Pandemia, Agronegócio e a ciência silenciada

O corolário “a Terra é plana” é só a face mais aberrante do negacionismo. Cortes em pesquisas, exílio de vozes dissonantes e desumanização da Ciência também compõem ataque, que visa esconder conexão entre agropecuária e epidemias

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Pandemia e Agronegócio, de Rob Wallace, filogeógrafo e biólogo evolucionista estadunidense. Edição: Elefante & Igra Kniga. Clique aqui para comprá-lo.

Seja por meio do corte de verbas dos centros de pesquisa, pela desinformação generalizada semeada nas redes sociais, ou ainda pelas próprias limitações que historicamente lhe conformaram, a ciência anda cada vez mais desvalorizada.

É em meio a esse contexto de descaso que o livro Pandemia e agronegócio: doenças infecciosas, capitalismo e ciência, do epidemiologista estadunidense Rob Wallace, lançado pelas editoras Elefante e IK em agosto de 2020, problematiza o papel social do conhecimento, denunciando a conjuntura reinante em que a ciência deve colaborar para a manutenção do poder político-econômico ou, caso não se curve, ser silenciada.

“Percebi repetidas vezes que o poder político molda tanto as doenças infecciosas quanto as ciências que as estudam”, afirma Rob Wallace, “e, no entanto, eu estava despreparado para a natureza e a extensão das suas depravações.”

Na prática, tais depravações funcionam mais ou menos assim: corta-se os recursos de universidades com relativos graus de independência enquanto se injeta dinheiro em agências governamentais ou autorregulatórias de baixa ou nenhuma autonomia, que direcionam pesquisas e relatórios de acordo com finalidades estritamente de mercado.

Desafiando poderes estabelecidos, Pandemia e agronegócio nos convida a refletir sobre as relações entre ciência e sociedade, alertando sobre como se esquivar a esse debate pode colocar a população mundial sob risco de um apocalipse viral.

O silenciamento da ciência opera por meio de múltiplas formas de negacionismo, dentre as quais o corolário “a Terra é plana” é apenas o mais aberrante. O holocausto não existiu, homoafetividade é resultante de falta de coerção, índios não têm cultura, cloroquina é adequada no combate ao coronavírus são desatinos fundados na negação do pensamento científico e se empenham em um projeto sombrio de aniquilamento da diversidade e de espoliação capitalista dos recursos naturais e da força de trabalho da população.

Assim, não é sem surpresa que nos deparamos com o tipo de negacionismo que Wallace nos apresenta, o qual nos conduziu ao estado pandêmico vigente.

Em 2006, o Ministério da Agricultura chinês foi a público desmentir pesquisa da Universidade Agrícola do Sul da China sobre a emergência de um novo genótipo de influenza no oeste de Guangdong, enquanto em 2007 um estudo do próprio Wallace foi classificado como “não científico” e “ridículo” pelo diretor do Centro de Prevenção da Gripe Aviária de Guangdong. Em ambos os casos não se tratava de contrapor argumentos ou novas pesquisas ao que foi dito, mas sim de pura e simples negação da prática científica.

Detalhe: o que estava em jogo nas constatações dos pesquisadores era a associação da epidemia de gripe aviária a seu lugar de origem específico, marcado pela substituição de estuários naturais biodiversos por monoculturas genéticas de baixa imunidade, infladas aos píncaros da insanidade por centenas de milhões de dólares em investimentos estrangeiros.

Piorando nosso contexto, outro procedimento de silenciamento da ciência é a ostracização das vozes dissonantes, principalmente quando o negacionismo não consegue produzir os efeitos sociais esperados — o próprio Wallace é um exemplo disso. Antes de começar a publicar suas críticas, chegou a ser consultor da Organização das Nações Unidas para Alimentação e Agricultura (FAO) e do Centro de Controle e Prevenção de Doenças Infecciosas (CDC) dos Estados Unidos.

O Brasil, que nada aprendeu com as epidemias de febre amarela, dengue e zika, segue com a destruição de seus ecossistemas, empurrando mosquitos a macacos — hospedeiros naturais desses vírus — para zonas de contato com humanos.

Em agosto de 2019, o presidente Jair Bolsonaro demitiu o então diretor do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe), Ricardo Galvão, professor titular do Instituto de Física da USP, após divulgação do aumento de 88% nos índices de desmatamento da Amazônia.

Não obstante, um tanto pela inépcia governamental em gerir sua própria agenda antiambiental e racista, mas também devido a um serviço público encampado por profissionais qualificados, dados sobre a escalada do desmatamento continuaram vindo à tona. Em 13 de julho de 2020, foi a vez da exoneração de Lubia Vinhas, que coordenava o monitoramento da cobertura florestal amazônica.

Afora esse empenho pelo silenciamento do pensamento científico, o livro de Wallace traz à luz outra face, aliás não tão alardeada, da atual crise da ciência: a de sua incapacidade inerente de tornar a vida humana melhor — vida humana em geral, prezado leitor, e não somente a sua.

Nossa indústria de memes denuncia com sagacidade o terraplanismo que assola todas as áreas do conhecimento com o objetivo de desconstruir fundamentos de visões de mundo pautadas em igualdade, equidade e solidariedade. Entretanto, será que a ciência, tal como vem majoritariamente operando desde sua origem, corresponde de fato aos elevados ideais de emancipação humana que cultivamos?

“O vírus influenza pode ser definido por sua estrutura molecular, genética, virologia, patogênese, biologia do hospedeiro, curso clínico, tratamento, modos de transmissão e filogenética. Obviamente, esse trabalho é essencial. Porém, limitar a investigação a esses tópicos prejudica o entendimento de mecanismos críticos que estão operando em outros níveis mais amplos da organização socioecológica. Esses mecanismos incluem a forma como rebanhos são adquiridos e organizados no tempo e no espaço”, escreve Wallace. “Em outras palavras, precisamos identificar quais decisões específicas, tomadas por governos e empresas, promovem o surgimento de um influenza virulento. Pensar somente em termos virológicos faz essas explicações desaparecerem — o que muito vem a calhar para a indústria de suínos.”

Em nome de uma dita neutralidade da ciência, que nunca existiu e nunca existirá, as ciências humanas não são convidadas a interpretar os resultados do laboratório. Porta-vozes de governos e agronegócios usam e abusam da divulgação de estudos pautados exclusivamente em paradigmas das ciências biológicas, que não só desviam a opinião das pessoas do contexto socioeconômico de origem das pandemias, como não fornecem nenhuma resposta que represente alternativa eficaz para escaparmos dos ciclos epidêmicos que continuam nos assolando a despeito dos avanços da biomedicina.

Jornais e revistas quando dos primeiros casos de covid-19 anunciavam buscas frenéticas pelo “paciente zero” em um mercado de animais silvestres de Wuhan, na China, afirmando ser esta a hipótese mais plausível, se não a única, sobre a contaminação de pessoas pelo vírus, que vive em morcegos e necessita de algum intermediário hospedeiro para ser capaz de infectar humanos.

Após décadas de notícias de contágios e epidemias de origem suína ou aviária, em um adiantado fevereiro de 2020, no calor da explosão do coronavírus, fomos surpreendidos pela notícia de que o culpado da vez era o até então desconhecido pangolim. Não sem antes engrossar o caldo racista contra chineses e seus hábitos alimentares, o quase extinto mamífero foi absolvido três meses depois. Animais em confinamento, imunodeprimidos e criados em zonas de contato com uma fauna silvestre alijada de seus ecossistemas naturais não estão sendo cogitados? Ou pesquisadores estão sendo silenciados?

Segundo Wallace, “nossas deficiências epistemológicas e epidemiológicas podem, afinal, ser uma só. Alguns patógenos evoluem a partir de estados populacionais sobre os quais não podemos ou, pior, nos recusamos a pensar”. E os resultados têm sido catastróficos.

Em 2006, a Universidade de Hong Kong identificou uma nova linhagem de influenza, que emergiu justamente após campanha de vacinação de aves pelo governo chinês, fazendo os pesquisadores cogitarem que a vacina (resultado científico) tenha pressionado a evolução do vírus.

Sem confrontar a conexão entre epidemias e agronegócio, a ciência problematizada em Pandemia e agronegócio segue correndo atrás do próprio rabo, a cada ano buscando uma nova vacina para novas cepas de vírus que incansavelmente evoluem.

Nos termos de Adorno e Horkheimer, o que opera é a razão instrumental, pautada pela dominação da natureza e pelo domínio dos seres humanos, uma racionalidade restrita a meios — no caso, a busca pela cura (para quem a ela puder ter acesso), e não a reflexão sobre a finalidade do conhecimento e as relações de poder que nele subjaz.

“Dada a natureza dos patógenos recém-emergentes e reemergentes, a interdisciplinaridade, que segue os patógenos através de diferentes domínios epistemológicos, pode alterar o foco das pesquisas”, explica Rob Wallace, que propõe um modelo de ciência não tão novo.

Já na década de 1920, o Instituto de Pesquisa Social de Frankfurt, na Alemanha,propunha a abordagem interdisciplinar como fundamento de análise dos fenômenos sociais, contando com pesquisadores de múltiplas áreas do conhecimento. O projeto naufragou e até hoje não superamos o cartesianismo que dá o tom à maior parte das pesquisas científicas. E Rob Wallace sabe por quê: “A verdadeira busca por interdisciplinaridade vai contra as diretrizes fundamentais do capitalismo”.

Não obstante, Pandemia e agronegócio traz elementos mais dramáticos ao coro de conclamação pela definição de novos conceitos e objetos de um pensamento científico que pretenda dar conta do celeiro de epidemias em que transformamos o planeta.

“Fazer perguntas que ninguém fez é metade da batalha”, observa o autor, enquanto expõe singelamente sua hipótese de que a efetivação de um ambiente seguro para a humanidade, no que se refere a pandemias, depende de um modelo de desenvolvimento que descarte o agronegócio. Ainda que represente um horizonte utópico, suas reflexões devem nos próximos anos pautar e dar frutos a muitas lutas por demarcação de terras tradicionais, agricultura familiar, reforma agrária e a soberania alimentar.

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