do que tem sido dito nas redes sociais, sou vista como machista, retrógrada. Apenas acho que Sílvio Almeida foi condenado rapidamente demais. Entendo perfeitamente que mulheres vítimas de abuso precisam ser acolhidas. É difícil falar sobre o trauma. Mas é preciso apurar o que houve. É existe a presunção de inocência. Obrigada pelo texto.

  3. Nadia Degrazia Ribeiro disse:

    Excelente o artigo sobre Escrita a mao

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