Saúde mental: Saídas ao “infarto psíquico”
Quando a mente é convidada a agir de forma compulsiva e ensimesmada, a sanidade não pode ser compreendida como uma meta de sucesso individual, ou mero consumo de bem-estar. Seu equilíbrio depende da noção de vida coletiva. E precisa de incentivo para a reflexão
Publicado 27/08/2025 às 17:49

A saúde mental tornou-se uma questão de interesse, influência e impacto coletivo direto. O mundo como vem se organizando e transformando (sem ainda uma estrutura clara), evidentemente requer que a dinâmica na qual este tema está envolvido seja reconhecida de forma interdependente, ou seja, dentro do ponto de vista individual e, ao mesmo tempo, no campo coletivo.
Um é o outro, ao mesmo tempo. Hoje observamos que a sustentabilidade da vida, da vivência no mundo e a viabilidade do existir, incluindo a saúde ecológica, social, cultural, econômica e tecnológica dependem de uma raiz comum: o mínimo equilíbrio em saúde mental. Este equilíbrio não significa um ganho individual ou uma meta/objetivo a ser construído de forma individualista. Não se trata de um projeto consumista de bem-estar, uma conquista do indivíduo no sentido de garantir sua auto sustentabilidade para então agir no mundo e sobre relações humanas. Nem mesmo é um processo linear/cronológico pois, nesse ponto de vista, o campo individual somente se equilibra de forma completa desde que a saúde mental coletiva também esteja regulada, que a vida coletiva, as buscas coletivas e os propósitos coletivos estejam também operando, minimamente, numa dinâmica sustentável – onde há uma partilha nutritiva entre o meio e o indivíduo, em uma dinâmica estável.
O dinamismo estável é aquele no qual tudo é observado com uma determinada distância – os pensamentos, as emoções, as ações, as relações e os efeitos desses elementos na vida e no mundo. Assim, um primeiro estágio do equilíbrio mental é ser capaz de observar. O segundo seria a capacidade de compreender que muito do que é observado não pode ser controlado – está submetido a leis que extrapolam o campo cognitivo ou da razão. Em seguida, que essas forças naturais, não controláveis pelo desejo individual humano e, sendo anteriores ao querer egoístico, regem a vitalidade do que é coletivo. A partir da noção de coletividade, as ações não são provocadas pelo projeto descontrolado do humano em evolução, mas pela coesão com o grupo.
Aqui estamos em face de uma infinidade de dúvidas, novos conceitos sobre a realidade humana, transformações exponenciais e contínuas e a mudança de paradigmas em todas as áreas da vida e do conhecimento. Por esse motivo, o estado mental humano, de modo geral, está comprometido, em primeiro lugar, pois vivencia um processo de desestabilização e reestruturação e, em segundo, pois não experimenta na mesma medida o incentivo para refletir sobre este processo. A vida claramente não é capaz de ser sustentada dentro de uma ótica materializada, puramente sistemática, causal e mecânica. Neste sentido, a saúde mental ultrapassa o campo da patologia biofísica, extrapola a dimensão pessoal estendendo-se a um projeto comunitário.
A fragmentação de grupos e coletivos representam a própria fragmentação da mente humana diante de incertezas que pouco fomos ensinados a enfrentar e a inabilidade do cérebro humano em reconhecer velocidade das transformações e adaptar-se à quantidade de informação a que está submetido. Dessa forma, perde a capacidade de autorregulação a nível neural, mental e física. Exatamente como verificamos no cenário coletivo. Na obra “A sociedade do cansaço”, o filósofo Byung-Chul Han nomeia essa perda de capacidade como “infarto psíquico”.
A dor de não mais se reconhecer associada a aparente necessidade de sempre ser algo novo com o fim de acompanhar a atualização que o mundo proclama passa a fragmentar ainda mais a mente, criando camadas e camadas de buscas que nunca são sanadas, uma vez que fomos ensinados que o resumo da vida pauta-se na ideia dopaminérgica de que o vir a ser e o vir a ter não somente soa mais prazeroso (para mentes condicionadas a fugir de si mesmas) como também faz do viver um processo puramente lucrativo ao invés de criativo, produtivo no lugar de fértil e, portanto, movendo um cenário irreal e ilusório no qual a consequência primária é a perda das raízes psicoemocionais, culturais e artísticas.
Deste modelo, cada vez menos humano, o próprio cérebro é mais demandado do que o seu próprio tempo evolutivo, tornando a cognição, o senso de eu, o estado mental e o sentido de comunidade aparentemente inadequados e sempre insuficientes. A mente é então convidada a movimentar-se sempre de forma compulsiva, ensimesmada e individualista, sempre tão ocupada que se torna incapaz de enxergar o todo, a si mesma e ao outro. E assim a perda de si, a perda da mente, segue um fluxo no qual emoções passam a ser sistematizadas em sintomas a serem regulados e suprimidos, a razão confundida com maturidade, a criatividade submetida ao utilitarismo. E o sonho, a intuição, a partilha e a leveza, natos à natureza humana, subjugados e condenados à inexistência, à ideia de precariedade, atraso e impotência. É como se de fato nossas mentes estivessem sendo colonizadas.
O desequilíbrio do sistema de saúde se traduz quando este passa a gerar necessidades infinitas em seus usuários – é mantê-los sob sua dependência (embora sem intenção, uma vez que faz parte de toda uma premissa cultural-industrial). Assim se reproduz um modo de pensar e fazer saúde voltado para a geração de necessidades ininterruptas. Estabelece-se a cultura do precisar – uma sociedade que não sabe reconhecer que os recursos que tem são plenamente suficientes é o reflexo de indivíduos que desaprenderam a identificar os seus pontos de suficiência como base para corrigir as arestas – e explora o meio externo na tentativa de encontrar um equilíbrio interno.
Se o avanço e o crescimento não caminham proporcionando maior clareza e discernimento do que já somos, não é avanço nem crescimento – é fuga. Se esses processos facilitam um lado da vida mas continuam gerando necessidades internas, ele não é bem sucedido (e em nenhum ponto de vista).
Mas esta não é somente uma história trágica. É também um chamado – a considerar a real profundidade do que devemos entender por saúde mental, a posição que essa pauta representa para o mundo e o coletivo, a compreensão de que a necessidade não mais é a de acumular conceitos ou centralizar a atenção na patologização, nas respostas prontas e a clareza de que tratar e curar uma mente tem impacto no restabelecimento de todo um coletivo, na descolonização comunitária e no cultivo do pensar a partir da sabedoria do que já somos e do que a natureza reflete sobre nós.
O equilíbrio, neste sentido, parte de um continuum de envolvimento sem apego com todas as formas que tomamos ao longo da vida (no ponto de vista individual) e ao longo da história (na ótica do coletivo), proporcionando o discernimento entre quais desses inúmeros elementos cabem reproduzir ao agora que se apresenta, quais podem ser adaptados, quais outros eliminados ao mesmo tempo que preservamos um espaço vazio para que um genuinamente novo seja originado.
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