Crise estrutural no ocaso do capitalismo

Bons modos não salvarão o sistema. Partindo da teoria do valor-trabalho de Marx, livro sugere: estamos no fim de longo declínio. Crises como a do coronavírus serão corriqueiras, enquanto não formos capazes de por fim ao pesadelo

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Por Eleutério F. S. Prado

Um livro importante, atualizado e recém republicado, tem a audácia de afirmar que, desde os anos 1980, está-se vivendo no ocaso do capitalismo. Se na ótica marxista, esse período histórico pode ser apreendido como de “crise estrutural”, na visão da teoria econômica dita mainstream, ele aparece caracterizado como de “estagnação secular”. Eis o seu título: Invisible Leviathan – Marx’s law of value in the twilight of capitalism. [“Leviatã Invisível – a lei do valor de Marx no ocaso do capitalismo”] Eis o seu autor: Murray E. B. Smith, professor de sociologia do Universidade de Brock, Canadá.

O conteúdo do livro contraria as ilusões reformistas daqueles que querem retomar as condições econômicas e sociais do período em que vigorou a social-democracia no pós-II Guerra, por meio da supressão da financeirização e do retorno das políticas keynesianas. Contraria também aqueles que julgam que os gastos públicos, as emissões de dinheiro fiduciário e as concessões de crédito – ainda que sejam necessários temporariamente para enfrentar a crise e o desemprego –, possam também salvar o capitalismo. Eles parecem não compreender o que é central: apenas o lucro é aguilhão da produção capitalista; a produção de bens e serviços está subordinada à lógica da produção de capital; este é insaciável e mesmo, em certos momentos, desvairado. Logo, um capitalismo mais humano, mais justo e mais equitativo torna-se cada vez mais impossível.

Segundo Smith, o capitalismo está evoluindo agora de uma forma precária em relação ao seu passado, mais bem sucedido. Afirma que esse modo de produção globalizado – e assim, os trabalhadores e os capitalistas em geral – sofre das consequências de uma crise estrutural que tem três dimensões relacionadas entre si.

  1. Há um aprofundamento da contradição entre o capital acumulado no passado e a sua lucratividade no presente; a produção de “mais-valor”, ou seja, a substância social que dá origem aos lucros, é insuficiente para remunerar de modo “satisfatório” o capital industrial e o capital financeiro, que se avolumaram sem cessar após a II Guerra Mundial;
  2. Persiste uma crise grave das relações internacionais entre as nações capitalistas: se, de um lado, as forças produtivas romperam os limites dos Estados nacionais; se se formaram cadeias de produção que agora englobam muitos países, por outro lado, a capacidade de solução dos problemas se concentra ainda nas próprias nações;
  3. Há uma evidente “crise ecológica” que, segundo ele, decorre da contradição entre a civilização humana e as “condições naturais de produção”, isto é, entre o seu modo de apropriação da natureza e os fundamentos ecológicos da sustentabilidade das sociedades.

Como é evidente, o título do livro combina criativamente duas expressões famosas que aparecem na bibliografia da Economia Política: o termo “Leviatã” foi empregado por Thomas Hobbes para caracterizar o Estado e o termo “mão invisível” foi usado por Adam Smith para caracterizar o mercado. Por “Leviatã invisível”, Murray Smith denomina simplesmente o “capital”, isto é, a relação social de capital que subordina a força de trabalho, obrigando-a a produzir mais-valor. Como há uma tradução para o espanhol do texto usado pelo próprio autor para divulgar o seu livro1, aqui se vai subsidiar uma compreensão de sua tese principal com base nos resultados empíricos que ele mesmo produziu. Aqui, ademais, concentra-se o esforço explicativo na primeira contradição apontada por ele, já que as duas últimas são bem mais evidentes.

Em primeiro lugar, é preciso tornar mais preciso o significado de “crise estrutural”. Esse conceito tem sido usado por autores críticos do capitalismo. Por exemplo, Istvan Mészáros, em A crise estrutural do capital (Boitempo, 2011), usa esse termo para anunciar a vinda de um período catastrófico na história: “A crise estrutural do sistema do capital como um todo – a qual estamos experimentando (…) – está destinada a piorar consideravelmente. Vai se tornar a certa altura muito mais profunda; ela vai invadir não apenas o mundo das finanças globais (…), mas também todos os domínios da vida social, econômica e cultural” (op. cit., p. 17).

Como se sabe, o termo “crise” designa um evento que gera uma situação instável e perigosa no curso da vida de um indivíduo, grupo, comunidade ou de uma sociedade como um todo. As crises constituem-se em geral de mudanças abruptas que interrompem, contrariam e mudam o andamento normal dos acontecimentos num dado momento histórico.

Ora, as crises podem estar associadas tanto aos processos de expansão quanto aos processos de fenecimento que ocorrem durante o tempo de existência de qualquer sistema complexo. O termo “crise estrutural”, tal como usado por Smith, indica uma fraqueza na acumulação de capital devido à ação, agora decisiva, da lei tendencial da taxa de lucro decrescente. Eis que, segundo ele, o sistema do capital tem tido dificuldades crescentes para superar as barreiras que ele mesmo põe para si, porque elas estão se tornando cada vez maiores e mais perigosas.

Como se sabe, as crises de superacumulação se mostram terríveis para as pessoas em geral, em particular para os trabalhadores, mas elas são engendradas inexoravelmente pela própria da acumulação de capital. A destruição e a desvalorização dos capitais devém necessariamente nas recessões para elevar a taxa de lucro e para a retomada do processo de expansão do capital. O evento mais importante para o surgimento das crises é a queda da taxa de lucro e, com ela, a redução expressiva subsequente do investimento na esfera do capital industrial, do capital que comanda a produção de valor e de mais-valor. Já os booms ocorrem quando a taxa de lucro passa a aumentar, situando-se em nível elevado.

Como se mostrará a frente, a tendência à queda da taxa de lucro predominou em relação às chamadas contratendências após o fim da II Guerra Mundial. Foi a lei tendencial da queda da taxa de lucro que esteve subjacente às duas grandes recessões, a dos anos 1970 e a dos anos 2000. Ora, a causa fundamental do comportamento de longo prazo da taxa de lucro foi a elevação da composição orgânica do capital, assim como a elevação da composição em valor do capital.

Mas também é preciso considerar que, no pós-guerra, assistiu-se à elevação da proporção entre o trabalho improdutivo e o trabalho produtivo. Eis que as atividades que dão suporte à acumulação de capital cresceram mais do que proporcionalmente àquelas que o produzem. Além disso, durante o período, o capital improdutivo (ou capital fictício) tendeu a crescer a taxas muito maiores do que o capital produtivo (capital industrial). Ora, sabe-se que a expansão do endividamento das famílias, empresas e governos ajuda na ascensão da acumulação, mas a acumulação das dívidas passa a pesar na desaceleração do crescimento do PIB ou de seu decrescimento. Dado o desastre econômico que representaria agora uma destruição maciça dos capitais fictícios na crise, os governos têm optado por impedi-la por meio de intervenções dos bancos centrais visando salvar o sistema de uma derrocada. É nisso que consiste o chamado relaxamento monetário.

Note-se, de início, por meio das duas tabelas seguintes – cujas fontes originais são o Banco Mundial e o FMI – que houve um longo declínio das taxas de crescimento da economia global e, em especial, dos países de capitalismo avançado entre 1960 e 2010 (média ponderada dos dados de PIB das 35 deles maiores economias). É essa a evidência, a qual se encontra no livro de Smith, que subsidia a tese da “estagnação secular” aventada pelos economistas ortodoxos.

Tabela 1

Taxas médias anuais do crescimento global do PIB

1960s 1970s 1980s 1990s 2000
4,9% 3,9% 2,9% 2,7% 2,6%

Tabela 2

Taxas médias anuais de crescimento do PIB

30 maiores países mais avançados

1980-89 1990-99 2000-09
3,09% 2,64% 1,75%

Em sequência, são apresentados cinco gráficos obtidos do escrito de Murray Smith, os quais visam mostrar empiricamente que a sua tese principal tem apoio nas informações estatísticas disponíveis e que é, por isso, relevante. Ainda que aqui se vá dar uma explicação geral sobre o que eles indicam, não será possível apresentar todos os detalhes técnicos e econômicos envolvidos em sua construção.

A Figura 1, a seguir, mostra a evolução do PIB mundial (barras tracejadas) e a evolução dos ativos financeiros globais (barras em preto), entre 1980 e 2007. Note-se que a diferença entre eles cresceu continuamente no período; mesmo se o gráfico não mostra, sabe-se que ela continuou a crescer também na década seguinte (até o ano 2019). Ainda que uma parte desses ativos financeiros possam representar capital efetivo, grande parte dele consiste de capital fictício, capital que não comanda a produção de mais-valor, mas representa, ainda que ilusoriamente, direito ao mais-valor futuro, ou seja, que será eventualmente gerado pelo capital industrial.

Agora é preciso mostrar por que as taxas de crescimento do PIB mundial médio decenal têm caído década após década. Mas também é preciso indicar por que ocorreu um crescimento excepcional dos ativos financeiros nesse período, principalmente a partir de 1980. Para tanto, apresenta-se informações estatísticas que mostram como atuou a lei tendencial da taxa de lucro no período. Trata-se de saber se ela rebaixou ou não a lucratividade do capital industrial? Segundo Smith, essa lei reflete o aprofundamento da contradição entre o desenvolvimento das forças produtivas e a reprodução das relações de produção capitalistas. As evidências que se seguem mostram que o modo de produção capitalista está enfrentando agora os seus limites históricos.

Se “s” é o mais-valor na forma do lucro e “C” é o estoque de capital produtivo, então a razão “s/C” é uma medida da taxa de lucro do sistema como um todo. Essa taxa pode ser decomposta numa razão de duas outras taxas: “s/v” e “C/v”, onde “v” é o capital variável, ou seja, os salários dos trabalhadores, dos produtores de valor e mais-valor. A taxa “s/v” é a taxa de exploração e “C/v” é a composição em valor do capital.

Ora, a lei de Marx parte do fato de que a concorrência capitalista leva ao desenvolvimento das forças produtivas, impondo, assim, uma tendência ao aumento da composição técnica do capital e, em consequência, de “C/v”. Por sua vez, a luta de classe dos capitalistas contra os trabalhadores, assim como o aumento da produtividade do trabalho, tende a fazer aumentar “s/v”, a relação entre o mais-valor e o capital variável. O resultado dessas duas forças contrapostas tende a produzir, ainda que não como necessidade absoluta, a queda da taxa de lucro.

Dadas as dificuldades quase insuperáveis para computar estatísticas para o capitalismo mundial no nível de detalhe requerido, Smith trabalhou com os dados da economia norte-americana. Ele apresenta, primeiro, a evolução da taxa de lucro aos custos correntes para essa economia como um todo. A figura 2 abaixo mostra que essa taxa de lucro, apesar da flutuação para baixo entre 1968 e 1986, tendeu a subir no período considerado.

Ora, esse resultado se deve ao fato de que no cômputo da massa de lucro, tal como registrado pelas estatísticas brutas do PIB norte-americano, está contido um grande volume de lucros fictícios. Isto mostra já que o papel da financeirização nada tem de anômalo no modo de produção capitalista. Na verdade, ela se tornou uma necessidade para estimular a acumulação de capital nesse país e no mundo quando a taxa de lucro caiu a um nível muito baixo. Trata-se de um recurso inerente ao sistema capitalista que o salva de uma estagnação mais pronunciada e mesmo de uma derrocada.

Para eliminar ao máximo o efeito dos lucros fictícios, Smith calculou então a taxa de lucro nos Estados Unidos apenas para as corporações não financeiras após o pagamento dos tributos. Assim, ele obteve um novo gráfico e este aparece na Figura 3, apresentada em sequência. Ele mostra claramente como se comportou a tendência à queda da taxa de lucro entre o fim da II Guerra Mundial e as primeiras duas décadas do novo milênio. Se a taxa de lucro tendeu a cair nos Estados Unidos, que são a potência dominante, assim como a economia mais evoluída tecnologicamente, é de esperar que ela deva ter caído também nos outros países.

Como fica claro, agora, a taxa de lucro do capital industrial (produtor de valor e mais-valor) caiu significativamente entre o período que vai da II Guerra até o presente (cerca de 75 anos). É evidente ique isto explica a queda tendencial da taxa de crescimento econômico nesse país e, por extensão, nos outros países. Mostra, ademais, que foi essa queda da lucratividade que engendrou a financeirização, ou seja, o deslocamento da centralidade (aparente) da acumulação do capital real para o capital fictício – e não ao contrário, como parecem pensar os saudosos da socialdemocracia. Para mostrar como as duas forças tendenciais ao aumento da taxa de exploração (numerador da fração antes apresentada) e ao aumento da composição em valor do capital (denominador da razão) atuaram para produzir esse resultado, seguem-se as Figuras 4 e 5. Elas apresentam essas duas tendências considerando apenas o setor corporativo de modo a manter a consistência com o resultado da Figura 3, anterior.

Os resultados apresentados falam por si próprios. Eles justificam a tese de que se está diante do ocaso do capitalismo, em particular no Ocidente. Isso, no entanto, não significa que ele vai acabar espontaneamente. Ao contrário, as forças políticas que o sustentam vão fazer tudo o que podem para salvá-lo: desafiar os imperativos ecológicos, privatizar a produção de bens públicos, rebaixar os salários dos trabalhadores, minimizar o efeito de doenças mortais etc.

A distopia, o pesadelo que se tornou real com a chegada da pandemia do coronavírus mostra o que a humanidade pode esperar nas próximas décadas com o crepúsculo do capitalismo. Logo, não parece restar alternativa senão lutar por uma mudança no modo de produção que seja no mínimo suficiente para reabrir um horizonte de esperança para a humanidade e que seja democrático. Os trabalhadores podem ser centrais na busca dessa mudança, mas é evidente que ela interessa a todas as mulheres e todos os homens que mantêm a sensatez, independentemente das classes sociais.

1 Ver https://kaosenlared.net/la-ley-del-valor-de-karl-marx-en-el-ocaso-del-capitalismo/

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