Por um solstício das bibliotecas públicas
Se inventadas hoje, seriam “coisa de comunista”, alguém brincou. Talvez por isso, 800 fecharam no Brasil, de 2015 a 2020. Mas elas, e as subjetividades necessárias para recriá-las, são contrapontos necessários à distopia da nova aristocracia tecnológica
Publicado 11/04/2025 às 17:20

Apesar da necessidade de fazê-lo através de tradições trazidas pelos europeus, a sabedoria popular da cultura nordestina soube reconhecer a importância dos dois solstícios: as festas de São João não devem nada à importância das festas de fim de ano. Os ciclos resultantes são menores e suas consequências, para além da festa, aparecem com mais frequência. Pois o solstício – traduzido em celebrações e festividades diversas que vão sendo incorporadas pelas religiões, adquirindo novas formas e sendo carregado a outras partes do mundo por seus celebrantes expansionistas – geralmente traz consigo uma onda de reflexões, sensações, ideias para o novo ciclo, interpretações acerca do tempo que passou no ciclo que se fecha etc. 2024 chegou ao final como o ano de uma bateria de complicações com poucos precedentes nas últimas décadas, da guerra maior que muitos temem acontecer à intensificação da crise ecológica e a afirmação da resiliência da extrema direita no norte do mundo.
Colado a este último evento, assistimos nos últimos dias àquilo que o senador estadunidense Bernie Sanders descreveu em suas redes sociais como (“o governo da classe bilionária para a classe bilionária”, em suas palavras) a chegada em seu país da oligarquia como um modo de governo, na forma da atuação direta e escancarada de Elon Musk, como “patrono” do presidente eleito, numa sabotagem ao acordo bipartidário que evitaria o colapso orçamentário do governo. Musk ameaçou os congressistas que votassem a favor do pacote, dizendo que usaria seu poder para financiar e estimular a oposição em seus distritos eleitorais, o que causou o fracasso da proposta e a prorrogação da situação do orçamento pendurado (criando o alto risco do corte de salários de funcionários públicos e de interrupção de serviços diversos). É claro que o evento descrito por Sanders já ocorreu há muitas décadas atrás, e o que ele descreve é a manifestação explícita de uma realidade anteriormente subjacente e mascarada de muitas formas. Mas por que ela vem à tona nesse momento e de forma tão grotesca? Seria a aceitação e o fascínio de multidões pelo novo imperador que não tem medo de se colocar claramente acima do próprio presidente que ajudou a eleger?
O que ocorre no Brasil aparece de forma menos pessoal, sem a encarnação num único vilão todo poderoso, mas com consequências talvez ainda mais nefastas. Temos um grupo de agentes que se coloca efetivamente acima dos poderes constituídos e eleitos, com plenas capacidades de direcioná-los e chantageá-los através de um conjunto de ferramentas de grande capacidade de ação em larga escala. A Faria Lima, amplamente favorável ao retorno da extrema direita ao planalto, vai na contramão de todos os indicadores, e dobra sua aposta contra o governo, sabendo que o resultado vai ser a engrossada no caldo do rentismo através dos juros, que acaba trazendo o retorno da aposta impossível de ser perdida, mesmo com a eventual derrota do time apostado em 2026.
A ideia gramsciana da importância da atuação contra-hegemônica (que muitos, e não somente seus detratores, continuam interpretando de forma equivocada como um conjunto de lutas que teriam como objetivo a conquista e a prática da hegemonia pelas forças que visam a transformação social) parte exatamente do entendimento de que há uma conformação cultural de valores e de um ideário próprio dos grupos dominantes, que criam condições subjetivas para que os sujeitos que são diretamente prejudicados por suas ações entendam a realidade onde vivem como resultado normal, natural e inevitável do modo como as coisas são e funcionam. E Gramsci não é o único que continua nos fornecendo elementos importantes para o entendimento – muito subestimado na prática política – do lugar fundamental da cultura, dos valores, e da produção de subjetividades na conformação de caminhos possíveis e no enfrentamento aos retrocessos.
Esse é o ponto que nos traz ao momento do bate e volta do sol, da reflexão a respeito do momento que atravessamos, com a crise ecológica e climática nos lembrando que essa travessia é sempre coletiva, independente dos bunkers que se multiplicam dentre os 0,1%. Gostaríamos de viver mesmo num mundo em que os jovens admiram cada vez mais personagens como Musk e os menos célebres chantagistas da alta finança no Brasil? Como podemos, na atual conjuntura, continuar a fazer oposição e abrir caminhos alternativos em relação às grandes forças midiáticas (que de forma sutil vêm naturalizando e dando projeção aos personagens da extrema direita, como vimos no lamentável espetáculo do influencer-candidato em São Paulo esse ano) e àquelas que tomaram de assalto (através dos algoritmos ou da simples aquisição) as redes sociais que na década passada ajudavam de fato a fomentar o pensamento e a ação sintonizadas às contra-hegemonias interessadas no aprofundamento democrático? Em momentos, como o atual, de aparente fechamento do campo de possibilidades, a atuação no âmbito dos valores sempre permanecerá possível, mesmo que seja na escala imediata das relações mais diretas – como ocorreu durante a ditadura no Brasil.
Há algumas semanas me apareceu nas redes uma imagem interessante através da figura contemporânea do meme: se a biblioteca pública não existisse, e fosse inventada hoje, seus proponentes seriam tachados de comunistas (portanto violentos, corruptos, imorais, perversos e autoritários). Escolho essa figura da biblioteca pública e das subjetividades necessárias para sua invenção como o oposto daquilo que os circuitos hegemônicos estão valorizando e produzindo, que são justamente os projetos grandiosos de Elon Musk: a utopia absurda da nova aristocracia tecnológica da colonização privada de espaços fora da Terra, o ser humano andróide repleto de transplantes biotecnológicos (inclusive integrando a inteligência artificial ao cérebro) tendendo à superação de sua condição mortal etc.
De 2015 a 2020, quase 800 bibliotecas públicas fecharam no Brasil. É bem sabido que nas regiões do mundo que valorizam o conhecimento, as bibliotecas públicas abrem cedo e fecham tarde (muitas viram as noites funcionando), ficam lotadas, e têm estrutura para organizar e receber eventos diversos, de palestras a cursos livres, grupos de estudos, reuniões de movimentos e organizações sociais etc. E seus correlatos são igualmente abundantes e generosos (piscinas públicas, parques, …). Para fazer frente aos projetos de avanço do antropoceno e de constituição de um meio ultratecnificado que nos torna, cada vez mais, peças de uma grande engrenagem configurada e operada pela classe bilionária, precisamos de mais bibliotecas públicas e de seus familiares sociotécnicos. E das subjetividades capazes de cria-los e difundi-los.
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