Universidades ou “incubadoras de start-ups”?

As novas ciências, o patenteamento do saber e o mundo encantado das empresas tecnológicas de garagem. Elementos para compreender o projeto de Weintraub e enfrentar os dez mitos que o embasam

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Por Ricardo T. Neder1

Este é o primeiro artigo de uma série de três, na qual abordamos o tema da insuficiência da política inovacionista (empreendedorismo, patentes e direitos de propriedade intelectual) para a universidade diante das tendências cognitivas, acadêmicas e político-organizativas da revolução científica no século XXI. Leia a segunda parte aqui e a terceira aqui.

O que os campos interdisciplinares das Novas Ciências na pesquisa científica contemporânea (regidos pelas interdisciplinas na microeletrônica, automação industrial, tecnologias de informação e comunicação, computação, cibernética, ciências dos materiais, genética, biologia evolutiva; neurociências, engenharia genética, análise de sistemas) têm a ver com empreendedorismo, patentes e o projeto Weintraub (supondo que há algo mais além desta peça da engrenagem financeira intitulada Future-se)?

Neste momento em que há uma “guerra híbrida” no País, renova-se a necessidade de uma reflexão para desnudar relações complexas para a universidade brasileira, tal como proposto no título em epígrafe. Nesta série de três artigos serão debatidas as tendências cognitivas, acadêmicas e político-organizativas do conhecimento no século XXI, e as “políticas” envolvidas nos interesses externos e internos no Brasil. Para apresentar o inovacionismo como doutrina, nada melhor do que começar pelas startups; em bom português, microempresas de conteúdo tecnológico (MCTs) que podem assumir a configuração de alta, média ou baixa complexidade.

Vamos situar dez mitos que envolvem estas MCT, e suas relações com o entorno social e político, econômico e produtivo do país (seus ecossistemas). Estas relações explicam melhor o movimento inovacionista, e sobretudo sua proeminência no Projeto Weintraub para a universidade.

Ao final, serão tratadas as relações entre o projeto neoliberal, revolução científica das “novas ciências” e uma questão-chave: a quem interessa esta tentativa de reforma privatizante da universidade que pretende dominar com um política inovacionista formada pela tríade empreendedorismo/patentes/direitos propriedade intelectual?

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O Projeto Weintraub é justificado por meio da lei de patentes. Esta, a pretexto de estimular a ciência, promove um sistema de “propriedade intelectual” que favorece apenas as grandes corporações. Quem o diz é o estadunidense Joseph Stiglitz, um Nobel da Economia.

Para ele, estamos diante de um “matagal de patentes que está cada vez mais denso em um mundo de produtos que requerem milhares de patentes; o que não raro sufoca a inovação, com mais gastos com advogados do que com pesquisadores, em alguns casos.

A pesquisa frequentemente não está direcionada a produzir novos produtos, mas a estender, ampliar e alavancar o poder de monopólio assegurado pela patente” 2. A favor da pesquisa, há alternativas à privatização do conhecimento – que tem por base o inovacionismo como doutrina. Tal conhecimento pode, por exemplo, ser gerado por empresas estatais e públicas, que desenvolvem P&D próprio.

O ecossistema do inovacionismo infelizmente volta-se apenas, na visão empresarial neoliberal, a tornar as empresas públicas e estatais. Isso se dá no caso brasileiro, argentino, venezuelano, e de economias dependentes latinoamericanas – satélites das políticas financeiras e tecnológicas do bloco de corporações euro-estadunidenses. Tal concepção de ecossistema não pode se sustentar na universidade latinoamericana.

Um bom retrato desta situação começa por saber como anda a produção em setores chaves que adotam inovações tecnológicas no Brasil. O quadro a seguir é um histórico confiável para o período contemporâneo no Brasil (1995-2014). A linha ao meio da tabela divide exportações (acima) e importações (abaixo). Revela, infelizmente, que desde 2008 o Brasil entrou numa rota de exportador de produtos de baixa intensidade tecnológica. O movimento inovacionista (e suas políticas de estímulos às MCT) tem sido não só insuficiente quanto ineficaz para barrar estas tendências.

Para melhor esclarecer este ultimo ponto, vamos apresentar e debater dez mitos que envolvem as MCTs, e suas relações com o entorno social e político, econômico e produtivo do país (seus ecossistemas). Eles explicam melhor o movimento inovacionista, e sobretudo sua proeminência no Projeto Weintraub para a universidade.

No ultimo artigo serão tratadas as relações entre o projeto neoliberal, revolução científica das “novas ciências” e uma questão-chave: a quem interessa esta tentativa de reforma privatizante da universidade sob a bandeira de uma política inovacionista formada pela tríade empreendedorismo/patentes/direitos propriedade intelectual?

MITO 1. A universidade de excelência é a universidade que tem maior numero de patentes registradas.

Há setores da universidade que, com recursos públicos, estão procedendo ao patenteamento sem resultados efetivos, pois escritórios de patentes da China, dos Estados Unidos e da Comunidade Européia orientam para que patentes de suas empresas sejam registradas. Resultado disto é que nossas patentes são registradas mas podem ser violadas ou pirateadas (como ocorrem em outros países, a qualquer momento), pois para ter eficácia, precisam ser defendidas mediante processos judiciais altamente custosos no Exterior. É falso porque gerar patentes e zelar por elas é tarefa da governança corporativa de empresas que se ocupam delas como uma arma de guerra; não é tarefa da universidade gerar patentes e assegurar sua venda para as empresas, e muito menos ser financiadas pelas patentes (a infra-estrutura de pesquisa e ensino em torno das novas ciências, tanto no quadro europeu quanto estadunidense, é apoiada pelo investimento governamental mediante a graduação e a pós-graduação).

MITO 2. Uma MCT pode nascer na garagem da sua casa; tudo depende da sua dedicação e energia aplicadas na inovação, que deve ser trabalhada com uma ferramenta indispensável, o MVP (Produto Mínimo Viável, em inglês).

Recentemente (2019) foi publicado, com título bem humorado Este livro não vai te deixar rico: tudo o que ninguém te contou sobre startup, empreendedorismo e vender água” (168 págs; disponível na Amazon impresso e Book Kindle). O autor se identifica como Startup da Real, pseudônimo que usa também no twitter e na plataforma de publicação de artigos Medium. A obra em foco ajuda a nos aproximar sem ilusões do movimento inovacionista. O/a Leitor/a vai encontrar nesta obra um conjunto de críticas sobre o pouco realismo e falta de rigor que circula como literatura de mobilização a ações empreendedoras, sobretudo dirigida aos profissionais e estudantes das áreas de Ciências & Tecnologia. Startup da Real reuniu 539 mensagens entre elogios, e também muita crítica às práticas de executivos em MCTs, práticas relacionadas ao caráter machista, ao abuso moral, recompensas com critérios pouco claros para trabalho com jornadas sem fim e sobretudo, MCTs que nada têm a ver com criar algo na garagem e “ficar sem dormir cada vez menos para desenvolver milhares de ideais disrruptivas que teve em maratonas de programação”.

O autor alerta para o fato de que no ecossistema geral onde se inserem as MCTs na sociedade brasileira “a maior parte das empresas tradicionais quebram em cinco anos, e no caso das MCTs quase todas resultam em fracasso”. (Folha de S. Paulo, “Mundo de ilusões de startups é alvo de escritor anônimo”. 29/9/2019 pag. A15).

Para entender como está sendo esboçado um novo padrão de industrialização altamente vinculado aos métodos de cadeias produtivas e de serviços de algumas poucas grandes empresas internacionalizadas que capturam talentos, recursos, instituições e agora a universidade por meio do Projeto Weintraub, é preciso fazer o entendimento correto do papel da política de startup, que tenta operacionalizar esta captura.

MITO 3 – As MCTs são destinadas a ampliar as oportunidade de emprego, trabalho e ocupação qualificadas na pesquisa e desenvolvimento, e podem criar as oportunidades de geração de trabalho e renda na sociedade.

Muito duvidoso! Dados sobre a força de trabalho para o conjunto da sociedade indicam que o Brasil conta com 160 milhões de pessoas que correspondem à população em idade ativa (ou PIA – de 15 aos 68 anos). A PIA está dividida em dois territórios socioeconômicos e culturais no Brasil.

O primeiro território é formado por camadas com estratos com rendimento mensais médios de 5 a 20 salários mínimos, em sua maioria assalariados no setor formal capitalista e no setor público, postos ocupados majoritariamente pelas classes médias e classes proprietárias. Este contingente gira em torno de 35 milhões de pessoas. (Já esteve em 42 milhões na era Lula – 2004-2008).

Este contingente detém as vantagens da cidadania plena, acesso às melhores condições de educação e formação profissional, provém de famílias com acesso à universidade, ao financiamento público ou privado para empreendimentos de longo prazo de maturação.

Esta camada é a da PEA , ou população economicamente ativa (estatísticas oficiais se referem a ela enquanto parte dos que conseguem ingressar na economia do primeiro andar.

O outro território da PIA é formado por um quebra-cabeças. Algo em torno de 125 milhões de brasileiros estão distribuídos em atividades econômicas que contribuem ativamente para a sobrevivência de milhões de famílias no dia-a-dia (setor informal, economia informal, popular, economia solidária, comunitária, familiar, empreendedores, trabalhadore/as por conta própria, autônomos, auto-empregados). Tal conjunto heterogêneo, queiramos ou não, deveria fazer parte relevante dos ecossistemas da política de inovação, mas está totalmente excluído deles.

O atual sistema de inovação no Brasil refere-se apenas ao setor formado por empresas privadas e transnacionais estrangeiras e brasileiras, que já operam com pacotes tecnológicos trazidos prontos do exterior, e são internalizados no tecido empresarial (ecossistema) brasileiro.

A forma de contratar mestres e doutores das áreas de ciências exatas e tecnologias tem sido predominantemente por meio da política de startups como contratos de negócios, ou aquisições. Nenhuma das transnacionais no país mantém laboratórios em solo brasileiro; todos estão nos países de origem. A exceção a este quadro é o P&D desenvolvido pelo segmento das empresas estatais brasileiras que tem contratado mestres e doutores para se integrar ao sistema brasileiro de C&T.

MITO 4 – “A tríade do inovacionismo ‘empreendedorismo/patentes/direitos propriedade intelectual’ difunde o mito de que não é necessária uma teoria do desenvolvimento econômico ou social, pois está baseado nas práticas das grandes empresas transnacionais tomadas como ‘case’ para ensino e capacitação na área, e para tanto depende apenas de uma adaptação para a situação brasileira”.

De fato, o inovacionismo rachaça uma teoria do desenvolvimento porque se pretende neutro como uma prática gerencial e administrativa. Ao fazê-lo, o inovacionismo converte-se em doutrina associada ao neoliberalismo econômico, sob governos de ultradireita nos Estados Unidos e no Brasil atualmente (2019). Esta dimensão doutrinária funda-se na busca por uma educaçãotecnocientífica dissociada das Ciências Sociais e Humanas, exclusivamente voltada para formar gestores, administradores, executivos e técnicos segundo uma mentalidade expandida de uma classe média treinada e qualificada situada na economia do primeiro andar (mais adiante explicada). O empreendedorismo subordina os ensinamentos e aprendizagem a uma coleção de comportamentos da concorrência intercapitalista, e no caso brasileiro, exclui de seus cenários a governança das grandes empresas estatais e públicas, cuja missão essencial é conduzir a um desenvolvimento com melhor distribuição de investimentos, recursos e rendas.

Na fase 2004-2016 (período em que foi implantada uma política negociada de direitos de propriedade intelectual e patentes) o inovacionismo teve montantes crescentes de recursos do sistema de C&T brasileiro para implantar suas incubadoras de startups e nucleos de inovação para difundir as vantagens das patentes.

Continue a leitura:


1. Os dados, cenários e avaliações aqui expostas (com exceção das considerações sobre o Future-se) encontram-se plenamente desenvolvidos no a) livro Para onde Vai a Universidade diante da Política de Ciência e Tecnologia no Brasil (Navegando, 2017) com Raquel Moraes (FE) livre acesso: https://www.editoranavegando.com/educacao-ciencia-e-tecnologia), e no b) artigo, Neder, R.T. “Mentalidades dissonantes: bases cognitivas sobre as relações C&T e Sociedade na Teoria Crítica da Tecnologia e nos Estudos CTS latinoamericanos” in Daniela Alves e Maíra Baumgarten. Conhecimento e Sociedade: teorias, políticas e controvérsias. Brasília: ESOCITE.br Associação Brasileira dos Estudos Sociais das Ciências e das Tecnologias/Ed. Verbena, 2019: 97-124.

2 . “Por que é preciso negar as patentes” Joseph Stiglitz, Dean Baker e Arjun Jayadev, em Project Syndicate  | Tradução: Maurício Ayer in OUTRAS PALAVRAS 29.11.2017 .https://outraspalavras.net/capa/stiglitz-por-que-e-preciso-negar-as-patentes/. Acesso: 20.8.19

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2 comentários para "Universidades ou “incubadoras de start-ups”?"

  1. Joma disse:

    Incentivar os estudantes universitários a inovarem e a criarem com suas modernas e arrojadas ideias as suas próprias empresas(startups), é fundamental para o desenvolvimento econômico e social do país. Mas é necessário um Investimento Público bastante vigoroso na Educação a todos os níveis.

  2. Rafa disse:

    Aqui no Brasil qualquer projeto que seja feito em favor de alguma coisa sempre gera alguma forma de discurso político.

    Convido o autor do texto a criar boas idéias para o Brasil, além de procurar referências para ajudar no seu discurso puramente político.

    A idéia não é estimular as patentes mas sim fomentar o empreendedorismo nas pessoas para melhorar a economia e as patentes virem como consequência.

    A universidade é o polo da inovação que não conhece em sua grande parte as necessidades do mercado e por isso gera um monte de patente lixo que só serve para aumentar o ego de alguns pesquisadores e prejuízo para os cofres públicos porém as empresas privadas entendem as necessidades do mercado já que sobrevivem dele então o que acontece quando juntamos os dois?

    A universidade com essa parceria vai gerar inovações e patentes que realmente serão voltadas para a necessidade das pessoas e as empresas acabam ganhando com a inovação da universidade.

    Não tem nada a ver com privatização!

    Se você é um estudante e tem a possibilidade de fazer uma pesquisa científica que gere um produto que vai ser usado pela população e esse projeto ainda vai ser financiado pela iniciativa privada então o que mais um estudante pode querer?

    Primeiro porque o estudante não vai precisar entrar em um mercado saturado de professores doutores e sem emprego e segundo que se esse estudante for decidir ir além com esse projeto, esse além de estar gerando o seu próprio emprego com o desenvolvimento da sua empresa (startup) vai gerar emprego para outros brasileiros e também vai estar levando para a população brasileira a inovação do seu trabalho científico podendo até impactar positivamente outros países através do seu estudo que começou em uma universidade.

    Isso sim é inovação e dar oportunidade para os estudantes inovarem é sem dúvida o melhor caminho.

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