Quando até o ócio vira mercadoria
Com a tecnologia, promessa era de tempo mais livre – mas o resultado é esgotamento. Sociedade foi capturada um novo regime temporal em que plataformas digitais colonizam a atenção. Adorno já ironizava “a coerção invisível do lazer organizado”
Publicado 17/09/2025 às 16:40

A promessa era sedutora: com o avanço tecnológico, ganharíamos mais tempo para nós mesmos. O século XX testemunhou a entrada triunfal de eletrodomésticos que prometiam aliviar o peso das tarefas diárias. Máquinas de lavar, micro-ondas, aspiradores de pó — cada nova invenção era vendida como libertadora. A lógica era simples: quanto mais tecnologia, mais tempo sobraria para a vida, para o lazer, para a formação humana.
Mas chegamos ao século XXI e a realidade se inverteu. Em vez de usufruir do tão sonhado tempo livre, a sociedade se vê capturada por um novo regime temporal: o tempo sem tempo. Um tempo constantemente drenado por plataformas digitais que colonizam nossa atenção e transformam até o ócio em mercadoria.
Se algumas décadas atrás era raro encontrar uma família que possuísse uma máquina de lavar, hoje a maioria dos lares possui não só eletrodomésticos, mas também múltiplas telas. Em teoria, isso deveria significar mais espaço para o convívio, a educação, a arte, a política. No entanto, o que assistimos é uma progressiva erosão do tempo de vida.
O paradoxo é cruel: quanto mais dispositivos para ganhar tempo, mais tecnologias surgem para consumi-lo. A vida é atravessada por notificações incessantes, feeds infinitos, vídeos curtos que nos engolem em minutos que se tornam horas. Ganhamos tempo com um clique, mas o perdemos em rolagens intermináveis.
No Brasil, os indicadores já revelam os danos desse modelo. Crianças e adolescentes passam horas diante de telas, consumindo conteúdos digitais que, em grande parte, pouco contribuem para seu desenvolvimento cognitivo, social e humano. A situação tornou-se tão grave que o Governo Federal aprovou a Lei nº 15.100/2025, restringindo o uso de celulares e dispositivos eletrônicos nas escolas. Não por acaso: cresce o consenso de que o uso exacerbado de telas sem orientação gera problemas de saúde, incluindo quadros de ansiedade, depressão, déficit de atenção e isolamento social.
A infância, que deveria ser o espaço privilegiado da brincadeira, da curiosidade e do convívio humano, vem sendo sequestrada por algoritmos que moldam gostos, hábitos e comportamentos. A juventude, por sua vez, é capturada por uma lógica de produtividade constante: mesmo no lazer, é instada a performar, a produzir conteúdo, a se mostrar “presente” no palco das redes sociais.
A engrenagem é sutil, mas implacável. Cada clique, cada curtida, cada segundo diante da tela é registrado, refinado e transformado em mercadoria. O usuário imagina estar consumindo conteúdo gratuitamente, mas na verdade é ele mesmo o produto. Seu tempo, sua atenção, seus dados – tudo é processado para alimentar algoritmos que engordam o lucro das Big Techs.
Esse processo coloniza o que antes era espaço de vida plena: a conversa em família, o passeio no parque, o ócio criativo, a leitura sem distrações. Hoje, mesmo momentos íntimos são atravessados pelo apelo de registrar, compartilhar, curtir. O tempo existencial é reduzido a tempo de engajamento.
Adorno, ainda em meados do século XX, já alertava para essa armadilha. No clássico ensaio sobre a indústria cultural, denunciou a lógica que transforma até o tempo livre em mercadoria. Ao ironizar a naturalidade com que se pergunta “qual é o seu hobby?”, apontava para a coerção invisível do lazer organizado. O hobby, dizia ele, não é escolha autêntica, mas produto moldado pela oferta do mercado.
Hoje, essa crítica ressoa ainda mais forte. O “lazer digital” oferecido pelas plataformas não é neutro. Ele molda a atenção, orienta comportamentos, coloniza desejos. O indivíduo acredita estar escolhendo, mas é conduzido por algoritmos que decidem o que ele verá, ouvirá e desejará.
No capitalismo de plataforma, a mercadoria mais valiosa não é mais o petróleo, mas a atenção humana. É ela que sustenta os modelos de negócio baseados em publicidade, coleta de dados e vigilância comportamental. E atenção é tempo. Cada minuto diante da tela é um minuto convertido em lucro para gigantes como Google, Meta, Amazon e tantas outras.
Essa lógica não apenas consome o tempo livre, mas redefine a própria noção de tempo. O agora é fragmentado em notificações; o futuro é predito por algoritmos; o passado é armazenado em nuvens que jamais esquecem. O indivíduo perde a continuidade da experiência, vivendo em um presente perpétuo, ditado pelo ritmo das plataformas.
O resultado já se faz sentir. Crescem os índices de ansiedade, burnout digital, solidão e abandono afetivo. Relações presenciais são substituídas por interações mediadas por telas. O corpo pede descanso, mas a mente é mantida em alerta por estímulos incessantes.
O tempo sem tempo não é ausência de horas, mas saturação delas. É viver ocupado sem saber exatamente com o quê. É perder-se em rolagens infinitas, enquanto laços reais se enfraquecem. É acreditar que se está livre, quando na verdade se está algemado a uma máquina que transforma atenção em capital.
Quando você sentir que não tem tempo, pergunte-se: o que você tem feito com ele? Mas vá além: o que as plataformas têm feito do seu tempo? Essa é a verdadeira questão.
Porque, no fim, o que está em jogo não é apenas a organização da agenda, mas a colonização da vida. O capitalismo de plataforma não quer apenas sua força de trabalho: quer sua atenção, seu desejo, sua subjetividade. Quer transformar até o silêncio em dado, até a pausa em engajamento.
Eis o risco: que nos tornemos meras mercadorias, reduzidos a cliques e interações, enquanto a vida escorre pelos dedos. A mercadoria mais valiosa do século XXI é a sua atenção. E o preço a pagar por isso pode ser nada menos do que a própria humanidade.
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