Três narrativas para um mundo em desordem

É possível ver conflitos atuais em chaves distintas: “democracias” contra os autoritarismos; os nacionalismos contra ordem global opressora; e o capitalismo contra sua superação. O que expressam e como situar o governo Lula em face delas?

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Título original:
“Três propagandas, três contradições, três orientações para um mundo em desordem”

Por Diogo Fagundes | Imagem: Jonathan McHugh

Há, atualmente, três propagandas acerca do conflito político-ideológico global, a depender da definição da contradição principal a organizar a clivagem da política dos Estados. E onde o governo Lula se situa neste quadro? Veremos.

1. A primeira contradição organiza uma oposição entre, de um lado, as modernas democracias ocidentais e, de outro, as ameaças tidas como despóticas ou arcaicas às modernas instituições do capitalismo liberal e ocidental.

Trata-se do discurso predominante no setor com verniz mais moderno das potências capitalistas do Ocidente, a difundir uma ampla gama de valores (democracias representativas, liberdade de opinião e imprensa, liberdade sexual, diversidade, direitos humanos, globalização) tidos como representantes da (única) modernidade possível.

Até uns sete anos atrás, esse vetor “moderno”, articulando um desejo pelo Ocidente, voltava-se sobretudo contra variações do islamismo político no Oriente Médio e remanescentes dos Estados socialistas e dos nacionalismos terceiro-mundistas nascidos da Guerra Fria.

No entanto, desde a ascensão do fenômeno Trump, assim como do Brexit e do crescimento da extrema-direita em uma escala internacional (Bolsonaro, Modi, Orbán, etc.), a tônica desta propaganda se volta contra forças fascistóides que geram confusão e arruaça na própria organização dos Estados imperialistas centrais, vide a invasão do Capitólio pelos trumpistas mais celerados.

Vemos, desta forma, até mesmo um novo “movimento antifascista” se desenvolver, apoiado pela esquerda dos próprios sistemas imperialistas ocidentais, em torno de ideais progressistas contra o racismo, o supremacismo branco, a xenofobia, a cultura patriarcal e homofóbica. A classe média “educada” e ocidentalizada é a principal base de massa deste movimento, daí certa impotência estratégica e confusão organizativa e ideológica.

Ironicamente, a discussão política retorna, assim, a termos muito semelhantes ao debate público de fins do século XVIII: parlamentarismo e liberalismo versus despotismo. E diziam que o comunismo que era velho…

2. O segundo paradigma de contradição principal envolve a defesa de reações nacionalistas contra a natureza internacionalista e dissolvente de tradições culturais do capitalismo transnacional e financeiro (chamado, muitas vezes, de “globalismo”).

Tais reações podem assumir um caráter tradicionalista e até reacionário (o legado do czarismo e da Igreja Ortodoxa cada vez mais valorizados na Rússia de Putin, o islamismo xiita no Irã, o sonho de um retorno do sultanato turco-otomano com Erdogan, o retorno do militarismo no Japão, o “make America great again” do Trump, os sonhos nostálgicos da antiga grandeza francesa, com Le Pen…), mas podemos considerar as variações esquerdistas, como o bolivarianismo e mesmo a combinação do legado cultural chinês tradicional (confucionismo) com a história de reconstrução e renascença nacional, após o chamado século das humilhações, da Revolução de 1949.

É bom frisar que esses projetos não colocam em contestação a organização hegemônica do capitalismo global, no máximo introduzem medidas de contenção através da valorização de lógicas distintas (nacionais, morais, religiosas) a atenuar o liberalismo sem limites. A contradição entre esses projetos nacionais alternativos e o capitalismo hegemônico do Ocidente pode levar (na verdade, já está levando) a guerras destrutivas e catastróficas, tal como no cenário de 1914 a 1918 do século passado.

3. Por fim, um polo alternativo e hoje muito enfraquecido, a organizar a contradição entre capitalismo e uma organização socioeconômica antagônica e alternativa, ainda que dentro do paradigma da modernidade: o socialismo.

Sem uma alternativa universalista de uma nova humanidade (que produziu efeitos intensos no século XX a partir da Revolução de Outubro de 1917), temo que nos afundaremos numa contradição entre duas versões de capitalismo, a organizar guerras niilistas e enorme destruição dos recursos humanos e naturais do planeta.

Após a derrota da URSS e seu bloco socialista (que, convenhamos, já estava apodrecendo há um tempo antes de seu fim), bem como do fracasso da tentativa de Mao em sua Revolução Cultural, apenas lampejos de uma ideia alternativa de humanidade floresceram e a América Latina foi um palco especial para isto, com seu ciclo de mobilizações de massa e governos progressistas.

No velho mundo, movimentos interessantes na esteira da Primavera Árabe, como o Occupy Wall Street, os indignados espanhóis e a revolta do povo grego, criaram alternativas políticas que geraram muita esperança e reacenderam a chama da paixão igualitária. Entretanto, logo capitularam ou demonstraram-se incapazes (Syriza e Podemos) de ser uma alternativa real. Na intelectualidade, no entanto, vemos sinais de uma nova geração de intelectuais, imunes ao sentimento renegado dos ex-esquerdistas impactados com a queda do Muro de Berlim, interessados na potência das ideias marxistas e em um balanço crítico, mas não derrotista nem resignado, da história do socialismo nos dois últimos séculos. É a partir daí, e na ligação dessa intelectualidade com o povo trabalhador, em especial sua juventude (desorientada e entregue ao niilismo desesperado que o capitalismo oferece) que devemos trabalhar.

Podemos encaixar o governo Lula em qual desses três quadrantes? Um olhar atento observará que a resposta é: em todos!

Em relação ao primeiro: Lula se cacifa como liderança anti-Bolsonaro ao formar uma ampla frente, cujo único ponto em comum é a defesa do capitalismo e de parâmetros mínimos exigidos de corretismo político. Sua intenção de formar uma frente única antifascista internacional conta com Joe Biden como interlocutor privilegiado, devido ao interesse comum em derrotar um adversário político mais parecido com um gângster do que com um político tradicional. Talvez este seja o fator principal a explicar o fato de as Forças Armadas brasileiras, tradicionais sabujas de Washington, não terem embarcado de forma mais audaciosa no golpismo bolsonarista.

Mas Lula também é, em parte, resultado de uma reação local ao neoliberal triunfante com o fim da Guerra Fria. Ainda incorpora, mesmo que timidamente, certa intenção de fazer o Brasil ter alguma autonomia soberana em assuntos estratégicos, como houve com a política para a Petrobrás no passado, além do encabeçamento de uma integração regional não dependente de Washington. A fraqueza ideológica do lulismo impede que esse esboço adquira um caráter mais programático e claro.

Por fim, o PT é fruto da luta popular de caráter emancipatório e com motivações críticas ao capitalismo e sua exploração inerente. De certa forma, antecipou em algumas décadas toda esta onda nova de partidos-movimento críticos aos aspectos mais selvagens do capitalismo hegemônico. Claro que tudo isso é muito insuficiente para configurar uma alternativa estratégica realmente ameaçadora ao domínio da oligarquia financeira (no final das contas, o PT realmente não superou a social-democracia nem o nacional-desenvolvimentismo, como pretendia originalmente), mas esboça sentimentos e intenções de algo diferente, gera expectativas, suscita queixas e esperanças de algo novo. Pode alimentar lutas e movimentos populares, se estes souberem explorar as frestas, não se paralisando pelo adesismo e institucionalismo. Somente um novo comunismo pode, em nível global, representar qualquer alternativa realmente antagônica.

Este caráter do petismo está, entretanto, cada vez mais sobredeterminado pela contradição primeira entre democracia e fascismo, o que enfraquece seus aspectos mais radicais e militantes (a isso se soma à forte derrota imposta ao sindicalismo cutista desde o governo Temer e seu estado atual de torpeza política), ainda vivos, entretanto, principalmente para aqueles que ainda mantêm um senso de pertencimento político à experiência cubana e aos elementos mais avançados do progressismo anti-imperialista do subcontinente.

A orientação da política externa e da política econômica parecem prometer, entretanto, mais social-liberalismo em nome da unidade contra o bolsonarismo do que audácia rumo à transformação social. Se isto é suficiente mesmo para o limitado objetivo de uma “reconstrução nacional” (isto é, uma restauração do consenso refratário aos anos de ditadura militar, estabilizado na Constituição de 1988, ameaçada de morte pelo bolsonarismo), é o que resta para ver. Os céticos, dentre os quais me incluo, observam que sem ideias e luta popular orientando uma via estratégica alternativa ao capitalismo, as nuvens de um possível evento climático extremo (o fascismo) sempre pairam sobre as enfraquecidas democracias liberais.

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