Uma bomba social por trás do Auxílio Brasil

Há uma cilada perigosa no pacote eleitoreiro de Bolsonaro. A renda das famílias crescerá às vésperas das eleições – mas despencará em janeiro, e estará sob controle dos bancos. Para enfrentar o problema, é preciso conhecê-lo a fundo

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Por David Deccache, Daniel Conceição e Fabiano Dalto

O Congresso Nacional promulgou, no último mês, a Proposta de Emenda à Constituição (PEC) 1/22. A proposta, com prazo de validade para dezembro deste ano, dobrou o valor do vale-gás, criou um auxílio-gasolina para taxistas, ampliou o Auxílio Brasil e prevê um “voucher” para caminhoneiros. Todas essas medidas, além de insuficientes, são temporárias e oportunistas, pois visam reduzir a rejeição do governo Bolsonaro no período eleitoral. Além disso, porém, o pacote suscita duas questões políticas. É justo criticá-lo usando o mesmo argumento empregado pela oposição neoliberal? E – mais importante – que fazer em face da crise de renda e de crédito que ele tende a provocar já no início de 2023, sob um possível governo Lula?

Primeiro, é importante destacar que uma crítica frágil – embora recorrente – ao pacote oportunista do Bolsonaro sustenta que a PEC é irresponsável do ponto de vista fiscal. Esta, inclusive, foi a justificativa do Senador José Serra para o seu voto contrário, o único do Senado. Trata-se de uma argumentação que tem sido utilizada incessantemente para obstruir o cumprimento das obrigações sociais do Estado. Em essência o argumento que equipara a PEC a uma “bomba fiscal” é mais um retirado da farta prateleira neoliberal de mitos falaciosos cujo objetivo é aprofundar a mercantilização generalizada de todas as esferas da vida. Do nosso ponto de vista, não se pode adotar falácias para combater o oportunismo eleitoreiro de Bolsonaro. Pelo contrário, devemos denunciar a insuficiência das medidas e propor um programa robusto de gastos públicos que não só preserve a renda dos mais pobres como amplie sua proteção, que tem sido ameaçada com a política neoliberal do governo.

Outra crítica recorrente e equivocada é a que alega que mais recursos na mão dos mais pobres terão fortes efeitos inflacionários. Esta análise desconsidera que o processo inflacionário atual decorre, principalmente, da política de preços da Petrobras, e não de um excesso de demanda.

A crítica mais forte e necessária — porém, infelizmente ignorada até pelo campo progressista — tem sentido oposto às anteriores. Implica dizer que Bolsonaro deixou as pessoas morrendo de fome nos últimos anos, ou por maldade ou por adequação à ortodoxia econômica. O auxílio emergencial foi interrompido em dezembro de 2020, o que deixou dezenas de milhões à míngua. Não havia restrições financeiras a manter o benefício, como provara o pacote de socorro estatal trilionário do início daquele ano. Mas nada foi feito, ao longo de mais de um ano e meio, para minorar a fome e o sofrimento das vítimas da crise social. O fato de o governo agir apenas agora, às vésperas do pleito presidencial, denuncia o caráter eleitoreiro da PEC 1/22.

Aqui entra a segunda questão crucial. Se por um lado, o pacote eleitoreiro não traz absolutamente nenhum risco fiscal à União, as propostas oportunistas impõem enormes desafios para o campo progressista. Foi armada uma bomba social para o possível governo Lula. Ela elevará de modo importante a renda disponível das famílias no período pré-eleições mas a fará despencar, a partir de janeiro. De quebra, submeterá milhões de pessoas ao sistema financeiro privado, com seus juros e práticas abusivas. Para desarmar esta bomba, é preciso compreendê-la.

Em paralelo à PEC 1/22, o Congresso aprovou a Medida Provisória (MP-)1106/22. Ela permite aos bancos consignar (ou seja, entregar antecipadamente) aos bancos a renda que os beneficiários do Auxílio Brasil receberão a partir de janeiro. Isso poderá ser feito por meio de empréstimos oferecidos agora pelo sistema bancário e pagos compulsoriamente, com juros, pelos devedores. Com a redução de suas rendas, as famílias endividadas terão ainda mais dificuldades para arcar com as prestações e enfrentarão dificuldades para adquirir os itens básicos de consumo necessários a sua própria sobrevivência.

Segundo a MP 1106/22, os empréstimos consignados – aqueles cujos pagamentos de juros e amortizações são descontados automaticamente das rendas do devedor – poderão incidir sobre o Auxílio Brasil, comprometendo até 40% do valor deste benefício. O montante que poderá ser liberado em cada contrato pode chegar, em alguns casos, a R$ 3 mil.

É fácil compreender o caráter traiçoeiro deste crédito. Nas vésperas da eleição, a expectativa do governo é que as liberações do crédito consignado injetem na economia brasileira recursos da ordem de R$ 77 bilhões. No curto prazo, significa uma adição, desconsiderando qualquer efeito multiplicador, próxima de 0,9% na taxa de crescimento do PIB deste ano, em paralelo a um aumento considerável do poder de compra.

No médio prazo, no entanto, isso implica queda da renda disponível para o consumo das famílias, superendividamento potencial e transferência automática da renda dos mais pobres para os bancos, na forma dos pesados juros que incidirão sobre as dívidas familiares. Há matérias na imprensa que apontam que alguns agentes do sistema financeiro pretendem cobrar taxa de juros de 98% ao ano pelo crédito consignado para quem recebe Auxilio Brasil.

Como exemplo, nos cinco meses finais deste ano, uma família em situação de pobreza ou extrema pobreza receberá R$ 600 do Auxílio Brasil e ainda poderá acessar crédito de aproximadamente R$ 3.000. São quase vinte milhões de famílias nesta situação, o que significa algo como 72 milhões de pessoas, aproximadamente 1/3 da população brasileira.

O pacote eleitoreiro poderá significar uma ampliação de R$ 118,2 bilhões no poder de compra das famílias nos cinco meses finais do ano – e no cálculo estamos desconsiderando outros elementos, como os saques do FGTS. Na prática, os impactos desta injeção de recursos serão ainda maiores, dado o efeito multiplicador. As famílias irão ampliar fortemente o consumo, o que aquecerá diversos setores, do comércio à indústria, multiplicando o impulso inicial. Por exemplo, considerando um efeito multiplicador de 1,5, o estímulo poderá aumentar o PIB em R$ 177 bilhões, um crescimento adicional de 2%. Os impactos eleitorais podem ser consideráveis, talvez até suficientes para garantir Bolsonaro no segundo turno.

Contudo, este cenário econômico será radicalmente revertido já em janeiro, primeiro mês do possível governo Lula. Além do fim do benefício extraordinário de R$ 200, algumas famílias terão descontos automáticos de até R$ 240 no Auxílio Brasil, para pagarem seus empréstimos consignados. Isto significa que milhões de famílias verão sua renda disponível para o consumo de bens e serviços básicos/indispensáveis despencarem de R$ 600 para R$ 160. Além disso, terão esgotado seus limites de crédito e não poderão recorrer a mais endividamento consignado.

Caso nada seja feito, o governo Lula terá que lidar com a explosão da já alta e intolerável situação de fome no Brasil nas suas primeiras semanas. A desaceleração econômica ocasionada pelo choque depressivo da redução do poder de compra dos recebedores dos programas de transferência de renda será profunda. Esta hipótese precisa ser evitada a todo custo, pois caso se concretize minará o apoio popular do governo logo no seu início — período fundamental para determinar os rumos da governabilidade. Com uma correlação de forças desfavorável, o Executivo se tornará frágil frente ao Legislativo e perderá impulso para avançar na concretização das suas promessas de campanha.

A situação exige dois passos urgentes. O primeiro é articular a aprovação — ainda neste ano, imediatamente após a eleição — de uma PEC que revogue definitivamente o teto de gastos e inicie a construção de um novo regime fiscal funcional, baseado no planejamento econômico democrático. Após a revogação do teto de gastos, devem ser restabelecidas as ferramentas de planejamento, como os planos plurianuais e as diretrizes orçamentárias, conforme determinado na Constituição de 1988. O novo regime também deverá ser economicamente responsável, isto é, atento aos limites inflacionários da economia e desapegado de resultados contábeis economicamente desimportantes e ilusórios, como os indicadores de déficit fiscal e de razão dívida/PIB.

O primeiro passo descrito acima permitirá que um governo Lula livre-se, já no início de seu mandato, de um teto de gastos disfuncional; e que publique uma Medida Provisória (MP) no primeiro dia de seu governo prorrogando o benefício extraordinário e mantendo o Auxílio Brasil em R$ 600. O tempo e espaço fiscal conquistados com a derrubada do teto de gastos e a prorrogação do Auxílio Brasil poderão ser usados para reconstruir o Bolsa Família. Implica eliminar as graves distorções causadas pelo Auxílio Brasil, em que uma família de duas pessoas recebe o mesmo valor que outra com dez filhos, fora as outras inúmeras imperfeições técnicas do programa de Bolsonaro.

Entretanto, o novo Bolsa Família não pode voltar a ser simplesmente o que era. Deve mirar um benefício mínimo de, pelo menos, R$ 600, além de conter regras funcionais de reajuste anual e impedimento de formação de filas. Deve-se, também, no primeiro semestre, construir um programa que perdoe as dívidas das famílias que tiverem tomado empréstimos consignados com desconto automático do Auxílio Brasil, mesmo que seja necessário que o governo federal faça o ressarcimento aos bancos de empréstimos tão covardemente predatórios.

Os desafios para o próximo governo serão gigantes e as soluções devem ser construídas desde já. Não é possível esperar a eleição acabar e janeiro chegar. Se deixarmos tudo para fevereiro de 2023, enfrentaremos um dos piores inícios de governo de todos os tempos. E nossa história recente mostra que governos fracos e impopulares acabam reféns do centrão e do mercado financeiro, com seu exército de profissionais ilusionistas armados de programas de televisão e grandes jornais.

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