“Alexa, o que há de novo no capitalismo?”
Algo mudou e se acelera desde a grande crise econômica iniciada em 2008. A mudança tem dimensões psíquicas: as novas dinâmicas de extração de valor estão intimamente ligadas ao aumento da individualização. E o principal motor está à um toque de tela (ou comando de voz) de nós
Publicado 05/12/2025 às 17:41

Este texto foi publicado originalmente no blog da Biblioteca Virtual do Pensamento Social (BVPS). Leia outros textos da coluna da BVPS.
Do final da Segunda Guerra Mundial até o primeiro choque do petróleo (1973) e a recessão de 1974/1975, vivemos um período que o historiador britânico Eric Hobsbawm (2013 [1995]) denominou “Era de Ouro” do capitalismo, no qual a base da reprodução social foi a articulação entre produção em massa e consumo de massa. Essa base assegurou, nos países centrais, um modelo de crescimento econômico no qual foi possível conciliar a elevação dos salários e dos lucros; e, em parte dos países periféricos, permitiu o processo de industrialização – mais ou menos intenso a depender das especificidades de cada região. Esse processo, tanto num caso quanto no outro, foi acompanhado de mudanças sociais, políticas e culturais que marcaram a “modernização” dessas sociedades, com promessas de inclusão na “civilização ocidental” por meio do assalariamento.
Dentre essas mudanças, podemos destacar o “fim do campesinato” como núcleo da reprodução das condições materiais da vida social, acompanhado da expansão da escolarização secundária e universitária, da diversificação das profissões e do lazer confinado à esfera privada (Hobsbawm, 2013), proporcionado pela “indústria cultural” (Adorno & Horkheimer, 1985). Como consequência, a classe trabalhadora tornou-se fragmentada, com diferentes condições de trabalho e de vida, que engendravam novos interesses – sobretudo individuais. Não à toa, nessa sociedade do pós-guerra ocorreu a perda dos vínculos entre passado e presente, abrindo-se um abismo geracional que, posteriormente, serviria de suporte tanto para as imposturas contra os sistemas públicos de previdência quanto para a centralidade social do “eu”, configurando um processo de individualização (Braga, 2024).
Desde o desmoronamento da “Era de Ouro”, a partir de 1975, até a crise financeira de 2008, vivemos um período de transformações econômicas de grande envergadura que instituíram o capitalismo global. De modo esquemático, a emergência das grandes corporações transnacionais, que operam em rede e têm como núcleo de suas operações unidades controladoras financeirizadas, bem como a virtualização da realidade por meio da cibernética, colocaram o capital fictício no centro da acumulação – um capital sem locus específico, que transita pelo globo. Esse novo padrão de acumulação engendrou uma interdependência patrimonial global entre as empresas, uma colonização das esferas moleculares da vida humana e natural e, não menos importante, uma concorrência internacional entre trabalhadores, deprimindo salários (Serfati, 1998; Brenner, 2003; Dos Santos, 2011). O resultado foi, em linhas gerais, a ampliação da acumulação de capital – em suas distintas formas, articuladas pela acumulação fictícia – por meio da crescente transformação das diversas dimensões da vida humana e natural em direitos de propriedade negociáveis no ciberespaço financeiro, enquanto os trabalhadores passaram a depender, cada vez mais, do crédito para reproduzir sua existência (Chesnais, 2016; Mariutti, 2020; Lohoff, 2018).
Sem possibilidade de competir nessa nova dinâmica global, os processos de acumulação de capital dirigidos pelo Estado – cujos principais territórios eram a União Soviética e a China – sofreram profundas mudanças. No primeiro grupo, ocorreu o colapso do “projeto de modernização” porque, grosso modo, seu modelo de acumulação não respondeu às novas exigências dessa dinâmica (Kurz, 1993a; 1993b; 1997). No segundo, houve uma readequação às novas exigências da acumulação, sendo importante destacar o papel da Revolução Cultural chinesa (1966-1976) nesse processo: ela constituiu uma força de trabalho apta a suportar ritmos intensos de produção, associando sua ascensão pessoal à evolução da nação. Assim, as reformas promovidas por Deng Xiaoping ofereceram aos conglomerados transnacionais, em busca de força de trabalho barata, o espaço ideal para produzirem suas mercadorias, ao mesmo tempo em que alinharam os chineses ao novo espírito do tempo: a individualização (Nabuco, 2009; Barreira & Botelho, 2024).
Do ponto de vista da acumulação de capital, o período em destaque engendrou uma simbiose entre as economias chinesa e estadunidense. Grosso modo, enquanto a primeira se tornou o centro da produção mundial – a “fábrica do mundo” –, a segunda tornou-se o centro financeiro, no qual os excedentes comerciais acumulados no Leste Asiático refinanciavam os déficits comerciais dos Estados Unidos, bem como a expansão interna do crédito, diante do declínio real dos salários e da desigualdade inerente a uma economia forjada em serviços, sobretudo financeiros (Chesnais, 2009, 2016; Brenner, 2003; Piketty, 2014; Barreira & Botelho, 2024). Contudo, essa expansão do crédito mascarava o fato de que seus tomadores – trabalhadores estadunidenses – não elevavam sua renda no mesmo ritmo dos empréstimos e das prestações. Isso porque os bancos privados ampliaram o crédito por meio do sistema bancário global sombra, cuja principal característica era retirar dos balanços os empréstimos concedidos, vendendo-os a “veículos especiais de crédito” mediante a formação de “títulos estruturados” (Cintra & Fahri, 2008).
Com a reversão dos preços desses títulos, a partir de 2007 – em função da queda dos preços dos imóveis e do subsequente atraso no pagamento das prestações pelos mutuários –, a operação desses veículos tornou-se inviável, ocasionando suas falências e, pela interdependência patrimonial, a falência de outras instituições financeiras e não financeiras, forçando a intervenção ativa dos bancos centrais para salvar o sistema (Borça Junior & Torres Filho, 2008). As famílias envolvidas na crise – em particular estadunidenses e, posteriormente, europeias – não receberam o mesmo socorro, o que aprofundou ainda mais as fissuras do tecido social, já bastante esgarçado pelas transformações da “Era de Ouro” e pelo processo de individualização.
A política de socorro aos apostadores financeiros promovida pelos bancos centrais significou, em linhas gerais, uma elevação do endividamento dos Estados nacionais envolvidos, seguida por nova valorização dos títulos negociados em bolsa, sem correspondente crescimento econômico. Diante do endividamento público elevado e de economias estagnadas, os Estados ocidentais foram forçados – pelos mesmos atores que haviam socorrido – a realizar duras políticas de ajuste fiscal (Varoufakis, 2025). Enquanto isso, a China promovia uma expansão interna de grandes proporções, baseada em obras de infraestrutura e em projetos habitacionais.
Nesse contexto, emergiu uma tecnologia que explicitou uma mudança socioeconômica substantiva: o smartphone. Ele pode ser compreendido como um dispositivo técnico destinado a capturar, como mostra Crary (2023), o nosso olhar. A tela do smartphone busca rastrear as direções dos olhos em busca de padrões de movimento e fixação em imagens, controlando o campo da atenção. Isso permitiu que profissionais de tecnologia da informação, em colaboração com psicólogos, marqueteiros e cientistas sociais, desenhassem seus produtos com base na experiência dos usuários, de modo a capturar e direcionar sua atenção num ciclo contínuo de uso.
O smartphone e as tecnologias a ele associadas expressam a formação de uma nova seara da acumulação de capital, cujos requisitos de operação envolvem desde o controle dos espaços de navegação na internet e dos dados gerados por essa navegação até o processamento desses dados em gigantescos centros de dados (data centers), operados por computadores de alta potência programados por trabalhadores especializados na produção de algoritmos para a “mineração” desses dados – isto é, para identificar padrões passíveis de rentabilização (Crary, 2023). Essa operação requer tanto a concentração e centralização dos capitais – não por acaso, a centralidade dos fundos de investimento organizados a partir de Wall Street – quanto o controle das infraestruturas informacionais pelas chamadas Big Tech. A onipresença do smartphone e das tecnologias associadas à vida socioeconômica, política e cultural contemporânea indica, por sua vez, que os demais capitais e os próprios trabalhadores precisam submeter-se às redes informacionais controladas por essas corporações, para conseguir reproduzir seus capitais ou seus meios de vida.
Diante desse quadro, os anos seguintes à crise de 2008 configurariam, segundo o economista grego Yanis Varoufakis (2025), a passagem do capitalismo para uma nova forma de organização econômica: o tecnofeudalismo. Em síntese, a primazia das Big Tech, articulando a reprodução socioeconômica de virtualmente todos os agentes – inclusive o Estado –, teria deslocado a concorrência e a busca do lucro como lógicas principais da economia, substituindo-as pela formação de monopólios e pela renda como forma central de remuneração.
Numa analogia com os senhores feudais que recebiam sua renda dos servos que habitavam e trabalhavam em suas propriedades – aos quais deviam proteção militar –, Varoufakis (2025) observa que as Big Tech assumiram o controle do “capital-nuvem”, por meio da “pilhagem do commons digital” (a internet), confinando as interações em redes controladas por essas corporações. Utilizando algoritmos, elas manejam o comportamento dos usuários dessas redes. Em linhas gerais, o ganho das Big Tech não estaria na produção de bens materiais (como na indústria) nem na comercialização de dívidas (como nas finanças), mas na cobrança de uma renda para que outros possam acessar as pessoas que estão atentas às suas redes informacionais – ou seja, com seus comportamentos modulados –, a fim de oferecer produtos e serviços. Um exemplo disso é o funcionamento da Alexa, da Amazon:
(…) a Alexa não é uma serva. Ela é, na verdade, uma parte do capital de comando baseado nas nuvens que está transformando você em servo, com a sua ajuda e por meio do seu próprio trabalho não remunerado, com o propósito de deixar seus proprietários ainda mais ricos (Varoufakis, 2025: 78).
Embora a tese de Varoufakis seja instigante e criativa – sobretudo pelo paralelo com o feudalismo, a partir da constatação da crescente participação da renda nos ganhos das empresas capitalistas, por meio da expansão dos direitos de propriedade e da criação artificial de monopólios –, essa lógica não é estranha à acumulação de capital, tampouco elimina a concorrência, seja entre trabalhadores e capitalistas menores, seja entre as próprias Big Tech, como o lançamento do DeepSeek mostrou (G1, 2025). Contudo, concordamos com o autor em um ponto que nos parece fundamental: algo de novo ocorreu com o capitalismo após a crise de 2008.
Não por acaso, uma das expressões da seara de acumulação que hoje dinamiza o capitalismo global é um dispositivo de uso individual que tem no “eu” o núcleo central do controle – em particular, a partir da produção de imagens não do espaço, mas de si mesmo: as chamadas selfies (Kornbluh, 2025).
A partir da reflexão desenvolvida aqui, sugerimos que a expansão do processo de acumulação de capital está aprofundando a individualização. Não à toa, a revolução tecnológica de nosso tempo está centrada em dispositivos individuais, ao mesmo tempo em que os mecanismos de contrapeso a essa acumulação estão se desmanchando – como a própria democracia, por exemplo (Streeck, 2012). Assim, as formas sociais próprias do capital aparecem não apenas como naturais, mas, sobretudo, como eternas. Afinal, enfeixados em suas bolhas e modulados pela realização do “eu”, o horizonte de ação das pessoas torna-se tão imediato que a própria ação se converte em mais uma commodity informacional na rede das Big Tech (Kornbluh, 2025).
Se há ruptura possível com esse quadro, ficamos com a formulação de Adorno (2020: 273): “As mínimas diferenças no sempre igual, que lhes permanecem abertas, representam, ainda que frágeis, uma possibilidade de diferença em relação ao todo; na própria diferença, na divergência, se concentra a esperança.”
Referências
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