A dignidade como categoria política para o século XXI

É preciso examinar o relatório da ONU sobre a situação mundial das crianças além da frieza dos números. Falta, em nosso repertório político, a luta pelo direito à dignidade. Expressa um compromisso ético. Tem enorme potência mobilizadora

Gaza. Conflito Oriente Médio. Bombardeio e fila para comida — Foto: MOHAMMED ABED
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A recente publicação do relatório “Situação Mundial das Crianças – 2025”, realizada pelo Unicef[1], colocou em evidência uma questão fundamental para a nossa época: “a pobreza envenena a infância e, portanto, nosso futuro comum”. Distanciando-se da possibilidade de pensar a questão somente em termos de escassez de recursos materiais, o relatório atribui visibilidade a questões de saúde, de desenvolvimento humano e de aprendizagem. Em países mais pobres, são 417 milhões de crianças que encontram severas privações em suas existências, situação que adquire maior complexidade com as mudanças demográficas, a crise climática ou mesmo o uso das novas tecnologias. De forma objetiva, o relatório informa que 4 de cada 5 crianças enfrenta os desafios da crise climática, por exemplo.

O documento parte do princípio de que precisamos mobilizar nossos esforços para construir um “futuro melhor”, engendrando iniciativas para compreender e intervir em cenários de pobreza multidimensional. A pobreza torna vulnerável a garantia dos direitos da infância e leva-nos a refletir sobre que vida digna é possível de ser construída com menos de 3 dólares por dia. De acordo com o informe da Unicef, as crianças e os adolescentes têm “o dobro de probabilidades que os adultos de viverem na pobreza extrema”, acrescentando-se também uma repercussão em seu bem-estar, em suas oportunidades de desenvolvimento e nas variadas privações graves.

Com relação às privações graves, o documento permite-nos elencar diversos componentes da pobreza, como a nutrição, a moradia, a água, o saneamento, a educação e a saúde. Pensar a pobreza em sua multidimensionalidade permite ainda um olhar atento às diferenças de faixa etária, de contexto socioeconômico, de raça e gênero, de pessoas com deficiência e também migrações e populações em deslocamento. O documento da Unicef desafia os Estados a posicionar o enfrentamento da pobreza na infância e na adolescência como um imperativo fundamental, seja pela via das políticas econômicas e fiscais, seja pelo caminho das garantias de proteção social e serviços públicos de qualidade.

Entretanto, para a continuidade argumentativa deste texto, precisamos deslocar o olhar para um conceito fundamental no âmbito das políticas de infância e adolescência: a dignidade. Com Marta Nussbaum, compreendemos que existem muitas modalidades de expressão da dignidade e que cada uma delas, de modo distinto, merece nossa consideração e reclama um tratamento justo. Porém, vale a pena destacar um argumento ampliado que emerge da tessitura do texto da filósofa: para garantir o respeito dos outros não precisamos ser produtivos, nem mesmo manifestar nossa racionalidade para que a dignidade seja garantida.

Não somos obrigados a ser produtivos para ganharmos o respeito dos outros. Temos o direito ao respeito em função da dignidade mesma de nossas necessidades humanas. A sociedade se une em função de um amplo campo de afetos e compromissos, somente alguns dos quais dizem respeito à produtividade. A produtividade é necessária, e mesmo boa, mas não é um fim principal da vida social (Nussbaum, 2014, p. 197).

Construir políticas destinadas a crianças e adolescentes, com foco em sua dignidade, ultrapassa lógicas racionalistas e produtivistas. Queremos afirmar que a garantia da proteção social e o atendimento das necessidades humanas é uma questão de dignidade. Essa questão leva-nos a considerar o recente diálogo entre o filósofo Michael Sandel e o economista Thomas Piketty (2025) em que propõem uma retomada da dignidade enquanto um conceito fundamental para o pensamento progressista. Ainda que pareça uma solução universalista, o futuro da esquerda – na percepção dos autores – passaria por uma reconsideração da possibilidade política da igualdade, entendida não somente no âmbito da redistribuição de renda, mas também na reelaboração subjetiva da dignidade.

Quando escolhemos iniciar este texto recuperando aspectos do relatório “Situação Mundial das Crianças – 2025”, publicado pela Unicef, nossa intenção estava em resgatar no debate progressista uma agenda fundamental: a questão da dignidade. Notadamente no âmbito das políticas de infância e adolescência, o contemporâneo demanda novos conceitos ou mesmo uma releitura de elaborações clássicas, como a dignidade. A possibilidade de redescrever a sociedade em função de afetos e compromissos compartilhados, tal como aprendemos com Nussbaum, instaura o compromisso com novos agenciamentos políticos. Caso a esquerda contemporânea ainda aposte na igualdade como fundamento, precisamos defender políticas orientadas, simultaneamente, para a redistribuição econômica e a reelaboração subjetiva da dignidade. Este parece ser um caminho promissor e incontornável para as políticas com foco em crianças e adolescentes!

Referências:


NUSSBAUM, Martha. Fronteiras da justiça. São Paulo: Martins Fontes, 2013.

PIKETTY, Thomas; SANDEL, Michael. Igualdade: significado e importância. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2025.

Nota


[1] Disponível em: https://www.unicef.org/reports/state-of-worlds-children/2025

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