Paulo Guedes sonha com seu 18 Brumário
Em tempos de retrocesso, mostrou Marx, os personagens mais grotescos podem ser chamados a garantir os interesses do capital. O ministro, que serviu a Pinochet, sabe disso, tem ambições e faz cálculos…
Publicado 04/12/2019 às 15:57
Por Gustavo Freire Barbosa
Em 0 18 de Brumário de Luís Bonaparte, Marx se dedica a dissecar a conjuntura que levou a figura medíocre do sobrinho de Napoleão ao comando imperial da França. Analisando a frenética sucessão das formas políticas francesas, indo do regime absolutista ao republicano com passagem pela monarquia parlamentar, o pensador alemão aponta como estas formas são históricas e, sobretudo, condicionadas aos padrões de exploração de cada época.
Pouco importa se Luís Bonaparte era um aristocrata, Marx explica, demonstrando como a saída encontrada para salvar o capitalismo foi não apenas por meio de alguém de origem nobre ou não-burguesa, mas via medidas que foram de encontro aos próprios dogmas da democracia liberal.
O texto termina apontando que Bonaparte, que fora eleito presidente na sequência da Revolução de 1848, dará um golpe na república e restaurará o império. É exatamente o que acontece, mas não sem antes de dar uma pedalada interpretativa na constituição para instaurar o estado de sítio e começar a perseguir opositores.
A lição é a de que a democracia é incapaz de sobreviver na medida em que se torna uma pedra no sapato da exploração capitalista. Quem entendeu a essência da coisa e soube explicá-la tão bem quanto o próprio Marx foi Michel Temer.
Em setembro de 2016, Temer admitiu o papel do programa Uma ponte para o futuro no golpe que destituiu a presidenta Dilma Rousseff da Presidência da República: “Há muitíssimos meses atrás, nós lançamos um documento chamado ‘Ponte para o Futuro’ porque verificávamos que seria impossível o governo continuar naquele rumo, e até sugerimos ao governo que adotasse as teses que nós apontávamos naquele documento. Como isso não deu certo, não houve a adoção, instaurou-se um processo que culminou, agora, com a minha efetivação como presidente da República”, afirmou.
Embora a democracia liberal seja a forma institucional do capitalismo, a dinâmica das forças produtivas não costuma colocá-la como uma prioridade. A roda do lucro e da acumulação deve permanecer girando nos níveis que os abocanhadores privados da riqueza coletiva julguem ideais, mesmo que para isso seja necessário colocar um tirano no poder. A lição de O 18 de Brumário se repetiu ao longo dos séculos XX e XXI em várias ocasiões que têm em comum a renúncia às formas democráticas em nome da expropriação capitalista. O golpe de 2016 no Brasil é apenas uma delas.
É por isso que é um erro tático achar que tudo se resolve nos limites das cartas constitucionais. Pior ainda é acreditar que basta sensibilizar os atores do poder político e econômico acerca de seus valores civilizatórios para que a democracia seja respeitada ou restabelecida. No jogo das leis, a burguesia estará sempre disposta a passar o trator no republicanismo adolescente das forças progressistas.
Paulo Guedes reverberou Eduardo Bolsonaro e falou recentemente em um novo AI-5, evocando manifestações que nem ocorreram e incentivos a quebradeiras que só existem em seu sonhos. Deixou claro quais são os verdadeiros desejos do Planalto: um pretexto para que a excludente de ilicitude e as operações de garantia da lei e da ordem possam ser usadas contra quem se opor ao seu projeto de implosão do Estado brasileiro.
Guedes foi professor na Universidade do Chile durante a ditadura de Pinochet. A jornalista Malu Gaspar, no perfil que fez do ministro para a revista Piauí, o provocou sobre essa gaveta de sua biografia. O ministro enrolou, tergiversou, mas no fim respondeu que sabia que se tratava de uma ditadura, mas considerava isso irrelevante do ponto de vista intelectual.
O Chile de Pinochet serviu de laboratório para que os Chicago Boys, liderados por Milton Friedman, pusessem em execução um ainda incipiente programa neoliberal, algo que não seria possível sem o golpe contra o governo socialista de Salvador Allende. Guedes, egresso dessa turma, é de uma coerência sublime quando propõe massacrar o povo caso ele represente uma ameaça ao saque dos fundos públicos pelo mercado. Seja na França de 1852, no Chile de 1973 ou no Brasil de 2019, o regime democrático permanece sendo apenas perfumaria.
Quando melhor lhe convém, a classe dominante não se constrange em se organizar para dar fim não apenas aos movimentos ditos socialistas, mas às suas próprias instituições. Basta que passem a bater de frente com seus negócios privados que não há direitos civis, liberdade de imprensa, de reunião e sufrágio universal que se aguentem em pé. Ainda em O 18 de Brumário, Marx observa como é comum que mesmo o mais tímido clamor por democracia costuma ser acusado de “socialismo” e de “atentado contra a sociedade”. É pelos caminhos do socialismo, então, que devemos pavimentar, sem medo, a defesa da democracia.
É natural o espernear das múmias mentais que acham a gosto na posição de comodidade que a riqueza lhe confere. É tão grande o convencimento dos ricos da eternização da situação atual que não percebem os novos ventos que sopram em seus sarcófagos trazendo mudanças. Como afirmou Thomas Paine, o tempo convence mais que a razão. Se a razão não foi capaz de convencer os povos de épocas anteriores de haver necessidade de fiscalizar o que está sendo feito com o seu dinheiro, esta falha está sendo corrigida pelos novos tempos. Se ao povo sempre coube papel de capacho para a bota de coronéis, uma nova mentalidade começa questionar esta situação.