Para enfrentar a miséria tributária brasileira

Correção de injustiças no imposto de renda, mesmo mínima, produzirá efeitos econômicos e políticos relevantes. É um sinal da enorme potência que teriam uma reforma verdadeira e uma política fiscal que rompesse com os dogmas neoliberais. A esquerda está preparada?

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A discussão acerca da tributação no Brasil é marcada pela polarização em torno de qual deve ser o papel do Estado. Nos campos hegemônicos da esquerda liberal, os discípulos de Keynes encontram na regulação institucional do capital – sobretudo na tributação progressiva – o método mais eficiente de estabelecer o sonho social-democrata – mesmo que tenham se provado pouco capazes de estabelecer os meios políticos desta proposição em um país subdesenvolvido e dependente, e tenham se limitado a tímidas reformas. A direita liberal (também conservadora) vê qualquer forma de interferência no suposto fluxo perfeito do mercado como sinal de ineficiência e restrição do mágico encontro do ponto de equilíbrio econômico. Ele estaria evidenciado de forma clara na Cartilha do Consenso de Washington, o receituário que livra, tanto quanto possível, a iniciativa privada de tributos.

O fato é que, desde o modelo de reprodução do capital estabelecido pelo Plano Real, pouquíssimo se alterou no Brasil no que tange aos impostos. A população é sufocada por uma carga tributária injusta, que mantém as relações de produção centradas no rentismo neoliberal, limita a capacidade de investimento estatal e consolida a estrutura de propriedade desigual. A economia política do Plano Real sustenta a base do modelo tributário vigente. A transmutação da dívida externa em dívida interna provocou uma elevação da relação dívida/PIB contínua e estratosférica, baseada em uma taxa de juros reais sobrenatural. Tal movimento é capital na elevação tributária, como já havia percebido Marx:

Como a dívida pública se respalda nas receitas estatais, que têm de cobrir os juros e demais pagamentos anuais etc., o moderno sistema tributário se converteu num complemento necessário do sistema de empréstimos públicos. Os empréstimos capacitam o governo a cobrir os gastos extraordinários sem que o contribuinte o perceba de imediato, mas exigem, em contrapartida, um aumento de impostos. Por outro lado, o aumento de impostos, causado pela acumulação de dívidas contraídas sucessivamente, obriga o governo a recorrer sempre a novos empréstimos para cobrir os novos gastos extraordinários. […] A sobrecarga tributária não é, pois, um incidente, mas, antes, um princípio. (MARX, p. 537, 2023).

Com o desenvolvimento do sistema monetário internacional baseado na moeda fiduciária, o arcabouço pós-keynesiano da Teoria Monetária Moderna (TMM), fundamentado sobre o princípio do chartalismo de Knapp, reinterpreta a lógica do fluxo da tributação. O imposto é entendido como a criação de demanda por reprodução da moeda artificialmente injetada pelo Estado. ou seja, a restrição da quantidade de moeda do setor privado. A ideia central da TMM é a de que não existem restrições reais aos gastos financeiros do Estado e por isso a ideia marxiana de que um aumento da dívida pública implica em uma sobrecarga tributária, pertence aos velhos tempos das moedas lastreadas. Entretanto, a TMM está longe de ser uma teoria amplamente aceita. Apesar de nos oferecer um ponto de vista transformador para a análise das finanças públicas, é evidente que a lógica da política econômica brasileira sustenta-se em Tributação – Gasto ou Gasto – Dívida – Tributação.

A análise teórica nos serve para estabelecer um diagnóstico conjuntural da situação brasileira. No Brasil a relação carga tributária/PIB em 2022 era de 32%, maior do que a registrada na China (11%), EUA (27%), Índia (6%), Argentina (6%), Chile (21%) e Rússia (20%), por exemplo. Entretanto, a taxa de investimento brasileira, não supera nenhuma das nações citadas, evidenciando que o dinheiro é retirado da economia e não é reposto de forma produtiva. Na verdade, serve para financiar as obrigações financeiras do Estado: o Brasil possui a maior taxa de juros real entre os países citados. A anomalia entre tributação e investimento se relaciona com a estrutura de gasto público no Brasil, extremamente atrelada às despesas obrigatórias, que longe de servirem para financiar serviços públicos de qualidade, estacionam os gastos, sufocando financeiramente instituições como o SUS ou as universidades federais. A baixa produtividade da maior parte da força de trabalho, que se concentra em atividades de serviços, conduz a poupança bruta para um percentual baixíssimo. Dessa forma, o investimento não é realizado nem pelo setor público nem pelo setor privado. Fundamentalmente, a renda da massa trabalhadora, que já é muito baixa, visto que o Brasil tem o 3° pior salário mínimo da América do Sul, se congela, crescendo percentuais reais mínimos. A carga tributária, que é maior do que em países desenvolvidos de renda média alta, absorve ainda mais o poder de compra da população. Se tudo isso não bastasse, a estrutura do Novo Arcabouço Fiscal é incoerente com a lógica das despesas obrigatórias estabelecidas pela Constituição e deve ter efeitos – de cortes – já no ano de 2027. Fica evidente a característica anômala do sistema econômico brasileiro.

Não é novidade que, no campo econômico, o governo Lula3 dedicou a maior parte de seus esforços políticos e de mobilização às tímidas reformulações do sistema de imposto ao consumo e à renda. Os efeitos podem ser sentidos na opinião pública. Segundo a Quaest, em agosto de 2025, a percepção acerca da justiça tributária era positiva — 64% dos brasileiros acreditavam em melhora financeira após a aprovação da reforma do Imposto de Renda.

De acordo com relatório do MADE elaborado por Martins, Gomes & Arthen (2025), as reformas do governo representam avanço relevante. No entanto, seus efeitos sobre a progressividade permanecem limitados. Vale adicionar que, sob um regime de autorrestrição aos gastos primários, como o Novo Arcabouço Fiscal, nem o mais positivo sistema progressivo de tributação teria o efeito de tornar o Estado redistribuidor da riqueza nacional. Os perspicazes leitores governistas, já se preparam para apontar a conjuntura política como entrave ao desenvolvimento institucional, ou, em outras palavras, “ruim com Lula, pior sem ele”. É claro, que a direita não oferece alternativas eficazes à solução do problema, e evidentemente, por mínimo que seja, o avanço deve contribuir à renda da massa trabalhadora brasileira. Entretanto, quando a leitura da política econômica é feita descolada das condições estruturais de produção e propriedade, deixa-se de debater a questão fundamental do patológico sistema tributário brasileiro.

Uma perspectiva popular acerca do papel da política econômica de um Estado deve visar garantir condições de igualdade e qualidade nos serviços prestados à sua população. Logo, um país caracterizado por dependência econômica externa, sistemas de educação e saúde precarizados, subemprego e superexploração do trabalho, estrutura produtiva arcaica, nível de renda baixíssimo etc deve restabelecer completamente os marcos de sua política econômica. A característica da impossibilidade de transformação endógena do modelo capitalista brasileiro já foi há tempos apontada pelos grandes teóricos da Teoria Marxista da Dependência, evidenciando o reformismo de coalizão como subserviente aos interesses da classe dominante. A urgência de um projeto nacional de rompimento com a dependência está intimamente relacionada com a urgência de reforma do sistema tributário brasileiro, visto que ele altera toda a lógica de reprodução do capital no Brasil.

Um sistema tributário popular deve minimizar os impostos sobre o consumo e maximizar a progressividade de tributação à renda. Os efeitos econômicos desta proposição são de um aumento exponencial da demanda agregada, já que as grandes massas consumidoras têm uma grande propensão ao consumo e se beneficiarão de um aumento real de sua renda. Caso a estrutura produtiva agrícola não seja reformulada para abastecer à demanda por alimentos, para onde se destina a maior parte do orçamento familiar brasileiro, o cenário de hiperinflação é evidente. Vale destacar que o aumento do coeficiente de importações deve ser amplo e caso não seja proposta uma política cambial coerente, o déficit no balanço de pagamentos pode ter efeitos negativos no câmbio e inercialmente em toda a atividade econômica. Logo, fica evidente que pequenas reformulações do sistema de reprodução do capital que não alterem essencialmente o módulo produtivo e de propriedade, não têm força para se sustentar. O histórico da reação do grande capital e do imperialismo à sofisticação do modelo distributivo na América Latina revela repetidos casos de pressão e opressão às nações da Pátria Grande.

Esta simples reflexão, evidencia que não há espaço para a esquerda continuar defendendo a ordem da política burguesa. O trabalho de reestruturar a ação do Estado, num sentido que favoreça a emancipação das massas de trabalhadores superexplorados, deve ser inegociável. Precisa ser defendida por uma ampla coalizão de partidos verdadeiramente interessados em desafiar a superestrutura capitalista dependente brasileira. Ademais, enquanto os ventos revolucionários não agitam nosso ar, cabe àqueles capazes de imaginar uma sociedade latinoamericana verdadeiramente solidária, como propunha Darcy Ribeiro, o esforço de desenvolver uma teoria alinhada à Revolução Brasileira, sustentando a superação das contradições do capitalismo dependente contemporâneo.

Referências Bibliográficas

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