Os intelectuais judeus contra o sionismo
Resgate histórico: por que Einstein, Hanna Arendt e Freud defenderam a proteção para seu povo, mas não um Estado religioso. Como propuseram a paz com os árabes e denunciaram, por terrorismo, o fundador do partido de Netanyahu
Publicado 27/08/2025 às 19:05 - Atualizado 27/08/2025 às 19:12

Por Roberto Montoya, em El Salto | Tradução: Antonio Martins
Albert Einstein (1879–1955), alemão de origem judaica, Prêmio Nobel de Física de 1921, entusiasmou-se nos anos 20 e 30 do século passado com o projeto judaico de criar um lar na Palestina após ver o avanço imparável do antissemitismo em seu país e na Europa. Mas acreditava enxergar no sionismo algo muito diferente do que ele realmente foi. Dizia em 1931, em Minha Visão do Mundo, uma compilação de artigos: “Nosso objetivo não é a criação de uma comunidade política, mas, conforme a tradição do judaísmo, uma meta cultural no sentido mais amplo da palavra. Para alcançá-lo, devemos resolver com nobreza, abertamente e com dignidade, o problema da convivência com o povo irmão dos árabes (…) Merecem especial atenção nossas relações com o povo árabe. Fomentando-as, poderemos evitar no futuro a formação de tensões perigosas, que poderão ser utilizadas para provocar ataques de nossos inimigos”.
Em 1932, o cientista foi morar nos Estados Unidos, um ano antes de Adolf Hitler chegar ao poder na Alemanha. Em outra de suas intervenções sobre o sionismo, em 1938, Einstein deixava clara sua posição contrária à formação de um Estado judeu com fronteiras e exército: “Deixando de lado as considerações práticas, minha concepção da natureza essencial do judaísmo opõe-se à ideia de um Estado judeu com fronteiras, exército e um grau de poder temporal, por mais modesto que fosse. Estou espantado ao pensar no dano interno que o judaísmo sofrerá, sobretudo pelo desenvolvimento de um nacionalismo estreito no interior de nossas próprias fileiras, contra o quê sempre fomos obrigados a lutar energicamente, mesmo sem um Estado judeu”.
A postura de Einstein tornou-se ainda muito mais crítica em relação ao sionismo ao constatar o auge que as organizações terroristas judaicas vinham tendo. Atacavam tanto a população autóctone árabe quanto as forças do Mandato Britânico que ainda controlavam, na década de 1940, o território da Palestina histórica. Investiam até mesmo contra setores da comunidade judaica que não compartilhavam suas ideias.
Em 22 de julho de 1946, comandos paramilitares sionistas do Irgún Tzvaí Leumí, do Lehi e da Haganá, atacaram o Hotel King David, em Jerusalém, sede então do Comando Militar do Mandato Britânico da Palestina e da Divisão de Investigação Criminal, e mataram 91 britânicos.
A razão? O governo britânico do conservador Neville Chamberlain havia aprovado um Livro Branco para preparar o processo de independência da Palestina, no qual se propunha que, como passo prévio a ela, fossem incorporados ao próprio governo do Mandato Britânico representantes judeus e palestinos. Propunha-se essa fórmula como uma experiência para que ambos os povos pudessem conviver, no novo Estado que fosse eventualmente criado.
Para facilitar esse plano, o Livro Branco propunha também que se fixasse um limite à imigração judaica na Palestina, para que esta não representasse mais do que um terço da população local total, a menos que os próprios habitantes árabes consentissem expressamente. Mas o sionismo não podia consentir numa mudança tão brusca da postura britânica e do espírito colonialista da Declaração Balfour de 1917.
Em abril de 1948, unidades do Irgún Tzvaí Leumí e do Lehi cometeram outro massacre, desta vez na aldeia palestina de Deir Yassin, e assassinaram 120 pessoas. Einstein ficou chocado ao saber do massacre e, em 9 de abril, escreveu uma carta a Shepard Rifkin, diretor da organização estadunidense Amigos Americanos dos Combatentes pela Liberdade de Israel, que lhe havia pedido que se manifestasse publicamente a favor do sionismo e da criação do Estado de Israel: “Prezado Senhor: Quando uma catástrofe real e definitiva sobrevier à Palestina, os primeiros responsáveis por ela serão os britânicos e os segundos responsáveis serão as organizações terroristas criadas dentro de nossas próprias fileiras. Não gostaria de ver ninguém associado com essa gente desencaminhada e criminosa”.
Um mês depois, em 14 de maio de 1948, as forças judaicas, com o consentimento das Nações Unidas, declaravam em Tel Aviv a criação de um novo Estado, ao qual chamaram Israel e apoderaram-se não dos 56% do território da Palestina, como estava previsto inicialmente, mas de 77%. David Ben-Gurion, de origem polonesa e presidente da Agência Judaica, foi nomeado primeiro-ministro e tornou-se o artífice da expulsão forçada da Palestina de 750.000 palestinos, êxodo conhecido como a Nakba («desastre» em árabe).
Uma das primeiras medidas de Ben-Gurion foi a criação das Forças de Defesa de Israel (FDI, ou Tzáhal, seu acrônimo em hebraico). O núcleo central com o qual foram postas em marcha as FDI — uma das instituições mais respeitadas pela população israelense e executoras do atual genocídio em Gaza — foi a própria estrutura e militância da Haganá e de outras organizações terroristas sionistas.
Arendt, a ativista sionista que mudou de opinião
Hannah Arendt também foi inicialmente uma entusiasta ativista do movimento sionista, primeiro em seu país natal, a Alemanha, nos anos 20 e início dos anos 30; e a partir de 1937 nos Estados Unidos, país no qual se refugiou fugindo do nazismo.
Assim como Einstein, ela era uma fervorosa partidária da criação de um lugar na Palestina para os judeus, mas não às custas do despejo dos palestinos, e criticava também que o movimento sionista se esquecesse do resto dos judeus da diáspora, de judeus como ela ou Einstein, que viviam em outros países e não queriam viver na Palestina.
Os registros da emigração judaica para a Palestina antes da criação do Estado de Israel mostram que, dos cerca de 40.000 que migraram entre 1904 e 1914, mais de 80% decidiu não ficar de fato. O destino preferido era majoritariamente os Estados Unidos.
Arendt criou nos EUA o Grupo Jovem Judeu em 1942, numa tentativa de ampliar o debate interno dentro do movimento sionista. Ela criticava que o movimento dependesse tanto de banqueiros como os Rothschild e outros magnatas. Sustentava que essa dependência era sua “segunda opressão”.
Hannah Arendt distanciava-se daqueles que mantinham uma crença bíblica – a de que o povo judeu era o “povo escolhido”, com a qual se justificava tudo. Suas diferenças com o projeto sionista acentuaram-se após constatar que as teses do sionismo mais extremista e chauvinista impunham-se na Conferência de Baltimore daquele ano.
Em escritos como A Crise do Sionismo, que publicou naquele ano, e em trabalhos posteriores, Arendt distanciava-se cada vez mais daqueles que já não falavam de um “lar judeu”, mas sim de um “Estado judeu”, e mostrou sua preocupação com o desprezo com que se falava da população originária palestina, a qual não era incluída em nenhum plano.
Seu escrito Sionismo Reconsiderado provocaria uma grande polêmica no seio do movimento sionista. Nele, Arendt denunciava o “nacionalismo radical”: “O movimento nacional judeu social-revolucionário acabou como a maioria dos movimentos desse tipo: dando seu apoio mais firme não mais a reivindicações nacionais, mas a reivindicações chauvinistas que, na realidade, não estavam contra os inimigos do povo judeu, mas contra seus amigos potenciais e seus vizinhos reais”.
Ela falava assim dos árabes, “amigos potenciais”, “vizinhos reais”, e, assim como Einstein, advogava por um Estado binacional judeu-palestino. E, em 1951, três anos após a fundação do Estado de Israel, denunciava frontalmente a expulsão, por parte do novo Estado, de centenas de milhares dos habitantes originários da Palestina: “Depois da guerra, resultou que a questão judaica, que havia sido considerada a única insolúvel, estava sem dúvida resolvida, principalmente graças a um território primeiro colonizado e depois conquistado, mas isso não resolveu o problema das minorias e dos apátridas. Ao contrário, como virtualmente todos os demais acontecimentos de nosso século, a solução da questão judaica produziu uma nova categoria de refugiados, os árabes, aumentando o número de apátridas e de fora-da-lei em outras 700 ou 800 mil pessoas”.
Hannah Arendt, que tanto havia lutado pelo sionismo, teve que suportar críticas agressivas do sionismo radical, que acabou acusando-a de antissemita e até de colaboracionista por seu livro Eichmann em Jerusalém. Nesse livro, ela falava sobre a banalidade do mal, pretendia ir além de uma condenação frontal ao Holocausto, tentava desvendar a mente de um personagem como o hierarca nazista. Buscava apontar como um cidadão alemão normal se transformava num monstro que, em seu julgamento, chegou a reivindicar ser um bom funcionário, ter cumprido à risca as ordens recebidas. Obediência devida.
Menachem Begin, um prócer para os sionistas, nascido como Ben-Gurion na Polônia e líder do Irgún, o grupo terrorista mais radical, viajou para os Estados Unidos em 1948 após a criação do artificial Estado de Israel e foi recebido com todas as honras pelo governo do democrata Harry Truman.
Foi então que um grupo de 27 destacados intelectuais judeus residentes nos Estados Unidos — filósofos, rabinos e cientistas, entre os quais estavam Albert Einstein e Hannah Arendt — enviou uma carta aos editores do New York Times, datada de 2 de dezembro daquele ano, repudiando a visita e o projeto que representava. Foi publicada pelo diário nova-iorquino dois dias depois: “Um dos fenômenos políticos mais inquietantes de nosso tempo é o aparecimento no recém-criado Estado de Israel do Tnuat Haherut (Partido da Liberdade), um partido político muito parecido em sua organização, métodos, filosofia política e apelo social aos partidos nazista e fascista. Formou-se a partir de membros e seguidores do antigo Irgun Zvai Leumi, uma organização terrorista, direitista e chauvinista da Palestina (…) É inconcebível que aqueles que se opõem ao fascismo em todo o mundo, se devidamente informados sobre o histórico político e as perspectivas do Sr. Begin, possam somar seus nomes e apoio ao movimento que ele representa”.
Na carta, assinada também por outros intelectuais judeus, como Isidore Abramovitz, o rabino Jessurun Cardozo, Sidney Hook, Samuel Shuman, ou Irma e Stefan Wolfe, denunciava-se a intolerância de Begin e dos grupos terroristas que ele representava, que chegavam a aterrorizar a própria população judaica que não se unia a eles: “Professores foram espancados por falar contra eles e adultos foram fuzilados por não permitir que seus filhos se unissem ao grupo. Por meio de métodos de gângsteres, espancamentos, quebra de janelas e roubos generalizados, os terroristas intimidavam a população e exigiam dela um pesado tributo”.
Após outras considerações, os intelectuais judeus terminavam assim sua carta: “Portanto, os abaixo-assinados utilizamos este meio para apresentar publicamente alguns fatos destacados sobre Begin e seu partido, e para exortar todos os interessados a não apoiar esta última manifestação do fascismo”.
Begin criaria em 1973 o partido Tnuat Haherut e lideraria o processo de fusão deste com outras formações da direita israelense, o que daria origem ao nascimento do Likud, o partido hoje liderado por Benjamin Netanyahu e o principal no governo ultradireitista israelense. Em 1979, Begin recebia o Prêmio Nobel da Paz.
Freud, crítico do fanatismo sionista
O caso de Sigmund Freud foi distinto ao de Einstein ou Arendt. O pai da psicanálise, austríaco de origem judaica mas declaradamente ateu, abordou em Moisés e o Monoteísmo, nos anos 30, o projeto de criar um “lar judeu” na Palestina, perguntando-se: “O que leva os judeus a se considerarem como ‘o povo escolhido’? Quais são as consequências de manter tal narcisismo?”.
Em 26 de fevereiro de 1930, Freud escrevia uma carta ao doutor Chaim Koffer, que, em nome da Fundação para o Reassentamento dos Judeus na Palestina, pedia-lhe um pronunciamento a favor do sionismo e da migração para a Palestina: “Não posso fazer o que o senhor deseja. Minha relutância em interessar o público em minha pessoa é intransponível e acredito que as circunstâncias críticas atuais não me incitam de forma alguma a fazê-lo (…) Mas, por outro lado, não acredito que a Palestina possa um dia ser um Estado judeu, nem que tanto o mundo cristão quanto o mundo islâmico possam um dia estar dispostos a confiar seus lugares santos aos cuidados dos judeus”.
Freud mencionava também nessa carta sua rejeição em considerar o Muro das Lamentações o lugar sagrado mais importante para o judaísmo. “Não posso experimentar a menor simpatia por uma piedade sionista mal interpretada, que faz de um pedaço do muro de Herodes uma relíquia nacional e, por causa dela, ofende os sentimentos da população local”.
O pai da psicanálise, que em muitas ocasiões criticou o nacionalismo e a xenofobia, mencionava também nessa carta sua desconfiança sobre o apoio interessado de magnatas judeus à ideia de criar o “lar judeu” na Palestina: “Teria me parecido mais prudente uma pátria judaica em um solo historicamente não carregado; de fato, sei que, para um propósito tão racional, nunca se teria podido suscitar o êxtase das massas nem a cooperação dos ricos. Admito também, com pesar, que o fanatismo pouco realista de nossos compatriotas tem sua parte de responsabilidade no despertar da desconfiança dos árabes”.
Em 1939, quando as organizações terroristas sionistas atacavam diariamente as aldeias palestinas, advertiu: “A maior calamidade seria um confronto permanente com o povo árabe”, lembrando que “em tempos passados, nenhum povo mostrou maior amizade com os judeus que os antepassados desses árabes”.
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